Por Valdenor Júnior
[dropcaps]O[/dropcaps]utro dia aqui no blog, falei sobre o relatório da Oxfam, cujas notícias sobre o mesmo tornaram-se virais no facebook, e certamente motivo de muito xingamento no twitter. Basta ver o título das reportagem: “Os 85 mais ricos do mundo têm o mesmo patrimônio de metade da população” (BBC), “Oxfam: 1% da população detém quase metade da riqueza global” (Negócios Online), “Fortuna dos 85 mais ricos é igual à soma da riqueza de metade da população mundial” (VEJA), para dar só alguns exemplos.
Caro leitor, entendo sua vontade de logo após ler o título, ou mesmo depois de ler a reportagem, ir correndo xingar no twitter ou compartilhar no facebook indignado. Mas pare e pense por 1 minuto: “estarei eu me indignando pelos motivos corretos e será que o eu penso que resolverá os problemas do mundo de fato resolverá alguma coisa?” Então gostaria que você atentasse para algumas coisas, a fim de direcionar bem suas atitudes em relação a esse assunto. Abordarei isso nos três tópicos abaixo, explicando 1) o que é o PIB; 2) como a distribuição da renda do PIB mede trocas voluntárias que beneficiam todas as partes; 3) o que há de ruim nessa desigualdade na distribuição da renda que beneficia umas partes às custas das outras.
1) A pesquisa mediu participação na riqueza ou no PIB (Produto Interno Bruto)? PIB é igual à riqueza do país?
O leitor já deve ter ouvido falar inúmeras vezes em PIB, crescimento do PIB, etc. Mas você sabe dizer se o relatório falou em PIB ou em riqueza? PIB é a riqueza do país, ou é outra coisa?
A Oxfam não fez a medição. Ela cita este outro estudo aqui, do Credit Suisse Research. É um estudo que mede a riqueza global e sua distribuição. Dica para você guardar: Produto Interno Bruno (PIB) não é a riqueza de um país, mas sim a produção de um país em dado período de tempo. O PIB não mede a riqueza total, mas sim a produção de riqueza em dado período de tempo.
Para entender a diferença entre PIB e riqueza, usemos um exemplo mais próximo de você. O seu “PIB” pessoal corresponde à sua renda anual. Digamos que sua única fonte de renda seja salário. Se o seu salário anual é de R$20.000, este é o “seu PIB”. Contudo, você talvez tenha uma casa própria, livros, estantes, eletrodomésticos, R$10.000 em uma poupança no banco… Ou seja, você tem um patrimônio, que é diferente da sua renda anual, percebe? E se você nunca herdou nada de ninguém, você vai construindo esse patrimônio com a renda que você obtém ano a ano. Em um ano, você comprou a casa, no outro comprou eletrodomésticos, e assim por diante, com a renda obtida em cada ano ou poupada do anterior.
Então, o PIB é a renda do país em dado período de tempo, enquanto a riqueza é o patrimônio total do país. Só que riqueza é difícil de medir. A metodologia do Credit Suisse Research está explicada na página 43 de seu estudo, mas os economistas preferem ater-se ao cálculo do PIB, por ser mais preciso. Vamos ater nossa discussão aqui no PIB. Não resultará disso nenhum problema, porque a metodologia usada para o cálculo da distribuição da riqueza usa as medidas do PIB.
2. A produção da riqueza e sua distribuição entre as pessoas: alguém está roubando de alguém, ou trocas estão sendo realizadas?
“Uma das maneiras de considerar o PIB seria como a renda total de todos aqueles que integram a economia. Um outro modo de considerar o PIB seria como o total de gastos em termos da produção de bens e serviços na economia.” (MANKIW, p. 17) Mas você poderia se perguntar: como é que o PIB mede tanto a renda quanto a despesa da produção? Simples. Os dois valores são iguais. Pense: quando Joe pinta a casa de Jane por US$1.000, esses US$1.000 representam uma renda para Joe e uma despesa para Jane, de modo que a transação contribuir em US$1.000 para o PIB (MANKIW, p. 16)
Portanto, a produção mensurada pelo PIB não é um jogo de soma-zero, mas sim um jogo onde todas as partes se beneficiam. Se Joe tem 1.000 dólares de renda ao final, é porque Jane considerava melhor dar 1.000 dólares para Joe do que permanecer com 1.000 dólares. De fato, Joe tem 1.000 dólares que não estão com Jane, mas Jane tem uma casa pintada e reformada.
Logo, que existam pessoas cuja fatia no PIB mundial (ou na riqueza mundial) seja muito maior que o das outras não é o problema real, porque isso é apenas metade da história. A fatia que essas pessoas conseguiram do PIB mundial é produto de trocas voluntárias, e, portanto, corresponde a uma igual fatia de gastos de consumidores que entendem estar melhor dessa forma. Aos Joes da economia mundial, tem-se como correlato milhões de Janes satisfeitas com determinado bem ou serviço prestado. A desigualdade que é subproduto dessas trocas voluntárias e mutuamente benéficas não é um problema por si mesma.
Por outro lado, se existe crescimento econômico, isso significa que os mais pobres poderão ter uma fatia maior do PIB, ainda que menor comparativamente a dos mais ricos. Ao mesmo tempo em que vivemos em um mundo onde os muito ricos tem tanta riqueza quanto metade da população mundial, também vivemos em um mundo onde, de 1990 à 2010, a pobreza extrema foi cortada pela metade segundo dados da ONU: em 1990, 47% das pessoas vivendo nos países subdesenvolvidos viviam na extrema pobreza; em 2010, essa proporção caiu para 22%. Não adianta você olhar um ponto isolado no tempo; é preciso ver o processo ao longo do tempo. Mais recursos foram produzidos para mais pessoas, e todas podem ter mais, mesmo que algumas tenham mais do que outras.
