Por Rodrigo Viana
Se existe uma medida política do qual tento me manter distante é a tal da “reforma econômica”, muitas vezes ditas como “medidas liberalizantes” ou a assustadora “entregar para iniciativa privada aquilo que o estado não está suportando”.
Você leu certo, leitor. Eu me mantenho distante mas vou dizer por quê. Mas antes vamos ver alguns trechos de manchetes de Cuba. A primeira é a do site Aljazeera:
“‘A escola não é o suficiente nesses dias,’ diz Raiz Martinez, a mãe de uma garota de 13 anos. ‘Às vezes um professor não sabe alcançar os alunos ou não sabe a matéria direito. Eu tive que procurar por professores [particulares]’. […] Sua filha, Patricia, se reúne duas vezes por semana com seu professor particular […] para rever seus trabalhos de aula. Também duas vezes por semana ela comparece a uma pequena escola particular na vizinhança de Vedado que tem vindo a fornecer aulas de inglês por quase 20 anos.
Outra mãe, Ania Porro, ajuda seu filho com “a maioria de suas aulas”, ela diz. “Minha ajuda era suficiente enquanto ele tinha bons professores na escola de ensino fundamental. Agora que ele está na escola de ensino médio, onde existe uma carência de consistência e uma falta de professores, eu tive que colocá-lo nas aulas particulares de inglês e matemática”, ela diz.
O trabalho de professor particular foi autorizado em 2010 como uma atividade de emprego autônomo, embora professores ativos de escola pública estejam proibidos de trabalhar como professores particulares. […] Algumas pessoas empreendedoras transformaram suas casas em salas de aula e outros vão para as casas dos alunos. […] Neste mesmo mês, o jornal oficial Granma reportou que muitos professores da escola pública e outros profissionais estão oferecendo serviços violando a lei.
‘Em épocas recentes, temos visto todas as dioceses fazendo um esforço para contribuir para a educação’, diz Orlando Marquez, porta-voz da Arquidiocese de Havana. Atualmente existe diversas iniciativas educacionais sendo executadas pelas 11 dioceses do país, algumas delas gratuitas”.
Agora alguns trechos do UOL:
“O governo de Cuba decidiu reconverter os funcionários das empresas estatais de táxis em trabalhadores privados, a fim de melhorar a qualidade de um serviço ineficiente há décadas e reduzir a enorme planilha estatal…
‘[…]A decisão de generalizar esta forma de gestão’, que começou em 2010, de forma piloto, em uma empresa de táxis de Havana, busca ‘solucionar um conjunto de dificuldades’ nesses serviços, disse o jornal oficial Granma. O “sistema tradicional (estatal) não foi capaz de resolver” os problemas e “com a passagem dos anos se traduziram em uma perda de qualidade deste tipo de serviço”, admitiu o jornal.
O programa diz que os empregados das empresas envolvidas se organizem em cooperativas, modalidade que o presidente Raúl Castro privilegiou dentro de suas reformas econômicas, que estimulam o trabalho privado ou por ‘conta própria’ na ilha. Granma disse que, ‘considerando os resultados positivos’ alcançados por essa primeira agência criada em 2010 e por outras duas cooperativas formadas em 2011 em Havana e no balneário de Varadero […] a experiência se estenderá gradualmente este ano a todas as empresas estatais de táxi da ilha.
Em Cuba também existem empresas estatais de táxi que cobram em pesos cubanos […] e táxis privados…”
E, por último, no G1:
“Mais de 20 restaurantes estatais cubanos serão entregues a cooperativas, como parte das reformas econômicas liberalizantes promovidas pelo governo do presidente Raúl Castro.
[…] Todos os aspectos do negócio, da compra dos alimentos à divisão dos lucros, ficarão a cargo dos empregados. Um processo semelhante já está ocorrendo em setores como construção, transportes, mercados alimentícios e indústria leve.
…nos últimos anos também surgiram pequenos estabelecimentos privados…
Vários dos restaurantes a serem transformados em cooperativas […] atendem principalmente à clientela cubana, cobrando em pesos cubanos. “
Todas estas medidas cubanas podem ser chamadas de medidas liberalizantes também, porém elas contém um caráter totalmente diferente das medidas que acostumamos ver em países da América Latina e do Reino Unido. Tais medidas não fazem parte da chamada política neoliberal.
Não existe uma definição precisa para o termo neoliberalismo, mas para compreendermos o que isso significa precisamos antes entender a função do estado. Ora, sua função é de uma instituição que visa o roubo de terras, trabalho, recursos e bens através de monopólios para beneficiar uma elite. Dos quais os principais monopólios são o controle da terra, da moeda, da propriedade intelectual, do protecionismo e da infraestrutura de transportes. Então o neoliberalismo pode ser descrito como determinadas medidas políticas que buscam vender ativos públicos ou estatais para os interesses corporativos, geralmente sob preços muito baixos.
