Vinte anos atrás, em 1994, o melhor computador que eu conhecia era de um amigo meu, Marconi.

Marconi tinha na CPU do computador dele um adesivo com as seguintes palavras: “Nem o melhor computador do mundo consegue derrotar o homem no jogo de xadrez.” Isso era verdade em 1994. Mas em 1997, quando o Deep Blue (computador construído pela IBM) derrotou Garry Kasparov, isso deixou de ser verdade e meu amigo deixou de ter o adesivo na CPU dele.

Dez anos depois, em 2004, este tipo de questionamento sobre o que um computador consegue fazer melhor que um homem foi tema de um livro de dois professores do MIT. Em “The New Division of Labour”, Frank Levy e Richard Murnane investigaram a nova divisão do trabalho entre máquinas e pessoas. Eles concluíram que os computadores ficariam cada vez melhores nas tarefas que dependem de regras e comandos, e que podem ser reduzidas a algoritmos. Mas nós, seres humanos, continuaríamos mantendo uma vantagem nas tarefas que exigem o que eles chamaram de “Reconhecimento Complexo de Padrões”. O exemplo que deram foi a direção de um carro. Para dirigir um carro, diziam eles, os seres humanos sempre vão ter uma vantagem, pois é impossível reduzir a atividade a meros comandos e ela depende de um conhecimento desestruturado, o que os computadores não conseguiriam fazer.

Isso era verdade em 2004, mas deixou de sê-lo logo depois, quando carros autônomos, auto-guiados, começaram a tomar as ruas. Hoje, carros programados pelo Google já andaram mais de um milhão de quilômetros em vias públicas. E levaram zero multas. (O que as prefeituras farão para lidar com esse problema é assunto para outra conversa.) Até mesmo mentes brilhantes, como as dos dois professores, subestimaram o potencial dos computadores.


 


De 2004, podemos passar para 2014, já que este continua sendo um tema de conversas, disputas e contestações. Recentemente, dois professores de Oxford resolveram voltar a pesquisar quais serão as atividades substituídas por máquinas nos próximos anos. Eles acreditam que 40% das ocupações humanas tem alguma chance de serem substituídas por automação. E isso inclui desde apagar incêndios e pilotar aviões até o trabalho dos contadores e advogados. Talvez estejam errando o número, mas é muito provável que estejam acertando a tendência geral.

O sonho de um mundo automatizado, onde as coisas funcionem sozinhas, não é nada novo. Na verdade, mesmo os gregos antigos já falavam sobre isso e pensavam o assunto. Aristóteles ficou famoso por defender a escravidão, que ele julgava como economicamente necessária. Mas Aristóteles também vislumbrava um mundo em que a escravidão não seria necessária porque o mundo seria automatizado. Ele escreveu que “se a lançadeira tecesse sozinha a tela, se o arco tocasse sozinho uma harpa, os mestres não mais precisariam de operários, nem os senhores de escravos.” (Política, livro 1, parte 4)

Nunca estivemos tão perto de realizar a utopia de Aristóteles.

Hoje em dia, nós temos telas que se imprimem sozinhas, de tal maneira que há uma piada na indústria textil segundo a qual são necessários apenas dois funcionários nas tecelagens: um homem e um cachorro; o homem está lá para alimentar o cachorro e o cachorro para garantir que o homem não vai mexer em nada. Já o som da harpa é apenas uma das 450 características que o Pandora utiliza para saber o que você vai querer ouvir daqui a pouco. As harpas já se tocam sozinhas, as impressoras já funcionam sem interferência humana.

Aristóteles disse que, se isso ocorresse, escravos e operários não seriam mais necessários. Existe a parte destrutiva da criação também. E é provável que, se essa automação ocorresse na Grécia Antiga, as pessoas defenderiam algum tipo de legislação para manter a utilidade dos escravos. Algumas famílias exigiram mantê-los por lei ou exigiriam que a justiça interrompesse a criação de novas tecnologias. E isso seria tão absurdo naquela época quanto é absurdo hoje. Na verdade, hoje é a tecnologia, como capital, que consegue fazer com que a pobreza esteja diminuindo.

Isso é realmente incrível. Os últimos 30 anos foram “o período mais veloz de redução da pobreza que o mundo já viu” (YaleGlobal, 5 de Julho de 2011). Isto significa que as pessoas estão ficando mais ricas e crianças estão morrendo menos. Estamos assistindo a um declínio na mortalidade infantil, um declínio na fome e um declínio na pobreza. De 1990 a 2010, a pobreza mundial caiu quase pela metade. Desde 2005, este processo vem se acelerando. Entre 2005 e 2010, 70 milhões de pessoas saíram da pobreza todos os anos. Pense direito sobre isso: são setenta milhões de pobres a menos todos os anos. É o equivalente a toda a população do Paraguai, Uruguai, Argentina e Chile, saindo todo ano da situação de miséria.


