A proposta de Orçamento para 2016 enviada no dia 31 de agosto pelo governo federal para o Congresso Nacional prevê um déficit orçamentário inédito, estimado em R$ 30,5 bilhões. Na prática, o déficit quer dizer que o governo prevê que não vai conseguir economizar ou ter “sobra” nas contas do depois de pagar as despesas, exceto juros da dívida pública.

Mas, afinal de contas, por que o mercado se preocupa tanto com as contas do governo? O que o mercado tem a ver com as contas do governo? O que eu tenho a ver com isso? O que é Superávit Primário? Por que ele é importante? Por que o governo faz dívida? Aliás, o que é dívida pública? Para quem o governo deve? Por que o governo precisa pagar as dívidas? O que é a SELIC?

Princípio da Equivalência Ricardiana: Não existe gasto público sem imposto ou calote, ontem, hoje ou amanhã.

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O que é dívida pública? Por que o governo se endivida?

O governo tem uma agenda de investimentos e gastos. Supostamente, ele pode bancar isso com a sua receita em impostos. Entretanto, em muitos casos, os gastos necessários para o país acabam sendo maiores do que a receita obtida com tributos. Então, o governo vai pedir dinheiro emprestado para financiar esse déficit.

Este endividamento torna mais previsível o gasto do governo, uma vez que ele pode tomar emprestado no mercado o dinheiro que faltar para os gastos e investimentos. Esse é um planejamento bastante importante para um gestor de dinheiro público.

Esse comportamento não é único do governo. Praticamente toda empresa de médio e de grande porte tem dívidas. Essas dívidas servem, nesses casos, para realizar investimentos na expansão dos negócios ou simplesmente é um dinheiro usado como capital de giro. É uma forma de ela se alavancar e acelerar o seu crescimento, uma vez que ela consegue investir recursos que não estariam disponíveis apenas com seu fluxo de caixa.

Juros, risco e calote

Como todo mundo sabe, toda dívida tem um custo: os juros. Empresas pagam juros, por exemplo, ao banco que lhe empresta o recurso. Não é diferente, a princípio, com o governo. A diferença é o agente que define a taxa de juros do empréstimo.

No caso de uma empresa, o banco analisa a saúde financeira e a probabilidade de a empresa pagar essa dívida. Quanto menor o risco de calote, menor será a taxa de juros desse empréstimo. Quanto mais arriscado é o empréstimo, maior a taxa de juros; quanto menos arriscado, menor a taxa. Por essa razão, grandes empresas tem mais facilidade de contrair dívida, porque do ponto de vista de quem empresta, essas empresas são mais seguras. Em caso de não pagamento, ela pode vender alguns de seus ativos e honrar a dívida. Empresas pequenas, com poucos ativos ou com pouco fluxo de caixa, em geral conseguem financiamentos no mercado a juros mais altos que grandes empresas.

Com o governo, a situação é ligeiramente diferente. Empresas tem lucros futuros para garantir o pagamento. O governo tem algo mais poderoso: tributação. Como ele tem esse alto poder de tomar dinheiro das pessoas, em geral um empréstimo tomado pelo governo tem baixíssimo risco de calote. Por isso, ele consegue, com relativa facilidade, esses empréstimos no mercado.

Mas de que forma o governo consegue esses empréstimos?

Com os famosos títulos públicos. Um título público é um documento que promete uma certa quantia em dinheiro a um determinado prazo (desde 1 ano até 30 anos — depende do tipo de título). O governo vende esses títulos para os bancos ou para cidadãos que quiserem comprar. Você pode encontrar detalhes sobre isso no site do Tesouro Direto.

Já vimos que, quando uma empresa pega empréstimo, o credor define a taxa de juros. No caso do governo, ocorre o oposto: o governo é quem define essa taxa de juros. Ele escolhe a taxa de juros sob a qual as pessoas/os bancos emprestam dinheiro para ele. Sendo bem simplista e grosseiro, a taxa desse empréstimo é a taxa SELIC (na verdade há diferentes taxas, que depende por exemplo do prazo do título vendido; além disso, a rigor a taxa SELIC não é definida nesse contexto, mas essa é uma simplificação razoável).

