Por Leonardo Cavalcanti
– “Ah, miseráveis criaturas! Vocês pensam que são tão grandes! Vocês, que acham a humanidade tão pequena! Vocês, que querem reformar tudo! Por que não se reformam vocês mesmos? Esta tarefa seria suficiente!”
Estava eu no caminho de casa, como num fim de dia qual, quando fui surpreendido por um pronunciamento feito pelo Governo Federal durante a Voz do Brasil. Sim, sim, antes que você me julgue, não faz parte da minha rotina uma sessão diária de sadomasoquismo (apesar dos trechos humorísticos) após o trabalho, mas enfim, não é sobre isso que vim falar hoje.
Vim falar sobre o que correlaciona a minha pequena citação acima, de 165 anos atrás, e a fala da Presidenta da República uns quinze dias atrás. Pois bem. No dia 26 de fevereiro, o governo federal lançou o Programa Bem Mais Simples, com o objetivo de desburocratizar a abertura e o fechamento de pequenas empresas. Em seu discurso para a imprensa, Dilma Rousseff comemorou a aplicabilidade da nova legislação, que prometia aliviar um pouco a vida dos empresários brasileiros, e arrematou: “A partir de agora, a baixa do CNPJ passa a ocorrer na hora. (…) Por muito tempo, sempre foi comum ouvir a frase: ‘No Brasil, é impossível fechar uma empresa’. Essa frase entra hoje para a história. Porque, a partir de agora, é possível, sim, fechar uma empresa, e na hora”.
O que Dilma talvez não saiba – ou melhor, com certeza não sabe – é que a mesma pessoa que pediu uma reforma dos reformadores há 165 anos também nos ensinou que economia é aquilo que se vê e também o que não se vê. Dilma ignora as duas frases, mas não é só ela quem faz isso. Na comunidade jurídica, houve aceitação geral de que a nova lei traz benefícios inquestionáveis, e apenas isso. E aqui estou falando de pessoas que, independentemente de sua ideologia, teriam de ser contrárias à nova lei. Explico o porquê.
Acho que é um pouco chover no molhado falar sobre o quão difícil é empreender no Brasil, mas insisto: no levantamento Doing Business, em que o Banco Mundial mede a facilidade de abrir uma empresa em cada país , nossos burocratas ajudaram o Brasil na conquista da 123ª colocação (Centésima. Vigésima. Terceira.) na velocidade para abrir um negócio. O mesmo relatório nos lembra que, hoje, para efetivamente levar a cabo tal decisão empresarial corajosa, para não dizer insana, são necessários aproximadamente 108 dias. Ou 108 vezes mais dias do que a Nova Zelândia, para pôr em perspectiva.
Muitos vão pensar: “Ué, se o governo está atrapalhando os empreendedores, nada mais justo e viável (e improvável) que este mesmo governo retire alguns dos obstáculos criados por ele mesmo”. Verdade. Mas isto só pode ser dito se analisarmos quais foram as medidas anunciadas pelo governo para tentar retirar estes obstáculos.
Vejamos: cortar exigências e procedimentos burocráticos no âmbito municipal, estadual e federal seria muito difícil a curto prazo, e o governo sabe disso. A lei aprovou apenas planos de ação com objetivos genéricos e difusos para combater a falta de integração entre os entes da federação. Enquanto isso, o empresário brasileiro se distrai nas 2600 horas que ele gasta, em média, para declarar seus tributos.
Para fazer mais do que algumas reformas pontuais e um pequeno aprofundamento dos benefícios da legislação antiga, o governo precisava de mais. Ele precisava de algo para vender e para gerar capital político. E se estava difícil mudar a abertura e a operação a curto prazo, nada mais lógico que desburocratizar apenas o fechamento.
Lembram do relatório Doing Business? Ele cita um último dado igualmente interessante: o prazo para resolver situações de insolvência (empresas que encerraram atividades com dívidas) no Brasil, hoje, é de aproximadamente 4 anos. O governo, ao gritar “agora é bem mais simples”, transformou tudo isso em 1 dia com uma simples canetada, num plano de metas que faria qualquer JK morrer de inveja.