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A pobreza nunca caiu tão rápido na história humana


Isto é extraordinário, mas essa é, na verdade, apenas a lógica do crescimento econômico e do desenvolvimento do bem estar humano. É isso o que vem ocorrendo desde a Revolução Industrial, quando houve um boom na renda per capita. A renda real média do europeu passou de 3 dólares por dia para 100 dólares por dia do início do século XIX ao final do século XX.

Se os nossos ancestrais decidissem interromper a tecnologia quando começaram a domesticar animais, as sociedades deles não estariam melhores. Quando os cavalos começaram a ser domesticados para uso humano, certamente algumas pessoas perderam seus empregos por causa da inovação. Mas qual seria a resposta adequada para isso? Certamente não deveria ser a morte dos cavalos domesticados em nome da utilidade da servidão.

Da mesma forma, nos nossos dias a resposta não é simplesmente manter trabalhos desnecessários funcionando artificialmente. Será que o melhor para a nossa sociedade é manter frentistas de postos de gasolina, cobradores de ônibus e ascensoristas de elevador ativos simplesmente mesmo que a tecnologia tenha tornado a atividade deles desnecessária?

Infelizmente, somos levados a estas conclusões por uma mentalidade que Bastiat chamava de sisifismo, mas podemos chamar de mentalidade do Homo Proletarius, que vê o trabalho como um fim em si mesmo ou como o fim da história. Mas ele é justamente o início da história. Talvez não exista um fim da história, mas se existir ele está muito mais próximo da utopia de Aristóteles do que da utopia proletária.

O grande problema desta mentalidade é que, quando olhamos para a pobreza, acabamos vendo o pobre como um eterno proletário, um eterno trabalhador, um eterno labutador. E nós não reconhecemos que a melhor coisa que poderíamos dar a esse trabalhador é justamente o capital, a tecnologia, para que ele possa ser mais produtivo. Infelizmente, a gente ainda olha para a pobreza como necessidades, e não como potencial e capacidade. Ou, como dizia o Reverendo Robert Sirico, “nós temos o hábito de ver os pobres como bocas, e não como cérebros. A partir do momento em que você vê os pobres como possuidores de recursos, e não apenas necessidades, toda a sua percepção sobre como ajudá-los se transforma.”

A mentalidade do Homo Proletarius precisa ser substituída pela mentalidade do Homo Empresarius. Numa época de destruição criadora, nós somos todos empreendedores. E isso inclui, principalmente, os mais pobres. Esther Duflo e Abhijit Banerjee são dois economistas do MIT que escreveram o livro Poor Economics – em português, algo como “Economia dos Pobres”. Eles defendem, neste livro, que garotos pobres são mais empreendedores do que os filhos das famílias de classe média ou alta, pois todos os dias eles precisam empreender para chegar ao final do dia. Eles têm tempo, esforço e recursos – ainda que pequenos e limitados – e precisam pensar em como utilizá-los da forma mais produtiva para ter uma vida melhor.

O fato é que, quando você começa a ver que a solução para a pobreza está em incentivar capacidades, capitalizando os mais pobres, você começa a pensar a pobreza de uma maneira realmente diferente.

James Tooley é um professor britânico que realizou um estudo fantástico, indo em alguns dos países mais pobres do mundo; e nestes países, foi às regiões mais pobres, até chegar às vizinhanças mais pobres destas regiões. Lá, ele quis entender o seguinte: como aquelas pessoas conseguem educar seus filhos hoje? Pois, para essas pessoas, sequer a educação oficial, pública, chega. O que eles descobriu é que, no extremo interior da Índia, por exemplo, existem escolas privadas que estão educando crianças e fazendo isto de forma sustentável, ou seja, lucrativa, e conseguindo se financiar. Elas conseguem, inclusive, ter indicadores superiores aos das escolas oficiais.


Escolas no interior da Índia: currículo flexível, mas ainda assim os indicadores são superiores aos das escolas públicas

Escolas no interior da Índia: currículo flexível, mas ainda assim os indicadores são superiores aos das escolas públicas


Eu testemunhei isso aqui no Brasil. Fui na favela do Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, e lá percebi que haviam escolas clandestinas operando. Numa delas, a coordenadora sequer queria me deixar entrar – ela achou que eu era fiscal do governo e ficou um pouco desconfiada. A escola havia começado como uma creche local, mas conforme as crianças cresceram os pais não queriam tira-las de lá, por gostarem do serviço, e hoje eles tinham turmas até a quarta série, mesmo operando ilegalmente. Um dos problemas que eles enfrentavam naquele momento é que a diretora estava negociando com o Corpo de Bombeiros para conseguir uma licença para que eles pudessem operar. É essa a solução para a pobreza? Criar obstáculos burocráticos para pessoas que querem empreender, resolvendo os problemas da própria comunidade?

Quem melhor entende os problemas de um pobre são outros pobres. Se você não permite que eles saiam da clandestinidade econômica, que tenham acesso a capital e investimento para que possam colocar em prática suas ideias empresariais, você os está condenando a continuarem como estão. Quando a gente começa a pensar no pobre como um nanoempreendedor, e não somente como um nanotrabalhador, começamos a refletir se nossa educação funciona da maneira como ela é dada.