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Então, se você é leigo no assunto, pode entender assim: a taxa SELIC é a taxa com que o governo toma empréstimos no mercado por meio da venda de títulos públicos. Por exemplo, se o governo quer vender um título com valor de face de R$ 10.000,00 com prazo de validade (maturidade) de 10 anos, isso significa que, quem comprar esse título hoje, recebe R$ 10.000,00 daqui a 10 anos. Se a taxa de juros (SELIC) for 10% ao ano, o valor do título hoje é:

Então, eu posso comprar hoje um título por R$ 3.855,43 e, daqui a 10 anos, o governo me paga R$ 10.000,00.

É dessa forma que o governo se endivida para financiar seus gastos. O mercado financia os gastos e investimentos do governo. O governo é dependente do mercado para que ele exista e possa fazer todos os gastos que julga necessário. O mercado financia os gastos sociais do governo.

O governo sempre irá pagar sua dívida? O governo pode conseguir dinheiro indefinidamente?

Existe uma parábola citada por Keynes que exemplifica um Ponzi Scheme,conhecido hoje como Esquema de Pirâmide. Basicamente, Victor oferecia a Pedro o seguinte esquema: Pedro empresta 1000 dinheiros para Victor, que promete pagar 2000 a Pedro daqui a um ano. Um excelente negócio: 100% de rendimento em um ano. Pedro aceita o negócio. Depois de um ano, Pedro vai reaver seu pagamento com Victor. Na ocasião, Victor solicita mais um ano de empréstimo a uma taxa de retorno de 100%, ou seja, promete pagar 4000 dinheiros daqui a mais um ano. Pedro acha um bom negócio e aceita. A ideia é que Pedro sempre aceita esse negócio sensacional. Ao se perguntar a Victor se um dia ele vai pagar essa conta, ele responde: “Nunca vou pagar. Pedro sempre aceitará emprestar seu dinheiro a uma taxa de 100% ao ano, até ele morrer. Quando ele morrer, não precisarei mais pagar.”

Ninguém aceita entrar num esquema de pirâmide desses. Ok, quase ninguém, afinal vimos recentemente no Brasil uma explosão de TelexFree, o que coloca em xeque a afirmação de que as pessoas são racionais o suficiente para não entrarem em esquemas de pirâmides. Entretanto, consideramos que os agentes do mercado financeiros (investidores) têm esse discernimento e não aceitariam emprestar dinheiro para o governo num claro esquema de pirâmide. Dessa forma, é esperada alguma restrição sobre o tamanho da dívida do governo e da taxa de juros envolvida nesse investimento.

Simplificando o conceito: o mercado empresta dinheiro para o governo caso este seja considerado solvente, ou seja, capaz de honrar suas dívidas. Vou fazer aqui uma explicação matemática que envolve apenas juros compostos.

Qual o critério utilizado pelo mercado para saber se o governo é capaz de pagar suas dívidas?

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 O mercado se pergunta se as poupanças futuras do governo são capazes de pagar todo o volume da dívida. Nesse caso, o mercado observa a capacidade que o governo tem de fazer poupança, ou seja,de gastar menos do que arrecada. Essa poupança será chamada de Superávit Primário. Temos uma dívida que tem um valor hoje, mas esses fluxos de poupança do governo ocorrerão todos nos anos futuros. Então, precisamos trazer esses fluxos futuros de superávits para o presente. Para trazer valores futuros (que ainda irão ocorrer) para o presente, utilizamos uma taxa de juros (ou taxa de desconto).

Sendo Bmax o valor máximo da dívida pública, Gt o valor do gasto do governo no ano t, Tt o total tributado pelo governo no ano t, dizemos que o superávit primário que o governo faz no ano t é SPt = Tt-Gt. Essa é a poupança do governo (claro, considerando que ele tributa mais do que gasta) sem considerar gastos com juros da dívida (mais detalhes sobre isso adiante).

