Por Felippe Hermes
Um estudo dos economistas Marcelo Medeiros e Pedro Souza, publicado pelo insuspeito IPEA, tenta apontar as causas da desigualdade de renda no país. A conclusão: o governo é um dos principais responsáveis pela desigualdade no país.
Segundo esse estudo, o governo é responsável por 1/3 da desigualdade de renda. Tal dado estampou manchetes em veículos diversos.
O que o estudo revela, mas as manchetes se esquecem de relatar, é que este percentual é bastante superior ao do setor privado se levarmos em conta a participação de cada um na economia.
Consequentemente, segundo o próprio IPEA, órgão de estudos econômicos do governo federal, o governo é proporcionalmente um maior causador de concentração de renda do que o setor privado.
A estas conclusões podemos somar os inúmeros trabalhos de teóricos liberais, das mais variadas vertentes, que se dedicam a explicar de que forma o estado age em favor do aumento das desigualdades, como é o caso dos teóricos da “Teoria da Escolha Pública” ou da “Teoria da captura”, que explica a tomada do estado por membros de corporações privadas.
Nas palavras dos dois economistas do IPEA: “O Estado não é uma instituição completamente autônoma, e suas ações, em parte, refletem conflitos distributivos preexistentes; consequentemente, em vez de reduzir desigualdades, o Estado pode, na verdade, aumentá-las”.
A seguir, algumas das conclusões do estudo sobre os fatores que levam o estado a ser um agente da desigualdade de renda:
A análise elaborada pelos economistas do IPEA demonstra uma peculiaridade do salário no setor público brasileiro em relação aos demais países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): a distância entre as remunerações do setor privado e do setor público para cargos de mesma função costuma alcançar níveis maiores no Brasil, fazendo com que o setor público, responsável por 11,6% da força de trabalho empregada no país, responda por 19% da renda, mesmo quando se considera como ligados ao setor privado executivos de multinacionais, bancos e outras empresas, que comumente apresentam uma remuneração bastante acima da média.
Não é raro encontrarmos casos de salários no Congresso ou nas câmaras de vereadores pouco situados na realidade da maioria dos brasileiros: motoristas e garçons que recebem R$ 13 mil mensais no Distrito Federal ou ainda os mais de 700 copeiros do Senado com remuneração superior a R$ 3 mil mensais.
O estudo aponta que, para cargos com similares na iniciativa privada, o governo em geral remunera melhor. No entanto, no que tange a cargos executivos nas mais de 120 estatais brasileiras, a remuneração oferecida muitas vezes passa longe da dos executivos do setor privado.
A conclusão do estudo é que é de 24% a participação dos salários públicos na desigualdade de renda do país — a qual, vale lembrar, é a oitava mais desigual do mundo.
O pouco conhecido, porém não menos perverso, viés corporativista da previdência pública brasileira é responsável — segundo o estudo — por 21% da desigualdade de renda no país, número expressivo dado o caráter restrito da aposentadoria pública.
Respondendo por cerca de 4% dos beneficiários, os funcionários públicos aposentados e pensionistas são responsáveis por cerca de 20% dos gastos com previdência no país.
Em números mais claros, os cerca de 935 mil funcionários públicos aposentados e pensionistas geram um déficit anual de R$ 62 bilhões contra um déficit previdenciário de R$ 35 bilhões ocasionado pelos 28 milhões de aposentados do INSS. E isto leva em conta apenas o setor público federal.
Há casos como o do estado do Rio Grande do Sul, onde os funcionários aposentados são tão numerosos quanto os funcionários na ativa, em que o estado chega a despender mais recursos com pensões e aposentadorias do que com educação e saúde somados. Este custo em boa parte decorre do fato de que, até bem pouco atrás, funcionários públicos do estado não eram obrigados a pagar contribuição previdenciária.
Ao todo, 4% da população brasileira vive em domicílios com presença de algum beneficiário de aposentadoria do setor público. Somados, os beneficiados com uma aposentadoria do setor público (que representam 0,47% da população) respondem por 6% da renda auferida por todos os domicílios brasileiros.
