Quem se recorda um pouco da sangrenta história das Coreias, divididas ao fim da Segunda Guerra Mundial e aparentemente fadadas à miséria nos anos de 1960, certamente hoje vê os dois Estados soberanos que coexistem naqueles cantos isolados da Ásia com surpresa. Quem diria que das duas Coreias, a do Norte e a do Sul, na época mais pobres que Gana, uma tornaria-se exemplo de avanços na educação, evolução tecnológica e crescimento econômico para boa parte de outras nações do mundo? O Brasil está nesse apanhado de países que têm o que aprender com alguns dos Estados mais controversos do mundo.
Para se entender como se deu essa transformação tão radical, é preciso voltar um bom tempo. Depois de décadas de brutal controle colonial japonês, em um curto espaço de 20 anos, aconteceram: conflitos durante a Segunda Guerra Mundial, ocupação militar americana, uma sangrenta guerra de reunificação, a ditadura de um guerrilheiro antijaponês no norte, a renúncia de um presidente sulista por pressão popular e, finalmente, em 1961, a instauração de uma ditadura militar no Sul. Aquela estava longe de ser uma região particularmente estável.
Assim, o cenário era caótico: enquanto no norte nascia um culto isolacionista e totalitário vindo dos mais peculiares rincões do nacionalismo coreano, a Teoria Juche, no sul o caminho também levava rumo à crueldade. A ditadura militar instalada no golpe liderado pelo Major-General Park Chung-hee viria a seguir o roteiro padrão para ditaduras anticomunistas marcadas por perseguições políticas e assassinatos. Para agravar o quadro, o regime instalado depois de seu assassinato em 1979, por Chun Doo-hwan, foi mais sangrento ainda, a ponto de o ditador ter sido condenado à morte em 1996.
Se nossa ótica for a violência, a separação de facto da península só viria em 1988 com o fim da ditadura de Chun Doo-hwan. No entanto, a essa altura, as diferenças no grau de desenvolvimento já se faziam sentir. Nesse ponto, pretendo apenas mostrar como a prosperidade não é determinada por clima, cultura ou qualquer outra forma de plutologia vulgar. E é aqui que voltamos ao Brasil, para tentar entender porque ele, que era mais rico que qualquer uma das Coreias da década de 1960, está onde está hoje.
É bem seguro dizer que os traços institucionais de um país são a causa fundamental de seu crescimento em longo prazo. Essa teoria é sustentada por enorme evidência empírica (entre elas o próprio caso das Coreias) e fundamentação teórica. Para fins introdutórios, o Instituto Mercado Popular possui artigos explicando de maneira sucinta como esse fenômeno se dá.
Dito isso, as instituições de um país são moldadas pelos seus processos políticos. Uma adoção consistente de políticas que moldem o conjunto de instituições de maneira a torná-las mais inclusivas torna o país, então, mais rico. Dessa forma, uma maneira confiável de analisar como se deu a diferenciação no grau de desenvolvimento entre dois países é observar como se deu sua diferenciação institucional.
A Península Coreana sofria de um problema muito sério de concentração agrária até a década de 1950. Partes enormes da área arável coreana estavam em mãos de uma classe quase aristocrata — em um esquema perigosamente feudal — e outras tantas nas mãos de colonizadores japoneses. Massas de população rural viviam, então, sob um esquema de incentivos péssimos, estimulando a produção no nível de subsistência. Venhamos e convenhamos: servidão não é um bom incentivo para produtividade agrária.
No que diz respeito à concentração agrária, as atitudes tomadas em cada Coreia para amenizar a situação foram determinantes para as mudanças que se observaram nos próximos anos. Na Coreia do Norte praticou-se o clássico roteiro de coletivização agrícola em países socialistas. Já na Na Coreia do Sul, lotes de terras de colonizadores japoneses do governo e da “nobreza” sul-coreana foram transferidos para fazendeiros pobres com propriedade garantida sobre a terra. Eles também recebiam crédito para adquirir ferramentas, sementes ou qualquer outro insumo necessário para começar a produzir.
Fica claro aqui que as duas abordagens pretendiam diminuir a concentração fundiária no meio rural. Enquanto uma esterilizou incentivos para execução privada de investimentos, a outra fez justamente o contrário. O resultado é que a Corei do Sul tornou-se uma sociedade rural mais próspera que qualquer outra sociedade baseada no capitalismo na Ásia. Ao norte, o estado vizinho, décadas depois, ainda mantinha níveis de produção pífios. A produtividade fraca associada ao isolamento comercial (fruto da mentalidade de autossuficiência da ideologia Juche) resultaram em fomes generalizadas nos anos 1990 no país. Assim, uma tragédia humanitária era iminente.