Qual o horizonte de consideração desses superávits?

Em se tratando de governo, o horizonte é infinito (consideramos que ele sempre vai existir). Então, para que todos os superávits futuros do governo sejam utilizados para pagar dívida, o valor máximo que ela pode atingir é:

Na expressão acima, r é a taxa de juros.

Observando que o valor atual da dívida é menor que o valor máximo que ela pode ter, o governo segue emitindo títulos, aumentando sua dívida e obtendo mais recursos para financiar seus gastos.

Não parece esotérico que a expressão acima assume que saibamos exatamente todos os superávits primários do governo e cada taxa de juros em todos os anos futuros? Obviamente essa é uma hipótese fantasiosa. Na verdade, todos os fatores dessa equação são estimativas.

Os superávits primários são estimados de acordo com a sinalização do governo de que ele irá fazer esses superávits, ou seja, que irá gastar menos do que arrecada. A taxa de juros é bem mais imprevisível. Portanto, não existe unanimidade sobre se o governo é ou não solvente. O mercado faz suas estimativas e pode considerar ou não o governo como solvente. De acordo com essa decisão, os agentes podem, ou não, decidir emprestar dinheiro para o governo por meio da compra de títulos públicos.

Como o governo faz essa sinalização?

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Adivinha só? Legislação. Simplificando, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal são maneiras legais de obrigar o governante a fazer um certo nível de superávit. Esse superávit garantido por lei é uma segura sinalização de que esses superávits irão acontecer no futuro, fazendo com que o mercado tenha confiança em emprestar dinheiro para o governo, comprando títulos públicos.

O que acontece se o mercado para de acreditar que o governo irá fazer superávits? Em outras palavras, o que acontece se o mercado passa a considerar o governo insolvente? Em outras palavras, o que acontece se o mercado passa a considerar que o governo não terá capacidade de pagar suas dívidas?

Nesse caso, algo muito simples acontece: o mercado para de comprar títulos. Isso parece bobo, mas essa é uma situação gravíssima para o governo. Isso impede a rolagem da dívida do governo.

WAIT WAT: rolagem da dívida? O que é isso?

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Imagine que hoje ocorra o vencimento de 10 bilhões em dívidas e que o governo não tenha esse dinheiro sobrando. O que ele faz? Ele capta mais R$ 10 bilhões emitindo novos títulos. Por exemplo, se o governo emitir títulos públicos com vencimento para daqui a 10 anos a uma taxa de juros de 10% ao ano, uma nova dívida de R$10bi x (1,1)^10 = R$ 25.937.424,60 é feita para o pagamento daqui a 10 anos. Ele arrecada os R$ 10bi hoje criando uma nova dívida no valor de quase R$ 26bi a ser paga daqui a 10 anos.

Trocando em miúdos, é como se você pagasse seu cartão de crédito com o seu cartão de crédito — contraindo uma nova dívida. Para uma pessoa física, fazer isso é algo completamente sem lógica. Para o governo, é super normal.

Então, voltando à pergunta anterior: o que acontece quando o mercado considera que o governo se torna insolvente? A rolagem da dívida para de ser possível. Quando esses R$ 10bi vencerem hoje, o governo não terá de onde tirar todo esse dinheiro. O que acontece? O governo não paga a dívida. Isso se chama moratória, ou calote da dívida pública.

Quando o governo está em situação de calote, o mercado não tem incentivo para emprestar dinheiro, pois não há perspectiva de pagamento. Por outro lado, o governo fica em apuros, pois não tem mais como se financiar, e aí o seu gasto fica limitado à sua arrecadação. Nesse caso, cortes fortíssimos no orçamento precisarão ser feitos. Cortes inclusive em questões sociais, na folha de pagamento dos funcionários públicos, com o funcionamento de todo a máquina pública. Ou seja, caos.