Nenhum outro fator de renda gera, proporcionalmente, maior contribuição para a desigualdade no país.
O Brasil é um dos países com maior gasto público em relação ao PIB no mundo: cerca de 40% do PIB, bastante acima de países em igual situação de Desenvolvimento Humano. Para sustentar todo esse gasto é necessário haver um sistema tributário agressivo. E o sistema tributário brasileiro é um dos principais responsáveis pela má distribuição de renda no país.
Segundo um estudo apresentado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, 53,8% da arrecadação tributária brasileira é paga por trabalhadores que recebem até 3 salários mínimos. Outro estudo, desta vez realizado pela Firjan, aponta que 1 em cada 4 brasileiros desconhecem o fato de que pagam impostos.
Isso comprova que a ignorância econômica e financeira é um grande entrave para que a população entenda de fato a origem de todos os “direitos” concedidos pelo estado.
Ainda segundo o mesmo IBPT, no Brasil, os setores de educação e saúde — dois bens e serviços que a população considera um “direito” — são um dos mais taxados do país, fazendo com que o mesmo estado que tributa para ofertar tais serviços impeça o seu acesso pela população, restringindo a educação no país, o mais relevante fator de mobilidade social moderno.
A situação, entretanto, parece pouco afetar aqueles que se auto-atribuem o papel de defesa da população mais pobre: os políticos. Sempre que estes falam em reforma tributária, eles se concentram exclusivamente emaumentar impostos sobre os mais ricos, e não em reduzir impostos sobre os mais pobres. A intenção sempre é aumentar a arrecadação, e nunca desonerar os mais pobres.
O ex-senador Cristovam Buarque, por exemplo, quer o fim da restituição no imposto de renda para gastos com educação. Já o PSOL tem como principal bandeira o imposto sobre grandes fortunas. Em ambos os casos, há apenas a intenção de ampliar a renda do estado.
O caráter restritivo no qual a educação pública brasileira se baseia é uma construção de décadas, não podendo ser erroneamente confundido com uma política deliberada de governos específicos. Entretanto, a pouca disposição a mudanças é traço comum a todos os governos, e sua crença de que o problema encontra-se no número limitado de vagas, e não no modelo em si, é um dos responsáveis por manter o setor estático.
A escolha do governo federal de apoiar o ensino superior é responsável por boa parte das distorções do setor. Quando comparado a países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é o país com maior diferença entre gastos no ensino superior e no ensino fundamental. O país gasta com o ensino superior 93% de seu PIB per capita, por aluno, enquanto no ensino fundamental o número atinge 23%. Em relação a outros países em situação similar, como México e Chile, gastamos ainda um percentual maior do nosso PIB com educação, 5,6% contra 5,2% e 4,5%, respectivamente. Gastamos mais e pior.
Segundo um estudo apresentado pelo IBGE, 59,9% dos estudantes de universidades federais estão entre os 20% mais ricos da população brasileira. E mais de 2/3 deles são oriundos de escolas particulares.
Considerando-se que o setor público gera 1/3 das vagas no ensino superior, isso significa que, para os 9,5% da população brasileira que estudam em escolas particulares, as chances são, em média, de 15% de entrarem em uma universidade pública. Para o restante que estuda em escola pública, as chances são de 1%.
E, quando observamos a situação em cursos distintos, vemos que os percentuais maiores de alunos com renda familiar de até 3 salários mínimos que frequentam o ensino superior público situam-se no curso de letras; e os menores, no curso de engenharia.
A histórica dificuldade do Brasil em formar poupança e investimentos, decorrente em boa parte da instabilidade política e econômica do país que trocou de moeda inúmeras vezes ao longo do século XX, além de um confisco na poupança e 10 moratórias na dívida externa ao longo do mesmo século, é base de uma crença na necessidade do estado como indutor do crescimento econômico nacional, crença que em maior ou menor intensidade sobrevive no país desde o getulismo dos anos 30.