Só que ao fazer isso o governo não considerou o óbvio: grande parte das empresas que precisam fechar tornaram-se insolventes exatamente por conta da grande e confusa quantidade de obrigações tributárias que, invariavelmente, transformam-se em dívidas. Para quem nada deve, a burocracia ou não do fechamento em si é um mero detalhe. Se a nova lei não prevê qualquer forma de perdão ou remissão, para onde vão todas as dívidas da empresa agora não mais empresa? Vejamos o que diz a nova lei:
“Art. 9º O registro dos atos constitutivos, de suas alterações e extinções (baixas), referentes a empresários e pessoas jurídicas em qualquer órgão dos 3 (três) âmbitos de governo ocorrerá independentemente da regularidade de obrigações tributárias, previdenciárias ou trabalhistas, principais ou acessórias, do empresário, da sociedade, dos sócios, dos administradores ou de empresas de que participem, sem prejuízo das responsabilidades do empresário, dos titulares, dos sócios ou dos administradores por tais obrigações, apuradas antes ou após o ato de extinção.
§ 4º A baixa do empresário ou da pessoa jurídica não impede que, posteriormente, sejam lançados ou cobrados tributos, contribuições e respectivas penalidades, decorrentes da falta do cumprimento de obrigações ou da prática comprovada e apurada em processo administrativo ou judicial de outras irregularidades praticadas pelos empresários, pelas pessoas jurídicas ou por seus titulares, sócios ou administradores.
§ 5º A solicitação de baixa do empresário ou da pessoa jurídica importa responsabilidade solidária dos empresários, dos titulares, dos sócios e dos administradores no período da ocorrência dos respectivos fatos geradores.
Não é genial? O empreendedor simplesmente assume tudo. Em outras palavras, as dívidas que antes ainda poderiam ser discutidas na justiça, agora não podem mais. Se antes o governo precisava comprovar fraudes e irregularidade para poder executar o patrimônio do gestor dos negócios, com a nova lei nada disso é mais necessário.
A “baixa automática” nada mais é do que uma autorização expressa para o Fisco buscar livremente e sem qualquer burocracia o patrimônio pessoal do responsável legal pela empresa – ignorando, por exemplo, a teoria da personalidade jurídica e da responsabilidade limitada, exaustivamente vendidas (pelo próprio governo!) como motor da atividade empresarial. Em outras palavras, a nova lei dá a pá ao empresário para cavar sua própria cova ao lado da vala onde o estado jogou sua falecida empresa.
O Bem Mais Simples, que deveria ser um plano de desburocratização da atividade empreendedora, não diminui em nada a dificuldade em fechar uma empresa no país; ele apenas faz com que a dor de cabeça deixe de ser assumida pelo empreendedor enquanto pessoa jurídica. Como pessoa física, segue um penoso processo que pode a ser até pior, já que burocratas agora tem o poder discricionário de executar seu patrimônio.
A realidade seria diferente se o governo estivesse realmente disposto a facilitar a vida do empreendedor. Para tanto, bastaria que a canetada suspendesse todos os débitos futuros que possam surgir a partir de cobranças a empresas já inativas, fazendo assim que a empresa respondesse somente por dívidas já contraídas antes do fechamento, uma vez respeitados os critérios que impedem o redirecionamento das dívidas para os sócios. Mas essa alternativa implicaria numa menor arrecadação, e o estado nem sempre está disposto a subverter a própria lógica de sua existência.
No fim das contas, nenhuma pessoa consciente das consequências terá interesse em aproveitar a prerrogativa aberta pelo governo, salvo no caso em que não se deve nada a ninguém, numa situação de fechamento regular de uma empresa com relativa solvência. Mas somente o grande empresário, instruído por exércitos de advogadas, saberá disso.
Mas e quem não tem instrução jurídica, está em dificuldades financeiras e possui uma dívida considerável a ser administrada quando os negócios não vão bem? É exatamente essa pessoa, que a lei diz beneficiar especialmente, que será ludibriada e posteriormente atropelada por essa máquina de pobreza e miséria empresarial que o governo chama, ironicamente, de “Bem Mais Simples”.
O pior é que é bem simples mesmo: primeiro o estado cria a ilusão da responsabilidade limitada, depois vende uma confissão de dívida alheia como um bom negócio.
Leonardo Cavalcanti é graduando em Direito pela UFPE, quase advogado empresarial e curioso nas áreas de gestão e marketing. Saiu do conservadorismo burro e ignorante ao ler A Revolta de Atlas e As Seis Lições por insistência de um amigo. Acabou lendo Popper e Hayek, viu vídeos de Friedman em demasia e acabou ficando chato demais. Hoje, consequencialista convicto, milita por um mundo em que o Direito não seja tratado como instrumento de manobra do mais pobre.