O processo ocorre muitas vezes para aliviar os cofres estatais (embora exista outros motivos), de modo a privilegiar uma classe dominante, a elite que conduz parte da vida econômica de uma região. O nome da ação de vendas de ativos geralmente é descrito como “privatização”, uma ação que visa buscar “reformas de mercado”. Geralmente são ações supostamente visam buscar um suposto “livre mercado”, muitas vezes recomendações vindas de alguma organização supra-nacional em busca de um “tratado de livre comércio” dirigido por burocratas. Do qual de livre só tem o nome.
Os políticos e burocratas em geral, muitos dos quais trabalham para favorecer diretamente os interesses das corporações, tendem a oferecer o patrimônio estatal para empresas com ligações políticas. Empresas estas conduzidas por corporativistas, homens de negócio fortemente apoiados pelo intervencionismo.
Tal empresa, que geralmente possui uma forte proteção através de lobby, adquire o ativo estatal em cenários de monopólio ou oligopólio. Então todo esse processo neoliberal faz entregar para uma elite corporativa um ativo onde os custos de instalação, infra-estrutura e start-up foram socializados através do espólio promovido pelos impostos.
Assim acabamos de informar como foram (e são) feitos as privatizações ao redor do mundo. E para defender a concorrência mínima (ou nula) vale tudo, como criar agências reguladoras, que protegem o mercado da concorrência, ou até mesmo práticas ilícitas, como chantagens, falsificação de documentos ou, indo a extremos, até pedidos de assassinato.
Se formos além, também podemos ver o neoliberalismo como um termo usado pela esquerda estatista em sua comumente incapacidade de compreender uma dada doutrina como um corpo coerente de ideias acessíveis a qualquer um em contextos diversos. É nesse aspecto que marxistas e social-democratas confundem a teoria liberal com o neoliberalismo, pois para estes o neoliberalismo seria uma espécie de ressurgimento das teorias liberais a partir da década de 1960.
Na realidade é necessário saber que o neoliberalismo, como descrito anteriormente, é um conjunto de reformas governamentais (disciplina fiscal, venda de ativos estatais, câmbio flutuante, abertura para o investimento estrangeiro e etc) executado para reverter um declínio quase que evidente dos países. Em suma, o neoliberalismo não é uma doutrina e tampouco uma reformulação do liberalismo, muito embora muitas dessas reformas foram utilizadas almejando as ideias liberais porém de forma torpe, desvirtuada e, na maioria das vezes, contraditórias em relação ao próprio liberalismo.
Foi este tipo de medida neoliberal que se baseou os governos de Margareth Thatcher no Reino Unido, Fernando Henrique Cardoso (e de modo similar Dilma Rousseff) no Brasil e Augusto Pinochet no Chile. Políticas que entregaram o dirigismo estatal para o capitalismo corporativo, da classe empresarial, de mercados aparelhados e cativos pelo estado e pelos corporativistas. No final, o que se segue é apenas a transferência do título de propriedade que estava nas mãos do estado para mãos privadas.
Como o estado possui forte poder de decisão no setor (às vezes até diretamente na empresa), querer separar a gestão privada para a estatal, neste cenário, não se sustenta pois o mercado não se tornou mais livre. Privilégios como socorros financeiros, prioridade na aquisição do ativo estatal, concessão de exploração de terras, imposto nulo temporário para construção, empréstimos governamentais e muitas outras formas de subsídios fazem parte desse entrelaçamento. Essa junção se constitui de maneira tão forte que é impossível distinguir um do outro, exceto por um insignificante título de propriedade. No final, esse capital privado de estruturas distintas se torna nada mais do que o braço do estado fora do ambiente burocrático.
Esta política porca, mesquinha e mentirosa é contada para a população como uma forma de melhoria social, avanço e progresso. Na verdade não passa de roubo legalizado para privilegiar uns às custas de muitos.
Se olharmos bem, as manchetes que foram mencionadas possuem uma distinção completamente distante da descrita por governos neoliberais. Note que todas elas visavam uma desestatização de baixo para cima, para as pessoas fora do grupo privilegiado. As desestatizações seguiram premissas bem condizentes com a teoria libertária: devolver o título possessório àqueles que ocuparam e empregaram seus trabalhos na propriedade estatal. Dado que o estado financiou seus ativos através de investimento compulsório, é ilegítimo que ele venda tal ativo para o primeiro endinheirado que aparecesse.
