Existe um grande paradoxo na realidade política brasileira. Aqueles que usualmente se colocam como defensores da justiça social e dos mais vulneráveis, normalmente também entendem que as universidades públicas devem ser financiadas do modo que são hoje: com dinheiro de impostos. Tentativas de financiamento privado da universidade pública – por meio de empresas e fundações privadas – ou de cobrança de taxas de mensalidade e matrícula para os estudantes mais abastados – como tentou fazer, durante algum tempo, a UFMG – são rechaçados como métodos de privatização da universidade pública, gratuita e de qualidade.

Mas por que essa justaposição de defesas seria um paradoxo? A realidade é que, quando se olha para os dados do conjunto dos estudantes de universidades públicas brasileiras, observa-se que estas tendem a beneficiar os ricos de forma desproporcional. Por causa da alta concorrência das universidades públicas e da baixa qualidade das escolas públicas brasileiras, aqueles em situação econômica mais vulnerável têm pouca chance de conseguir uma vaga para estudar em uma universidade financiada pelo contribuinte.

Os dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios do IBGE mostram a realidade dessa distorção. Usando os critérios de classe desenhados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, a classe alta corresponde a 24,8% da população. Mas, nas universidades públicas, a classe alta ocupa 45,5% das vagas. Do outro lado dessa equação, as pessoas que estão hoje na classe baixa são 23,1% da população brasileira, mas apenas 8,4% da população universitária. Os dados estão expostos no gráfico abaixo (clique aqui para um gráfico com faixas de renda mais detalhadas).

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Note que esses dados são de 2013 – portanto, após os amplos ciclos de expansão das universidades federais e disseminação das políticas de ação afirmativa durante o governo Lula. Mesmo após esses processos, a universidade pública continua beneficiando primariamente os mais ricos. E isso acontece mesmo em países bem mais igualitários que o Brasil: mesmo na Noruega pobres têm dificuldade em chegar à universidade pública. Como pessoas com ensino superior tendem a ter salários maiores, essa distorção nas universidades públicas acaba financiando com impostos um sistema de aumento e perpetuação das desigualdades de renda.

Essa realidade estatística é algo que quem conhece universidades públicas já percebia intuitivamente. Certa vez, eu ouvi um professor da Universidade de Brasília dizer algo que esses dados confirmam: as universidades do governo são universidades estatais, mas não universidades públicas. Elas são universidades que, apesar de utilizarem recursos do estado, beneficiam primariamente aqueles que estão nas faixas mais altas de renda.

Existe um problema adicional nessa questão. De acordo com dados da OCDE, enquanto o governo brasileiro gasta cerca de 11 mil dólares por cada estudante de uma universidade pública, o gasto com cada estudante de ensino médio é cerca de 2.700 dólares. Ou seja, para cada estudante que é financiado pelo governo para frequentar o ensino superior, seria possível financiar quatro estudantes no ensino médio. Isso é muito importante porque, como mostram dados do IBGE, a maioria das pessoas que estão entre os mais 20% mais pobres do Brasil sequer termina o ensino fundamental.

Subsidiar a educação superior dos mais ricos enquanto os mais pobres sequer terminam os ensinos fundamental e médio resulta em transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Por isso, as universidades públicas brasileiras são um dos mais importantes mecanismos de perpetuação das desigualdades de renda que já existiu na história brasileira. Enquanto os filhos da elite são educados com o dinheiro dos contribuintes (no Brasil, majoritariamente negros e pobres), os filhos dos mais pobres terão pouquíssimas chances de conseguir entrar na universidade pública.

Uma alternativa óbvia é mudar o foco do investimento público da educação superior para a educação de base: pré-escolar, primária e secundária. James Heckman, prêmio Nobel em Economia, coletou dados durante cinquenta anos e demonstrou que os retornos ao investimento em educação, em termos econômicos para a sociedade e cognitivos para as crianças, são maiores quando esses investimentos são direcionados à educação de base – em especial na primeira infância.

Por isso, no lugar de criar programas que mandem os filhos dos ricos estudar no exterior com o dinheiro de impostos – com o Ciência Sem Fronteiras – o governo federal poderia recordar de uma promessa de campanha da Presidenta Dilma e pagar bolsas de estudo para estudantes pobres estudarem em boas escolas particulares. Além disso, para horror dos puristas, o governo poderia cobrar uma mensalidade daqueles estudantes que podem pagar – como acontece por exemplo nas universidades públicas dos Estados Unidos, onde a bolsa recebida é proporcional à renda familiar do aluno – e usar esse orçamento para incentivar a educação pré-escolar, o que garantiria melhores índices escolares para as crianças no ensino fundamental e médio e facilitaria a inserção das mulheres – em especial mães solteiras – no mercado de trabalho.

Talvez você tenha torcido o nariz ao ouvir algumas dessas propostas, mas seja pragmático e pense duas vezes. Apesar da sua paixão ideológica, a tal universidade “pública, gratuita e de qualidade”, na verdade, está ajudando a fomentar uma sociedade desigual que você não gosta. Se você, como eu, realmente se preocupa com os mais pobres e com justiça social, você precisa ajudar a mudar essa situação. E, pra isso, precisa mudar de opinião.

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