Índices de preço, diferentemente da inflação que tentam medir, não costumam provocar discussões além do círculo acadêmico. Em condições normais, a maioria das pessoas provavelmente consideraria o assunto bastante árido. No entanto, não estamos numa situação normal.

Uma sequência de notícias – a saber, o aumento dos preços de gás de cozinhagasolina, o reajuste do salário mínimo para 2018 e, por fim, a divulgação da inflação de 2017 – suscitou reações bastante apaixonadas e, em casos extremos, lançou-se a acusação de que o governo estaria sabotando os índices de preços para subestimar a inflação.

Antes da controvérsia, algumas explicações

Um índice de preços é, em essência, uma média ponderada dos preços de diversos bens, e sua variação ao longo do tempo é usada para medir a inflação. No Brasil, a ponderação se baseia no orçamento familiar de um brasileiro representativo, segundo pesquisas do IBGE.

Suponha que existam apenas dois bens em uma economia, A e B, que ambos custem $ 10 e que toda a população gaste metade da renda em cada um dos dois produtos. Se o preço de A aumentar 10% (para $ 11) e o de B aumentar 20% (para $ 12), a variação do índice será 10% * 50% + 20% * 50% = 15%. Ou seja, uma média ponderada pelo quanto do orçamento familiar vai para cada produto.

Embora seja mais complexo do que nosso exemplo, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) faz basicamente a mesma coisa. (Aliás, convidamos nossos leitores a visitar a página do IBGE que descreve a metodologia da pesquisa.)

Sabendo disso, podemos discutir alguns comentários que têm circulado recentemente.

“Como a inflação caiu, se os preços estão subindo?”

Este aparente paradoxo decorre de uma confusão entre preços e inflação, sendo esta a variação do nível de preços. O IPCA não sugere que os preços caíram ao longo de 2017 – pelo contrário, indica que a média ponderada cresceu 2,95%. A queda da inflação implica apenas que os preços cresceram mais lentamente em 2017 do que em 2016.

Para fazer uma analogia, imaginemos um carro cuja velocidade está diminuindo e que um de seus passageiros se nega a acreditar que esteja desacelerando, pois o carro continua a andar. A impressão do passageiro estaria errada, afinal, desacelerar não é parar de andar. Essa mesma lógica se aplica ao caso da inflação.

“Como a inflação está tão baixa, se os preços de gasolina e gás de cozinha subiram tanto?”

O IPCA contempla, no nível mais desagregado disponível, 373 categorias de bens. Ao contrário do que sugere a polêmica, os pesos de gás e gasolina no IPCA aumentaram durante 2017, por causa da carestia e de sua importância para as famílias. De fato, o peso de gás de cozinha avançou de 1,2% a 1,3%, e o de gasolina de 3,9% a 4,2%. Faz pouco sentido sugerir que o índice foi manipulado para disfarçar esse tipo de gasto.

Mesmo considerando sua importância no índice, os sub-itens restantes representaram 94,5% do IPCA em dezembro de 2017, de modo que devemos saber como se comportaram para determinar a inflação no período. Este Mercado resumiu em um gráfico a variação anual dos componentes do IPCA.

Vê-se que a grande maioria dos preços contemplados cresceu bem menos do que os de gás de cozinha e gasolina. Ademais, também se nota que uma parcela expressiva dos preços caiu no período, especialmente no grupo de alimentos por causa de safras recorde em 2017. Tomada a média ponderada de todas as variações, a inflação medida fica próxima do centro da distribuição.

Por fim, recomendamos a nossos leitores que visitem o sistema de recuperação de dados do IBGE caso queiram examinar os componentes do IPCA por conta própria e reproduzir o resultado final.

“O governo está manipulando o índice”

Esta última afirmação é particularmente sedutora, dado que a inflação é um dado politicamente sensível, que há desconfiança em relação ao atual governo e que a América Latina apresenta pelo menos um precedente nesta área: a manipulação dos índices de preços na Argentina durante o governo Kirchner.

Não basta, entretanto, oferecer uma motivação para provar que a conjectura é verdadeira; temos que ver como se conforma à realidade. Se o governo estivesse manipulando os índices para subestimar a inflação, estimativas não oficiais seriam consideravelmente mais elevadas. De fato, foi assim que se descobriu que os dados argentinos eram fajutos.