O mercado de investimentos fica totalmente instável. Muitos agentes podem quebrar caso tenham seus investimentos alocados em títulos que não foram pagos. Se o portador desse título fosse uma pessoa física, essa riqueza, que estava supostamente investida, vira pó. Se forem bancos ou fundos de investimento, eles perdem um montante considerável de recursos. Com essa instabilidade no mercado de títulos públicos, a incerteza aumenta e os investimentos no país caem drasticamente, prejudicando diretamente a renda e o emprego das pessoas.

Enfim: o governo dar calote é uma situação extremamente indesejável. Nem o mercado nem o governo querem isso. Curiosamente, é isso que defendem partidos de extrema esquerda, como o PCO ou o PSTU. Quem também defendia o calote da dívida era o PT até as eleições de 1998. O PT abandonou essa bandeira para eleger Lula em 2002 — voltaremos a essa questão a seguir. O PSOL é mais moderado: não defende o calote abertamente, defende apenas uma “auditoria” (conferência) da dívida pública, seja lá o que isso signifique.

Um resumo até aqui

O governo precisa tomar dinheiro emprestado com o mercado para financiar suas atividades. O mercado financia o governo, mas desde que ele mostre capacidade de pagar a dívida. Espera-se que o governo pague a dívida com os superávits primários futuros, e o mercado confia no governo enquanto houver uma perspectiva de o governo fazer esses superávits. Quando o mercado para de confiar no governo, ocorre uma situação de calote (embora o calote possa ocorrer de forma voluntária caso o governo decida fazer isso) e todo o mercado financeiro entra em colapso, diminuindo investimentos produtivos no país, o emprego e a renda das pessoas.

Má gestão gera menos confiança e logo juros maiores. Com juros maiores se gasta mais com dívida e menos com o que importa

A confiança do mercado no governo não é binária: não se resume apenas a “confia” ou “não confia”. A confiabilidade do governo pode ser vista sob mais de 50 tons de cinza, desde uma confiabilidade altíssima até a situação de calote.

Quanto menos confiável é um governo, quanto pior for a saúde das finanças públicas, maior precisa ser a taxa de juros (portanto, o retorno do investimento de agentes privados em títulos públicos) para que o governo consiga captar esses recursos com o mercado. Por isso que países subdesenvolvidos com histórico de calotes (Argentina, por exemplo) costumam oferecer altas taxas de juros para o mercado.

Entretanto, quanto se gasta mais com dívida pública (imaginem 13% de R$ 2,2 trilhões ao ano gastos com juros da dívida), menos recursos o governo tem para gastar, e mais ele precisa tributar. Juros altos são ruins para os gastos sociais do governo.

Se o governo tem as contas públicas equilibradas, com superávits sempre na meta, gozando da confiança do mercado, ele consegue baixar as taxas de juros de financiamento da própria dívida, o que gera uma economia absurda com pagamento de juros da dívida e uma economia colossal para o governo. Dado que a taxa SELIC é a taxa básica de juros da economia, todo o mercado pode, por consequência, oferecer taxas de juros mais baixas para as pessoas e empresas.

Um governo com compromisso com as contas públicas e investimentos facilita a queda dos juros

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Um governo que tem compromisso com as contas públicas e com os investimentos no seu país, com o emprego dos seus cidadãos e com a renda das famílias, busca sempre ter as contas públicas em equilíbrio. Contas públicas ajustadas facilita o seu financiamento e induz a queda dos juros no país.

Quando o governo Dilma faz maquiagem nas contas do governo de forma recorrente, o mercado percebe isso e a confiança cai.  Resultado: os juros tendem a subir para que o governo siga rolando sua dívida. Com isso, os gastos com juros da dívida sobem e menos recursos ficam disponíveis para os gastos com as pessoas.

Por isso, a pauta da responsabilidade fiscal é tão importante e praticamente todos os economistas de relevância – sejam ortodoxos ou heterodoxos – são unânimes quanto à necessidade de ajuste fiscal. Negligenciar as contas públicas, como o governo Dilma tem feito, é o primeiro passo para jogar o Brasil no caos financeiro. Quem sabe, negligenciar as contas públicas seja o maior anti-programa social do PT.

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