Dentre as maiores necessidades humanas para uma vida digna, o acesso à água tratada talvez seja a principal. As Nações Unidas declararam a universalização do saneamento básico como um Objetivo do Milênio e, alguns anos mais tarde, também um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável. Poder usar água limpa é uma das condições mais básicas de dignidade para serem garantidas para toda sociedade.
Saneamento básico não é apenas um investimento social, mas também econômico. Não é importante apenas para quem mais precisa, pois deixa toda a sociedade mais rica – e por vias muito eficientes. Além das mortes que poderiam ser evitadas, o acesso à água limpa previne diversas doenças infecciosas, muitas das quais inclusive são muito presentes na primeira infância. Más condições de saneamento comprometem grande parte da formação cognitiva, essencial para o desenvolvimento de capital humano no futuro. A alta recorrência dessas doenças gera gastos em saúde pública, menor aprendizado na escola e, posteriormente, menor produtividade no trabalho. E as mortes, afinal, não são desprezíveis: aproximadamente 1,7 milhão das crianças com até 5 anos morrem anualmente por más condições sanitárias. É a causa de 1 a cada 4 mortes nesta faixa etária.
Diversos estudos empíricos já avaliaram o impacto do investimento em saneamento básico. Estima-se que, para cada dólar investido em água limpa nos países em desenvolvimento, haveria em um retorno global de 5 e 28 dólares, respectivamente. Talvez só no bitcoin se encontre retorno mais alto.
No Brasil, estima-se que, a cada R$1 investido pelo governo em saneamento básico, o sistema de saúde economiza R$4 apenas no tratamento de doenças. Essa quadruplicação ainda ignora a potência liberada caso toda criança brasileira tivesse acesso adequado a água e esgoto.
Apesar dos altos retornos sócio-econômicos garantidos pelo maior acesso à água limpa, o Brasil tem andado de lado no que se refere à saneamento básico. Mesmo após a aprovação em 2007 da “Lei de Saneamento” (11.445/07), segundo a Associação de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcom):
“[A]o contrário das expectativas, o País não avançou para um estágio mais próximo da universalização dos serviços. Ao completar 10 anos da Lei de Saneamento, o Brasil convive com indicadores no setor que estão longe de serem satisfatórios. Foi uma década perdida”.
O gráfico abaixo mostra que, em termos de indicadores, pouco foi feito desde 2007. Naquele ano, 19,1% da população não tinha acesso à água do sistema de saneamento brasileiro, tendo se reduzido para apenas 16,7% oito anos depois, em 2015, ou seja, uma redução anual média de míseros 0,3%. Nessa velocidade, o Brasil teria água para todos seus habitantes apenas em 2070.
Já em relação ao atendimento de esgoto referido aos municípios atendidos com água, a situação é ainda pior, ainda que tenha tido maior melhora. Em 2015, quase metade da população dos municípios atendidos com água não tinham tratamento da mesma, frente a 64% em 2007, uma taxa anual média de queda de 1,87%. Mantido esse ritmo, apenas em 2057 todos os brasileiros dos municípios atendidos com água terão tratamento de esgoto.
Mesmo com alarmantes níveis de atendimento (ou de ausência dele), os recursos para o setor se mantiveram estagnados no nível municipal e estadual, após uma volátil trajetória de 2007 a 2013, e caíram no nível federal. O nível do investimento tem se mantido extremamente aquém das necessidades do país, em torno de 0,2% do PIB, como mostra o Gráfico abaixo.
Entre 2007 e 2015, devido à Lei de Saneamento Básico, a iniciativa privada pôde começar a investir efetivamente no setor, tendo saído de um investimento de apenas 760 mil no início do período, para chegar a 2 milhões e 590 mil oito anos depois, um crescimento acumulado de 243%. No mesmo período, houve um aumento de 65% dos recursos estaduais e municipais, uma queda de 5% no crédito do BNDES destinado ao setor e uma redução de 78% dos montante investido pelo Governo Federal, como mostra o Gráfico 4 abaixo.
O atual nível de investimento para saneamento básico não é suficiente para universalizar os serviços de água limpa na velocidade necessária. Com um nível de gasto tão baixo, menor que o orçamento do Bolsa Família, seria possível realocar uma pequena parte do orçamento a fim de acelerar o crescimento desse setor.
No entanto, tendo em vista a crise fiscal dos estados e municípios, o teto de gastos em vigor e a dificuldade em aprovar uma Reforma da Previdência, que a cada ano que passa aumenta seu peso sobre o orçamento público, dificilmente o setor público terá capacidade de realocar suas despesas para investimentos em saneamento básico. Tendo em vista essas barreiras, é preciso estimular a iniciativa privada a investir no setor, de modo que os brasileiros possam esperar o dia em que todas as suas casas terão acesso à água encanada limpa e seus rios não serão despejo de esgoto. Assim, será possível o Brasil superar finalmente essa agenda do século XIX e enfrentar outros problemas mais desafiadores para o século XXI.
Escrito em parceria com Pedro Cavalcante