De onde veio nossa crise fiscal? - Instituto Mercado Popular

Com a atual discussão em torno da PEC 241 (agora PEC 55), ou a PEC do Teto, há um grande debate em relação às causas de tamanha crise fiscal no Brasil. Uma parte pequena dos economistas – encabeçada, principalmente, por Laura Carvalho – afirma que a situação atual pela qual o país passa não veio de um aumento das despesas, mas de uma queda da receita.

Os dados disponibilizados pela Receita Federal, no entanto, contam uma história um pouco diferente. Ainda que, de fato, haja uma expressiva queda conjuntural dos recursos arrecadados pela União – principalmente por estar ancorada em impostos indiretos, que recaem sobre a atividade econômica -, percebe-se uma clara tendência de longo prazo do crescimento dos gastos públicos acima do crescimento da economia, de 16% do PIB em 2004 para 19,3% em 2015, um crescimento de mais de 3 pontos percentuais de tudo o que é produzido pelo país. Desse modo, não há como negar o peso do aumento das despesas para a construção do atual cenário de crise fiscal, que, caso não solucionado, provocará outras, independentemente de aumento de impostos.

A culpada é a Constituição?

Não obstante, outra grande parte dos economistas aponta outra explicação: a atual crise econômica foi “contratada” pela Constituição, isto é, grande parte das despesas se deve ao tamanho do Estado acordado no “pacto social” de 1988. Essa tese se encontra em alguns textos dos economistas Samuel Pessôa e Mansueto de Almeida e é defendida fortemente no artigo “o ajuste inevitável”.

A tese faz sentido: nossa Constituição, ao vincular as despesas a um percentual para a saúde e educação públicas, além de prover diversos serviços previdenciários em um sistema contributivo – ou seja, os ativos pagam pelos inativos, sem poupança -, o envelhecimento da população causaria um aumento dos gastos “inercial” que, agora, estaria cobrando sua conta. Portanto, a única solução seria “renegociar” esse pacto social, de modo a evitar a trajetória explosiva dessas despesas contratadas. Nesse ensejo, a PEC do Teto retira a vinculação da saúde e da educação à receita pública e coloca um piso corrigido apenas com a inflação.

Os gastos públicos obrigatórios, tais como constam na Constituição de 1988, podem se resumir aos setores de Educação (18% da Receita Líquida da União), Saúde (13,2% da Receita Líquida da União), Previdência Social, Assistência Social (LOAS), Seguro Desemprego e Abono Salarial. De fato, os economistas do “pacto social” estão certos quando acusam o alto nível dessas despesas no Orçamento Federal, que estão acima de 10% do PIB. Entretanto, a trajetória desses gastos está longe de ter sido a responsável pelo percurso da despesa pública total, saindo de 13% do PIB em 2004 para 14,5% em 2015, um aumento de 1,5%, apenas metade do aumento total do gasto federal nesse período. O que se vê, pelos dados, é uma constante alta da diferença entre os gastos totais e os obrigatórios.

Para verificar se esse diagnóstico é o mais adequado para o problema fiscal brasileiro, é necessário fazer um exercício contrafactual analisando nossa conjuntura caso apenas os gastos obrigatórios tivessem crescido. Nessa hipótese, como estaria a situação fiscal brasileira no momento?

O Setor Público, de fato, registrou déficit primário em 2014, com um rombo maior ainda em 2015. Porém, se tivéssemos registrado, desde 2004, crescimento apenas das despesas obrigatórias, atualmente continuaríamos com superávit primário, mesmo com o PIB tendo caído 3,8% em 2015. Isso mostra, portanto, que o “pacto social” foi apenas parte pequena do problema que resultou em nossa crise fiscal.

Da onde veio a crise, então?

Nossa crise fiscal, de fato, não foi “contratada” na Constituição, mas foi formada a partir de uma brecha na Lei de Responsabilidade Fiscal. Promulgada em 2000, a LRF teve como propósito limitar o gasto público dentro de certos parâmetros, dentre eles a capacidade de pagamento por parte do governo federal. Por isso, começou a ser necessário fazer uma estimativa do crescimento do PIB e da inflação. A ideia faz sentido: quanto mais cresce a economia, maior a receita pública, e quanto menor a inflação, maior poder de compra terá essa arrecadação.

Todavia, após um cenário de redução do crescimento e pressão sobre os preços a partir de 2009, o governo federal, em suas mensagens da presidência ao Congresso antes da votação do Orçamento, começou a sistematicamente sobre-estimar o crescimento do PIB, a fim de criar uma ilusão de capacidade de pagamento de suas contas. O Gráfico abaixo mostra que, ano a ano, esse disparate começou a crescer, até chegar ao absurdo encontrado nos anos de 2014 e de 2015.

A inflação também não se salvou: em praticamente todos os anos desde 2008, ela foi subestimada, com a diferença sempre acima de 1% desde 2010, como mostra o gráfico abaixo. Assim, graças à combinação desses dois mecanismos, o governo federal foi capaz de continuamente aumentar seus gastos não obrigatórios, sem contrapartida do lado da receita. Ano a ano, foi sendo construída, dessa forma, nossa atual crise fiscal.

A PEC tem alguma coisa a ver com isso?

Pelo menos durante o tempo em que estiver em vigência, a PEC do Teto resolve o potencial problema de estimativas da economia brasileira para criar um orçamento artificial – afinal, independentemente do PIB ou da inflação, o crescimento do gasto público total será fixado a partir desta última. Por conseguinte, não haverá mais o risco de orçamentos irreais.

Porém, a PEC do Teto não realiza nenhuma reforma institucional que seria realmente capaz de dar cabo à possibilidade de usar essa estratégia. Uma alternativa, por exemplo, seria a criação de um Comitê de Gestão Fiscal, inclusive previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Portanto, não se pode culpar totalmente a queda da receita pública, tampouco o aumento dos gastos obrigatórios na “gestação” de nossa atual crise fiscal. É preciso, juntamente às iniciativas já previstas, criar uma nova forma de gestão e planejamento do Orçamento, de modo a retirar da Presidência unicamente a incumbência de estimar os rumos da economia. Se isso não for feito, como a experiência mostra, o governo federal pode criar um cenário irreal para gastar mais, por interesses diversos. E, como já se percebeu, a conta sempre acaba chegando.