Tal crença, de que o estado deve agir para garantir investimentos, levou à criação de um banco específico no país para atuar nesta área, garantindo subsídios e prazos confortáveis para o setor privado florescer no país. O BNDES foi criado ainda na década de 1950 pelo segundo governo Vargas, e mantido por todos os governos que se seguiram. Também foram religiosamente mantidas em constante desordem as contas públicas, a alta inflação e outras tradições nacionais
Nenhum governo, entretanto, nem mesmo os militares com seu lema de “fazer o bolo crescer para só depois dividi-lo”, deu tanto poder ao banco de fomento como o fez o governo Lula.
Na era Lula, o BNDES inicialmente foi comandado por Guido Mantega, que deixou o banco para assumir o Ministério da Fazenda, enquanto Luciano Coutinho, ex-professor da Unicamp e um dos formuladores da antiga Lei da Informática, assumiu a presidência do banco.
Sob o comando de ambos, o BNDES recebeu aportes bilionários por parte do Tesouro Nacional, destinados a elevar o investimento na economia brasileira, saltando de R$ 9,9 bilhões (0,4% do PIB) para R$ 414 bilhões (8,4% do PIB) em um período de 7 anos.
Para emprestar o dinheiro ao banco, o Tesouro capta recursos por meio de emissão de dívidas, pagando juros muitas vezes superiores a 13% ao ano (juros esses arcados inteiramente por nós, pagadores de impostos). O BNDES, por sua vez, repassa os empréstimos a um custo menor do que 6% ao ano, criando uma diferença que se pode chamar de subsídio ou simplesmente “Bolsa-Empresário”. [Clique aqui para entender os detalhes da operação do BNDES].
Não bastasse favorecer diretamente empresários com recursos pagos pela população como um todo, o banco declara que mais de 70% de seus empréstimos destinam-se a grandes empresas, com faturamento superior a R$ 300 milhões anuais. Segundo estima o Tribunal de contas da União, tal prática resultou em um subsídio de R$111,5 bilhões entre 2009 e 2015 (a prática continua em vigência).
Não são raros os casos de prejuízos do banco em apostas arriscadas, como os financiamentos superiores a R$ 10 bilhões ao Grupo X, de Eike Batista, ou a aposta em frigoríficos como o Bertin e o Marfrig, os quais, para evitar falência, foram levados pelo banco a uma fusão com o frigorífico JBS, um dos maiores beneficiários da política de subsídios, como também o maior doador de campanhas eleitorais do país.
Na ocasião da falência do grupo X, de Eike Batista, os ministros Guido Mantega e Fernando Pimentel dedicaram-se pessoalmente a levar para o porto de Eike, no estado do Rio de Janeiro, um estaleiro de Cingapura que estava sendo construído no estado do Espírito Santo. Esse caso foi denunciado pelos próprios cingapurianos e levado à mídia pelo governador do estado do ES. O termo técnico dado a esses empresários é o de “rent seekers”, ou “caçadores de renda”.
Inúmeras outras ações deliberadas do governo contribuem para formar ou garantir a continuidade da concentração de renda, como o acesso desigual à justiça, direitos de propriedade vagos ou nulos, concessão de monopólios, de patentes e direitos autorais etc. Enumerar todas é uma tarefa quase impossível, pois o estado esta intrinsecamente ligado ao restante da economia, não sendo uma entidade à parte, que apenas arbitra interesses do setor privado.
A desigualdade é natural e inata, mas se torna um problema quando é gerada artificialmente. Quando isso ocorre, ela se transforma em uma maneira de barrar a mobilidade social e a busca pela auto-realização, que é o que sustenta as inovações e o desenvolvimento humano.
Quando um grupo age de forma coercitiva com o intuito de sustentar seus privilégios, não há nenhum ganho para a sociedade. E é isso o que fazem todos aqueles que utilizam o estado para manter seus privilégios.
Felippe Hermes é estudante de economia na Universidade Federal do Ceará e foi um dos fundadores do Grupo Dragão do Mar. Seu texto foi originalmente publicado aqui.