Se a forma de enxergar o problema mencionada acima é equivocada, ao contrário do que você tende a pensar quando lê uma notícia dessas, qual é o problema real? Existe sim, e falo dele a seguir.
3. O problema real: instituições legais que conferem privilégios econômicos, incentivam empreendorismo improdutivo e desincentivam a abertura de novas empresas para concorrer com as já estabelecidas
A desigualdade no mundo é gritante. Seria bom que ela fosse inteiramente resultado de trocas voluntárias e mutuamente benéficas entre as pessoas, porque essa é a melhor forma encontrada pela humanidade por meio da qual as pessoas libertam-se umas às outras da pobreza ao longo do tempo. Mas a desigualdade hoje existente no mundo não é fruto inteiramente dessas trocas. Ao contrário, parte dela tem como causa instituições legais que conferem privilégios econômicos, incentivam empreendedorismo improdutivo e desincentivam a abertura de novas empresas para concorrer com as já estabelecidas.
Dito de outro modo: as regras que o poder político impõe, de diversas formas ao redor dos vários países do mundo, impactam sobre a desigualdade produzida por intermédio de trocas voluntárias e mutuamente benéficas, produzindo um “excedente de desigualdade” artificial, por meio de algo que, na melhor das hipóteses, é “redistribuição forçada politicamente” e, na pior das hipóteses, “roubo sutil legalizado”.
Para um exemplo radical: se o governo permite uma única empresa atuar em determinado setor da economia, a empresa enriquece com base em trocas voluntárias com os consumidores, o que, por si só, não tem nenhum problema. O problema é que, se não fosse por essa regra governamental absurda, essa empresa poderia enriquecer menos, ou mesmo falir, diante da concorrência de outras que seriam premiadas por um melhor serviço, menor preço, e assim por diante.
Dica para você: quando o governo impõe uma restrição ao livre mercado, ele está diminuindo o número de trocas voluntárias e mutuamente benéficas que serão produzidas. O pior é que é impossível saber o que teria ocorrido na ausência dessas restrições. Quantas inovações poderiam ser produzidas? Quantas pessoas teriam suas necessidades satisfeitas de outras maneiras? Isso “é o que não se vê” e por isso é difícil das pessoas perceberem que é a perda disso que precisam reclamar. É mais fácil aceitar “o que se vê” da atuação do governo e ignorar “o que não se vê” em sua atuação.
Voltemos à desigualdade global. A Europa costuma ser elogiada “pelo que se vê”, ou seja, por ter, em geral, países desenvolvidos com bons indicadores de qualidade de vida e com Estados de Bem-Estar social generosos que oferecem serviços públicos invejáveis e apoiam generosamente seus pobres. Dependendo do país, podem ser bastante igualitários na distribuição da renda.
Ocorre que existe “o que não se vê”. O que não se vê é que os modelos regulatórios da Europa impõem barreiras aos novos negócios, à inovação e ao emprego. Ou seja, grandes empresas europeias podem estar lá por anos e anos, sem deparar-se com um número significativo de empresas iniciantes (start-ups) com novas ideias comerciais que as possam desbancar, e menos empregos são gerados por altos encargos trabalhistas pagos pelas empresas já estabelecidas. Quem se beneficia? Os já estabelecidos, sejam empresas ou quem já tem emprego, “quem se vê”. Quem não se beneficia? Os não estabelecidos, sejam potenciais empreendedores, sejam desempregados, sejam migrantes, “quem não se vê”.
Isso ocorre porque a Europa é, em grande medida, baseada no que Edmund Phelps denomina de “corporativismo”: ao invés de você poder livremente começar e terminar um novo negócio, você deve sempre estar atento como suas ações empresariais afetam partes interessadas, que vão desde os sindicatos dos trabalhadores até as federações de indústrias, passando pelo próprio governo. Ou seja, você tem de consultar vários dos interesses “já estabelecidos” que, por óbvio, têm interesse em continuar estabelecidos.
Também as restrições à imigração aos países desenvolvidos precisam de severa crítica. Como já comentei em outro texto daqui do blog, a liberalização da imigração e as fronteiras abertas dobrarão o PIB do mundo e são uma forma muito eficiente de retirar milhões e milhões da pobreza. Mas isso obrigaria os países desenvolvidos a repensar e reduzir seu Estado de Bem-Estar Social, que, apesar de tão cobiçado por inúmeras pessoas aqui no Brasil, ajuda bem pouco a combater a pobreza mundial.
Outras políticas podem ser criticadas, mas cito apenas essas duas. Por que faço isso? Porque agora já deve ter ficado claro ao leitor que a maneira correta de xingar no twitter a atual dimensão da desigualdade econômica no mundo não é ater-se à desigualdade em si, uma vez que a desigualdade por si só é produto de trocas voluntárias e da produção da riqueza. Ao contrário, você precisa concentrar-se no que diminui artificialmente a quantidade e a qualidade das trocas voluntárias, no que diminui artificialmente o investimento em produção de riqueza e aumenta o investimento em captura da riqueza por meios políticos. E, para tanto, não basta apenas ler o título de uma notícia, ou mesmo a notícia inteira. Precisa entender as diversas formas, muitas delas bastantes sutis, em que isso ocorre. É muito mais complexo – e talvez mais chato – de entender. Mas é um pré-requisito para xingar no twitter.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, tem o blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Com Darwin aprendeu a valiosa lição de que entender o babuíno é mais importante do que se imagina.