Fernando Haddad, prefeito conhecido por seus ambiciosos planos de mobilidade urbana, parece não saber lidar muito bem com inovações privadas no mercado de transporte.

Recentemente, foram noticiados planos da prefeitura de São Paulo para regulamentar o aplicativo Uber em um sistema parecido com o de licenças de táxis. A prefeitura disponibilizaria 5 mil licenças para carros operarem por aplicativos, ao preço de R$ 60 mil, além de exigências diversas.

É um bom momento para avaliar as consequências econômicas do sistema de licenças para transporte. O fato de o sistema criar inúmeras ineficiências, especialmente devido às chamadas “rendas de monopólio” (um lucro excessivo fruto da falta de concorrência), já foi abordado muitas vezes aqui e em outros lugares. Mas um fator que considero importante passou despercebido: a maioria dos taxistas não se beneficia desse sistema perverso.

Suponha que eu tenha um vale especial do governo que me dá o direito de abonar mil reais do imposto de renda. Mas, como sou isento do imposto, resolvo vender o vale. Quanto você estaria disposto a pagar por ele?

Se houvesse um leilão, começando em R$ 100, logo alguém faria um lance maior. Afinal, um lance de R$ 101 ainda fará o licitante lucrar R$ 899, em vez de nada. Da mesma forma, vale à pena subir o lance para R$ 102, e assim por diante, até chegar a R$ 1000. Nesse ponto, os compradores no leilão estarão indiferentes entre adquirir o vale ou não. Ao fim do leilão, eu estarei R$ 1.000 mais rico, mas quem comprou o vale de mim não ganhou nada.

Em economês, todo o excedente da transação fica com o produtor (no caso, o leiloeiro). O excedente do consumidor – quanto ele estaria disposto a pagar, menos quanto ele efetivamente pagou – é nulo.

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Essa situação é um exemplo típico de monopólio. Como o leiloeiro é a única pessoa com o vale, e nenhuma outra pode entrar no mercado, pode cobrar o que quiser, desde que os compradores aceitem pagar. Não surpreende que ele buscará cobrar o máximo possível que ainda tenha valor ao consumidor – isto é, mil reais.

A analogia é representativa do sistema de licenças para táxi. A licença concede vários abonos de impostos. Ela dá acesso às rendas de monopólio do setor, garantindo o privilégio de não precisar se preocupar com novos concorrentes. Todos esses benefícios fazem com que o preço da licença aumente, até o ponto em que quem compra a licença utiliza todos os benefícios e dinheiro extra – todo seu excedente – apenas para cobrir o custo dela.

Apesar de essa prática ser ilegal, é de comum conhecimento que as licenças de táxis são comercializadas. Uma licença de táxi em São Paulo pode valer até R$ 150 mil. Não surpreende, portanto, que os taxistas defendam tão agressivamente o sistema atual, mesmo que não se beneficiem dele. Qualquer mudança no sistema pode fazer com que a licença perca todo seu valor e que o taxista perca todos os benefícios pelos quais pagou tão caro. Muitas vezes, a licença do táxi é uma economia de uma vida.

Mas, então, quem ganha com a imposição de licenças para o Uber e outros aplicativos de transporte? O mercado de licenças é restrito: elas são oferecidas por sorteio. Qualquer pessoa que ganhe a licença sem pagar nada acabou de ganhar uma espécie de loteria. Mesmo que não queria dirigir táxis, as licenças podem ser alugadas para autônomos por centenas de reais ao dia. Esse valor pode ser multiplicado, alugando a licença para pessoas diferentes em horários diferentes do dia. A licença pode ser vendida no mercado negro, levando o detentor a faturar dezenas de milhares de reais imediatamente.

Para além disso, quando uma lei que dá um beneficio extra para os portadores de licença é passada, todos eles se beneficiam. Um abono maior de imposto, por exemplo, reduz os custos ao detentor da licença, e ainda valorizará seu alvará, caso queira vendê-lo. Isso é um claro incentivo para que os donos de licenças defendam ferozmente o sistema, levando-os a investir muito em lobby. Têm muito a ganhar com leis favoráveis aprovadas nas câmaras municipais.

Estritamente falando, o apoio dos taxistas aos donos das licenças é irracional. Um agente econômico racional faz decisões incrementais (“marginais”). Se um taxista pagou vários milhares de reais por uma licença ou não, esse gasto passado não deveria importar para decisões futuras. Se todos os ganhos do monopólio dos táxis ficam com os donos de licenças, o taxista não tem nada a perder se as licenças forem abolidas. De qualquer forma, essa preocupação com o passado, evitando arrependimentos, é um conhecido viés da mente humana – a “falácia do custo a fundo perdido”.

É claro que a realidade é um pouco mais complexa: muitos taxistas são donos de licenças, ou as sublocam para outros taxistas, num mercado secundário. Mas a análise econômica levanta uma sugestão interessante. Talvez os taxistas presos ao sistema de monopólio devessem se juntar aos consumidores do Uber a favor da desregulação do mercado – em vez de tentar tornar o aplicativo um mero serviço de táxis pretos.

O sistema de licenças é um dois mais perversos sistemas de regulação. Confere ganhos absurdos aos portadores das licenças, os quais são escolhidos por critérios arbitrários. Mas esses são, também, os únicos beneficiários. O sistema prejudica os consumidores ao restringir a concorrência e levar a preços artificialmente altos, ao passo que beneficia a maioria dos taxistas em quase nada – assim como o participante do leilão que pagou 999 reais. É um típico sistema injusto que beneficia a poucos e prejudica massas que, na falta de coordenação, não podem fazer frente aos lobistas das licenças.

É nesse sistema, com uma economia política perversa, que Haddad quer transformar o Uber.

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