No dia 30 de junho de 2015 a Câmara dos Vereados do Município de São Paulo votou, em primeiro turno, o PL 349/2014, que visa, em tese, de acordo com sua ementa, proibir na cidade de São Paulo o “uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte remunerado individual de pessoas”. O art. 1º quase que reproduz a ementa, apenas acrescentando que os veículos devem sair de locais pré-estabelecidos. Todavia, referido projeto de lei encontra-se, salvo maior juízo, eivado de inconstitucionalidade por usurpar competência exclusiva da União e ainda legislar em desacordo com lei federal. Vejamos:
A regulamentação da atividade exercida por motoristas de táxi é concorrente, por ser este de interesse local (CF/88, Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local). Os Municípios têm competência para aprovar leis locais de acordo com suas particularidades. E a União tem competência para regular os requisitos gerais que devem funcionar como balizas para as leis municipais, de acordo com o princípio da hierarquia das normas (CF/88. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: IX – diretrizes da política nacional de transportes). A lei federal 12.468/2011 regulamenta a profissão de taxista. Ela determina em seu Art. 2º que: “é atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros“. Em seguida lista uma série de requisitos e condições que o motorista de táxi deve preencher para exercer referida profissão.
Devido a grave crise de mobilidade urbana enfrentada pela maioria das cidades brasileiras, em 2012 foi promulgada pela União a lei federal 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Seu Art. 4º define transporte urbano como “conjunto dos modos e serviços de transporte público e privado utilizados para o deslocamento de pessoas e cargas nas cidades integrantes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”. A lei continua no mesmo artigo definindo as diferentes modalidades de transporte urbano. Entre elas importante destacar as seguintes:
Em resumo, a lei define:
Todavia, a lei não define os serviços de transporte privado individual. Quando esta define “transporte motorizado individual” ela não se refere a um serviço, apenas a um tipo de transporte. Ou seja, os serviços de transporte oferecidos de forma privativa não são, atualmente, regulados, e por sua vez, justamente por serem privados, não podem ser considerados ilícitos uma vez ausente regulação específica.
E é justamente nesta modalidade que se encontram os motoristas particulares privados que utilizam a plataforma da Uber para oferecer seus serviços.
A Lei Nacional de Mobilidade Urbana, ao deixar de fora o conceito de serviços de transporte privado particular, estabelece uma distinção entre estes (que não encontram definição em qualquer outra norma no ordenamento jurídico brasileiro) e os serviços de transporte público individual (já definidos).
Em oportunidade anterior descrevi o funcionamento da plataforma oferecida pela Uber e também analisei alguns de seus aspectos legais.
O serviço de transporte viabilizado pela tecnologia da Uber não é, por sua vez, um serviço público ou de utilidade pública, porque a lei não o caracteriza como tal. Serviços somente detém referida natureza jurídica se esta for atribuída por lei.Também não se trata de um serviço privado que precisa de uma autorização pública para funcionar, pois assim não restou definido em lei. Trata-se de um serviço publicamente acessível, que detém uma natureza jurídica distinta, não regulada.
Desta forma, atualmente, existe um hiato legislativo com relação aos serviços ofertados através do modelo Uber e da sua plataforma. De fato, qualquer nova modalidade de serviço público somente pode funcionar com regulação própria e anterior. Todavia, esta é justamente a principal razão porque o modelo Uber é constitucionalmente protegido: porque este pode ser considerado pela lei um serviço de transporte privado individual, que não pode ser considerado um serviço público, e, portanto, desnecessária a regulação para ser ofertado.
Ademais, salvo maior juízo, não poderia o Município legislar sobre serviços de transporte privado individual por ausência de competência outorgado pelo texto daConstituição Federal. Segundo o art. 30 da CF/88, podem os municípios legislar sobre assuntos de interesse local. Desta previsão decorre a competência para promulgar leis sobre os serviços de táxi. A CF/88 confere exclusivamente ao Município a competência para regular serviços públicos de interesse local, incluindo o transporte coletivo. Mas não para regular transportes privados. Essa faculdade foi conferida a União.
O art. 22 da Constituição estabelece que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes da política nacional de transportes. E assim o fez através da lei federal 12.587/2012, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Esta lei regulamento o inciso IX do referido artigo da CF/88 e estabeleceu balizas, tanto para os Estados quanto para os Municípios, sobre a disciplina dos transportes. Quanto ao Município, esta determinou que:
E complementou, no art. 12-A, que o serviço de táxi poderá “ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local”. Ou seja, não foi conferido a municipalidade a competência para legislar sobre transporte privado individual de passageiros.
O Supremo Tribunal Federal já teve, inclusive, a oportunidade de se pronunciar sobre tema similar, afirmando que cabe ao Município legislar sobre transporte público, mas não sobre modalidades de transporte privado individual:
Desta feita, o PL 349/2014 que visa regular, ao proibir, a atividade de transporte privado individual de passageiros mediante remuneração, o faz em desacordo a competência lhe outorgada pela Constituição Federal e as balizas sobre transporte estabelecidas em lei federal que implementou o Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Portanto, não só o PL corrobora o fato desta modalidade de transporte não ser atualmente regulada, mas ao tentar normatizá-la, o faz por meio de usurpação de competência constitucional. Portanto, como já dito:
A Uber não oferece serviços de táxi, muito menos de transporte clandestino e não autorizado de passageiros. O Uber oferece um serviço ainda não regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro. E o fato deste não estar regulado não significa que este é ilícito.
Num Estado Democrático de Direito, deve imperar o contrário: caso não sejam expressamente proibidos, os serviços oferecidos por empresas e empreendimentos privados são legais.