Voltemos ao Brasil. Durante o Regime Militar foi tentada uma medida similar para assentar fazendeiros no Centro-Oeste e Norte. Os problemas com a tentativa brasileira foi condicionar o local de assentamento e o escopo, reduzido o projeto. Dessa forma, menos de 80 mil famílias foram assentadas.
A reforma agrária sul-coreana foi de extrema importância por erradicar de maneira eficiente a pobreza rural e permitir a criação de poupança, que é necessária para que possam existir fundos emprestáveis e é o que possibilita a execução de investimento sem contração de dívida externa. A medida ajudou não só a evitar a criação de bolsões de pobreza urbana como também, em consequência da diminuição da pobreza rural, permitiu que a população jovem participasse de uma medida muito importante que se seguiu: a educação universal. Enquanto isso, no Brasil, nem reforma agrária e nem educação davam bons sinais.
Existe uma gigantesca literatura apontando a conexão entre uma força de trabalho mais educada e maior renda e nem a Coréia do Sul nem o Brasil são exceções ao funcionamento desses mecanismos. Os ritmos impressionantes de educação da população sul-coreana foram meios excepcionais de resolver problemas como desigualdade e pobreza extrema.
A combinação de população aceleradamente mais educada, pobreza extrema contida e condições institucionais propícias como boas garantias de propriedade, a adoção de uma única taxa de câmbio de mercado e a abertura comercial logo permitiram que os investimentos (medidos na forma de formação bruta de capital fixo) fossem executados. A comparação com o Brasil, como se pode ver no gráfico abaixo, é bastante discrepante.
As práticas coreanas de fomento industrial seguiram o tipo de medida inteligente que o Brasil consistentemente evita na sua política industrial. Enquanto na Ásia o governo se responsabilizava por fomentar uma pesquisa de base e dava crédito subsidiado ou isenções fiscais para empresas que batiam cotas de produtividade e exportações, o Brasil insistia em métodos arcaicos de incentivar a indústria nacional. A comparação torna-se mais chocante ainda, como podemos ver no gráfico abaixo.
Aqui vigoraram as políticas de conteúdo nacional, que forçam empresas a lidar com equipamentos mais caros e de menor qualidade e isolamento comercial, na tentativa de substituir importações, bem como crédito subsidiado sem contrapartidas e metas rígidas. Essas políticas acabaram tornando nossa indústria pouco competitiva e dependente de proteção para sobreviver. Nesse sentido, nossa política industrial caminhou justamente na direção contrária às experiências bem sucedidas de integração comercial da Coreia, de Taiwan e de Singapura.
A combinação de políticas públicas bem medidas, instituições inclusivas, contrapartidas, cotas e obrigações por parte das empresas que se beneficiassem de subsídios, bem como a integração comercial que permitiu a importação de maquinário moderno sem restrições de conteúdo nacional levaram não só a um aumento expressivo e sustentado do estoque de capital, como também, dos rendimentos extraídos de uma mesma quantidade de insumos.
Como já foi explicado, a razão entre o estoque de capital e a força de trabalho é importantíssima porque é um dos fatores mais importantes da produtividade. Esta, uma das maiores determinantes da renda de um país, que por sua vez, é um fator de enorme peso para o padrão de vida de uma população.
A economia não é uma ciência dura, que trabalha com experimentos controlados em laboratórios e com variáveis facilmente isoláveis. Economistas tentam verificar empiricamente, usando dados e hipóteses. No caso, a abertura comercial e o fomento de pesquisa de base são boas formas de alavancar a produtividade de um setor?
Podemos buscar uma resposta para isso olhando quais setores no Brasil tiveram esse tipo de tratamento, e felizmente existe um: a agricultura. Sendo um setor relativamente pouco protegido, é provavelmente o único negócio brasileiro verdadeiramente integrado nas cadeias globais e dotado de centros de excelência em pesquisa de base como a Embrapa e a ESALQ/USP. No gráfico abaixo podemos ver a evolução da produtividade da agricultura em relação aos outros setores. Isso nos fornece uma boa indicação de se o tipo de política de desenvolvimento praticado na Coreia de fato “funcionaria” em terras tupiniquins.
Os dados mostram que a evolução da produtividade da agricultura brasileira superou, e em muito, a de vários outros setores importantes da economia nos últimos 60 anos. Tirar lições de experiências bem-sucedidas de desenvolvimento é um exercício importante. É por meio desta livre competição de ideias que refinamos o debate e buscamos políticas públicas mais sensíveis, inclusivas e eficientes. É uma lição que o Brasil teima em aprender.