E segundo os relatos das manchetes, as desestatizações ocorreram sem privilegiar nenhum setor, sem aparelhar os mercados, deixando cada empresa sob as condições do mercado existente no momento. Por tais motivos as medidas de Raúl Castro estão de parabéns (baseado nas notícias das manchetes) e deve ser visto como um norte. Este é o modelo de desestatização que qualquer libertário deveria apoiar. Desestatização sem neoliberalismo.
O neoliberalismo não é tão popular em governos progressistas (embora presente), porém amplamente apoiado por governos de direita. Dado que muitos libertários andaram (e andam) próximos de conservadores, é natural que certos vícios da direita sejam levados para o ambiente libertário. Desse modo, muitos libertários vem caindo nesse “conto do Vigário” e apoiando o neoliberalismo como se fosse algo condizente com a filosofia libertária. Definitivamente um erro substancial se analisado com mais acurácia. Estes libertários que se conflacionam com a direita apoiam um tipo de libertarianismo mais grosseiro, inconsistente, um libertarianismo vulgar. Ou seja, um libertarianismo que, em busca de uma economia mais liberta, acaba por defender medidas que visam tão somente a manutenção do capitalismo corporativo. Para piorar, muitos dos propagadores do libertarianismo vulgar costumam atribuir características de uma economia livre para a economia atual, deturpando tanto o entendimento de uma economia livre como de uma economia intervencionista.
Para ilustrar melhor, vamos ver alguns trechos de Two words on “privatization”, de Charles W. Johnson, do livro Markets Not Capitalism:
“Existe algo chamado ‘privatização’ que tem sido um assunto caloroso pelos últimos 15, 20 anos. Tem sido um grande negócio no leste europeu, no terceiro mundo sob influência do FMI e, em alguns casos, nos Estados Unidos também. […]’Privatização’, como compreendida pelo FMI, pelos governos neoliberais e pelas corporações de barões assaltantes é um monstro bem diferente da ‘privatização’ como compreendida por radicais de livre mercado. O que libertários consistentes defendem é a devolução de toda riqueza ao povo que a criou e a reconstrução de toda indústria sobre o princípio de livre associação e troca mútua voluntária.
Então aqui está minha proposta para a reforma linguística. O que defendemos é a devolução da riqueza e indústrias confiscadas pelo estado de volta para a ‘sociedade civil’.
…quanto ao[…] modelo de ‘privatização’, novamente, a palavra não parece se encaixar muito bem na situação, e nós precisamos de algo novo a fim de ajudar a marcar a distinção… “
Neste trecho, Johnson, crítico do libertarianismo vulgar, adota uma posição ainda mais radical referente ao neoliberalismo dentro da cena libertária. Ele não apenas renega tais medidas políticas como também busca uma nova linguagem para que as pessoas absorvam melhor as ideias libertárias e a compreendam de uma forma mais clara.
Então a privatização, como entendido pelos governantes, mídia, universidades, teóricos e até para as pessoas comuns, não se encaixa bem com o modelo que Castro vem adotando em seu país. Mais ainda, não se encaixa como uma ação condizente com o que libertários consistentes almejam, que é uma economia livre sem privilegiar indivíduos ou grupos. A verdade é que a privatização está muito mais ligada à ideia de beneficiar setores econômicos na promoção do neoliberalismo.
Eu não tenho dúvidas de que o modelo de desestatização cubano é superior a qualquer um proposto pelos governos neoliberais, mesmo entre aqueles que diziam se apoiar em alguma doutrina liberal.
Eu sugeriria chamar o modelo de desestatização mais condizente com a teoria libertária como mutualização, ou seja, a entrega de ativos estatais para seus próprios trabalhadores de forma igualitária, sem privilégios para quem quer que seja. Na condição de usá-la através do apoio mútuo entre os mesmos. De qualquer modo, enquanto privatização for sinônimo desse modelo corporativista e neoliberal, desde já me coloco contrário a qualquer ação privatizante.
Agradecimento especial aos colegas Raphael Moras de Vasconcellos e Leonardo Tavares Brown pelas discussões esclarecedoras sobre o assunto.
Rodrigo Viana é programador de software e blogueiro. Em seus interesses incluem disciplinas como história, sociologia, economia e filosofia política. Já colaborou escrevendo para outros blogs políticos e atualmente colabora no Portal Libertarianismo, além de manter os blogs A Esquerda Libertária e Libversiva!. Quando não está falando sobre política, provavelmente está falando de música ou algum assunto relacionado a cultura pop. Seu twitter é @VDigo.