Recomendamos a leitura prévia deste resumo sobre a Lei de Repatriação.
Após encerrado o prazo para a adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), se iniciou uma nova fase do procedimento que visa arrecadar bilhões de reais não declarados.
Segundo dados apresentados pela Receita Federal, cerca de R$ 51 bilhões foram recolhidos aos cofres públicos por meio de 25 mil pessoas físicas e 103 empresas através da regularização de ativos do exterior. Acreditando que esse resultado é uma vitória, o atual Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, está confiando numa possível segunda rodada, que já contaria com a sinalização positiva de Renan Calheiros, presidente do Senado Federal.
Mas será que podemos dizer que foi esse sucesso todo mesmo? Em caso de nova tentativa, o que poderia melhorar? Conforme será exposto a seguir, os incentivos nas esferas administrativas e criminais não devem explicar a adesão ao programa.
O Brasil passa por uma crise financeira – que dispensa maiores comentários neste texto. Isso fez com que o governo buscasse novos meios de arrecadação. Apesar de relativamente recente no país, tal medida não é tão inovadora assim, e já foi executada com níveis de sucesso distintos em países como África do Sul, Alemanha, Chile, Espanha, entre outros.
Paralelamente, o Brasil aderiu à Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com isso, ficou mais fácil para as autoridades brasileiras terem acesso à informações fiscais em países membros do acordo, da mesma forma que se dispõe a auxiliar mutuamente outros estados que solicitarem nossa ajuda. Esse fato teria estimulado as pessoas com bens em situação irregular no exterior a se apresentarem à RFB, tendo em vista a facilidade com que seriam descobertos e acabariam respondendo administrativa e penalmente por tais desvios.
O problema com esse argumento é que, diferente do que é difundido em alguns veículos, o acesso a dados no exterior não será, a princípio, automático e simples. Essa é uma possibilidade que a Convenção abre aos estados-membros. Sua finalidade é poder afastar algumas formalidades no pedido de acesso e expedir a troca de informações.
Porém, a cooperação é, ordinariamente, instrumentalizada por meio de um pedido formal, que deve conter informações e documentos que demonstrem os motivos pelos quais a autoridade de um país tem interesse em determinadas provas no estado requerido. Ou seja, o acesso não é – e não será – irrestrito às bases de dados estrangeiras, estando a prestação do auxílio sempre pendente de análise do nexo de causalidade entre as informações solicitadas, sendo estas o país envolvido, o tributo a ser aplicado e os fatos que já são de conhecimento das autoridades requerentes.
Em outras palavras, se o Brasil quiser obter informações no exterior, nossas autoridades precisarão já ter iniciado um procedimento administrativo ou uma investigação por aqui, de modo a embasar esse pedido formal.
Ademais, institutos avançados de cooperação, tais como troca automática, dependem muito do amadurecimento da confiança na relação entre países e autoridades envolvidas. Recém signatário, o Brasil ainda precisa construir isso e, com certeza, levará alguns anos.
Outra falha nesse argumento do “medo de ser pego” recai no fato de que o compartilhamento de informações fiscais para fins de persecução criminal sempre foi uma questão controversa na seara da cooperação jurídica internacional. Muitos países, em especial os membros da OCDE, não possuem tipificação de crimes fiscais, o que muitas vezes impede o envio de informações para autoridades estrangeiras. Tomemos como exemplo a seguinte situação: a Suíça pode quebrar o sigilo bancário para ajudar investigações brasileiras numa miríade de crimes, como tem acontecido na Operação Lava-Jato, mas tem uma posição bem restritiva quanto a usar essas provas para crimes fiscais ou cobrança de tributos.
Essa convenção da OCDE, segue essa visão e deixa a cargo dos estados requeridos a faculdade de compartilhar informações também para fins penais. Na prática, os países que podem prestar auxílio na esfera criminal já fazem isso há tempos, inclusive na cooperação com o Brasil, com base em outros tratados.
E mesmo após obtida a informação para fins tributários, pelo princípio da especialidade, o uso fica restrito para instruir o procedimento indicado no pedido formal, sendo vedado o compartilhamento sem o consentimento prévio do Estado requerido. Isto é, pode usar para cobrar imposto, mas não para incriminar alguém por não ter pago este mesmo imposto.
Nesse sentido, a adesão do Brasil a esse acordo muda muito pouco – ou nada – na persecução de crimes fiscais por aqui. Isso porque não resolve um dos principais problemas na incriminação da evasão de divisas, que é justamente a dificuldade na identificação de ativos no exterior e obtenção de provas válidas e contundentes – tais como extratos bancários e registros de empresas.
Portanto, não faz sentido defender que o maior estímulo para essas repatriações foi o aumento na probabilidade de responder criminalmente por evasão de divisas e crimes correlatos.
Na esfera administrativa, de fato ficou mais fácil para a Receita Federal conseguir dados das autoridades estrangeiras, o que, em tese, facilita a identificação de ativos não declarados e passíveis de tributação e multa. Contudo, algumas limitações nessa seara também reduzem a probabilidade de ser pego.
A maior delas é relativa aos prazos prescricionais, que no Brasil é de apenas cinco anos. Na necessidade de se obter informações no exterior para prosseguir com o lançamento do crédito, tal fato é um grande dificultador. Ainda, um pouco mais flexível, a Convenção da OCDE estipula que não há obrigatoriedade de compartilhamento de dados decorrido quinze anos da data do título executório inicial.
Apesar do valor inalcançável pelas vias tradicionais no âmbito criminal e administrativo, é possível dizer que todos os fatores apresentados podem ter reduzido a adesão em geral, principalmente de pessoas jurídicas. É muito difícil, no entanto, acreditar que apenas 103 empresas estavam aptas para aderir ao RERCT.
Ainda precisamos ter acesso a dados mais detalhados para tirar maiores conclusões a respeito desse programa, tais como países de origem – a lei local pode ter influenciado a decisão de retorno ao Brasil, por exemplo -, média paga discriminado por tipo de tributo, e se pessoa jurídica ou física.
Uma hipótese é que, mais uma vez, a simplicidade da estrutura foi decisiva para aqueles que optaram por se adequar às normas tributárias. Diferentemente do que acontece na legislação tributária brasileira na maioria das vezes, esse caso é muito simples de entender e submeter o pedido de adesão.
Outra possibilidade é que o foco tenha sido maior nos incentivos negativos – não ser preso ou ser descoberto pela RFB -, ao invés de positivos – como redução das multas a serem aplicadas ou deduções nos próximos exercícios.