Tomemos, então, dois índices de preço ao consumidor. O IPC-DI, do IBRE-FGV, registrou aumento de 3,2% em 2017, e o IPC da FIPE-USP marcou 2,3%. Ambos estão bastante próximos do IPCA e, portanto, contrariam a tese de que há manipulação.

Sim, o IPCA é confiável e a inflação está baixa

A credibilidade desses dados é uma conquista da democracia brasileira. Avanços significativos ocorreram desde os tempos da ditadura. No perfil de Rafael Cariello sobre o ex-ministro Delfim Netto, publicado na revista piauí, há relatos sobre como manipulação de preços no durante o regime militar. Relatando uma conversa com Eduardo de Carvalho, integrante da equipe econômica liderada por Delfim, Cariello escreveu o seguinte no texto publicado em 2014:

“Parte da política econômica patrocinada pelo Delfim tinha tintas das besteiras que estão sendo feitas hoje”, disse Carvalho, em referência ao intervencionismo estatal. “O controle de preços, por exemplo. Ele fez isso pra caralho. Me desculpe, eu era o cara do controle de preços. Eu fazia isso o dia inteiro.”

Carvalho deu o exemplo dos “cuidados” tomados com o Índice Geral de Preços da FGV. Ele tinha que ficar de olho numa parte importante dos componentes do índice, determinada pelo custo de vida na Guanabara. “Dava uma geada aqui em São Paulo. Aí, de vinte caminhões de tomate que entravam por dia no Ceasa–Rio, caía pra cinco. O preço do tomate disparava. Precisava pôr mais quinze caminhões por dia no Ceasa. Como é que fazia?” A solução era ligar para o Gervásio. “Gervásio era o cara que mandava na cooperativa de Cotia, a grande produtora agrícola da época. ‘Gervásio, preciso que você me mande caminhão de tomate para o Rio.’” O responsável pela cooperativa agrícola, então, fazia exigências, que Carvalho relembra: “‘Pô, Edu, até hoje não conseguimos fazer aqueles assentamentos em Minas, as coisas não estão andando’, ele me dizia. Ligo pro Paulinelli, que era o secretário da Agricultura em Minas, e digo pra ele: ‘Paulinelli, preciso que você resolva aquele problema da cooperativa no vale do São Francisco. Eu quero amanhã. Paulinelli, quem está sustentando os seus agrônomos sou eu, sou eu que estou dando o dinheiro. Faz o seguinte: liga pro Gervásio e combina isso com ele.’”

Em algum momento, feitas as gestões, os caminhões se materializavam no Rio, e a oferta abundante reduzia os preços. O economista Edmar Bacha diz que a atenção conferida pela equipe de Delfim ao Rio de Janeiro, que pesava mais no índice da FGV, resultou em índices de inflação distintos em várias capitais do país. O IGP oficial de 1973, vigiado e manipulado, ficou em 15,5%. “Tenho um artigo da época, em que eu recalculava os índices de alimentos”, disse Bacha. ‘Onde o Delfim não controlava, todos deram 26%.”

O IPCA é calculado por uma equipe técnica do IBGE, com metodologia aberta a qualquer interessado. Mais de uma terceira parte calcula mais de um índice semelhante. Ao invés de apenas um Índice Geral de Preços, hoje os economistas olham para vários índices detalhados, com aviso prévio quinzenal. Trata-se de uma atividade bastante transparente e confiável, dado o padrão do Estado brasileiro.

Mesmo quando governantes tentaram alterar o índice de inflação com fins políticos, tiveram que adotar o caminho alternativo de controlar preços administrados. O exemplo mais bem documentado ocorreu terminou na eleição de 2014, quando o governo foi obrigado a aumentar o preço da gasolina, energia e outras tarifas públicas, revelando uma inflação muito mais alta do que o esperado.

Nenhuma mudança metodológica suspeita ocorreu nos últimos meses. Manobras como a de Delfim são difíceis e improváveis. Felizmente, o Brasil tem vários índices confiáveis para medir os preços ao consumidor. Todos eles apontam para uma das menores inflações desde o Plano Real.

* Escrito com auxílio de Pedro Menezes

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