Certa vez, eu fiz a seguinte pergunta ao senador Cristovam Buarque, ex-ministro da educação: “Senador, se uma criança pobre lhe perguntasse o que ela deveria aprender para deixar de ser pobre e ter uma vida diferente do que os pais dela tiveram, será que você diria para ela estudar as matérias no currículo do MEC, como filosofia, sociologia, geografia e biologia? Ou será que você deveria dizer para ela aprender finanças pessoais, contabilidade, legislação básica ou economia? Aprenda atividades que tornem seu trabalho mais produtivo.”

Será que não estamos condenando nossas crianças quando a gente dá uma educação de proletários, ao invés de uma educação de empreendedores para eles? Nossa sorte é que eles não dependem do que pensa a elite deste país e fazem as coisas por conta própria.

Depois da pacificação das favelas no Rio, o Sebrae começou a estudar a exuberância de negócios que existem em regiões que estão entre as mais pobres do país. Em 2012, eles haviam registrado mais de 1,700 empreendimentos só no Complexo do Alemão e a estimativa era de que mais de 92% dos negócios continuava operando fora da legalidade. E por que é importante reconhecer legalmente esses negócios e empreendimentos? É o reconhecimento legal que permite a eles transformar o seu capital físico em capital econômico – ou seja, sua posse em direito de propriedade.

O Instituto Atlântico decidiu fazer um trabalho interessante no Rio que envolve o reconhecimento de títulos de propriedade. A inspiração veio do economista peruano Hernando de Soto, para quem a pobreza global era agravada pela abundância de recursos que não era capitalizado por causa da ausência dos títulos de propriedade. O economista Mauricio Moura foi até Osasco, na Grande São Paulo, e viu que as famílias que tinham título de propriedade sobre sua casa acabavam tendo uma renda maior, já que elas podiam trabalhar sem deixar seus filhos em casa – e, assim, mesmo o tempo que as crianças ficavam na escola também passou a ser maior. Assim, a geração futura começa a ter oportunidades que a geração presente não tinha, justamente porque o pobre agora é visto como um empreendedor que pode sair sozinho de sua situação, desde que você lhe dê acesso a recursos, dando o direito a posse, propriedade e capital para eles.

Existem soluções importantes neste período de destruição criativa, como os programas de renda mínima. O grande problema da renda mínima não está na ideia em si, mas começa quando ele não está acoplado a políticas que aumentem a produtividade das pessoas. Nós, no Brasil, nos orgulhamos do Bolsa Família internacionalmente. E a comunidade internacional concorda que isto foi fantástico porque milhões de pessoas saíram da pobreza no Brasil. Só que a renda maior não veio acompanhada de uma maior produtividade. De 2002 a 2014, a produtividade média do trabalhador brasileiro aumentou em 12%; a do indiano aumentou em 73%; a do chinês, em 150%. O trabalhador chinês, que em 1960 produzia um décimo do que produzia o trabalhador brasileiro, hoje já produz quase o mesmo e já está nos superando.


Produtividade do trabalhador em 2011. De lá pra cá, a situação brasileira ainda piorou.

Produtividade do trabalhador em 2011. De lá pra cá, a situação brasileira ainda piorou.


Até Paul Krugman, economista icônico da esquerda americana, diz que no longo prazo, produtividade é quase tudo o que importa. E a produtividade é feita de capital e tecnologia. A grande história econômica de nossos tempos, como lembra Deirdre McCloskey, é justamente a saída da pobreza de milhões de pessoas na India e na China. Isso não se fez garantindo que a tecnologia não penetrasse nos países, ou que o capital servisse de inimigo das pessoas pobres. Se você coloca o pobre contra o capital, acredite: o pobre vai perder. Da mesma maneira que um soldado a pé correndo ao lado de um soldado a cavalo, o soldado a pé vai perder.

O que a gente quer quando a gente joga nossas crianças contra o dinheiro, contra o enriquecimento, quando a gente diz que o dinheiro é a raiz de todo o mal. Que ela deve se manter pobre para se manter pura? Ou de que a única forma de enriquecer é se corrompendo?

Precisamos mudar a forma como pensamos sobre a pobreza, assim como no passado mudamos a forma como pensamos sobre a cidadania. Houve uma época em que pensávamos que sociedades em que apenas pequenas parcelas da população era cidadã, como a Atenas de Aristóteles, era uma sociedade politicamente injusta. Mas a solução nunca foi abolir a cidadania, abolir o voto ou abolir a democracia. A solução era justamente dar cidadania e democracia para todos.

Da mesma forma, num tempo de destruição criativa, em que o capital e a tecnologia se tornam cada vez mais importantes, mas várias pessoas não têm acesso a capital e tecnologia, a solução não é abolir capital e tecnologia.

A solução é dar tecnologia e capitalismo para os pobres.

O texto acima foi transcrito por Pedro Menezes a partir desta palestra.

 

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