Segundo o ditado popular, “futebol, política e religião não se discute”. A organização do Enem desse ano, não só discorda, como também caminhou no sentido completamente contrário, ao escolher o tema de redação desse ano sobre os “caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, criando, de uma só vez, um mix de todos os assuntos que não são discutíveis.

Digo isso porque a polarização de questões desse tipo vem criando uma rivalidade grande entre as pessoas que as discutem. Às vezes, o clima faz parecer estarmos em imensos estádios de futebol – onde a paixão fala mais alto que a razão – chegando à tão problemática intolerância do debate político.

Não é novidade que o Enem aborda reflexões de aspectos politicamente importantes de nossa sociedade, desde questões que falam sobre globalização até redações que tratam de assuntos delicados como “cidadania e participação social” (1998), “a violência na sociedade brasileira” (2003) e “viver em rede no século 21: os limites entre o público e o privado” (2011).

Porém, é a 1ª vez que um tema ligado a religiões vem à tona em uma prova de caráter nacional. Dentro desse cenário, alguns pontos deveriam ser lembrados, como por exemplo a laicidade do estado e o crescimento da bancada evangélica no Congresso.

Também podemos considerar o art. 5°, VI, VII e VIII da nossa Constituição, estabelecendo, como direito fundamental – ligado diretamente à dignidade da pessoa humana – (i) a inviolabilidade da “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; (ii) “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”; e (iii) “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

Quando falamos sobre religião, a primeira coisa que vem à minha cabeça é parte de uma parte da peça do humorista Leandro Hassum em que ele conversa com a plateia que não se encaixa bem em religião alguma e conta algumas características de cultos nas igrejas católicas, nas igrejas evangélicas e, por fim, chega ao candomblé. Obviamente, ele faz uma caricatura de cada uma dessas religiões que representam os grupos mais conhecidos do país numa divertida brincadeira com seus respectivos costumes.

De acordo com o Censo/2010, as religiões mais praticadas no país são, em ordem decrescente, o catolicismo, as evangélicas (protestantes), o espiritismo e a umbanda e candomblé, conforme o gráfico a seguir:

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A laicidade de um estado se traduz na não adoção de uma religião oficial para si. Também, não raro se ouve que política e religião não se misturam e, neste ponto, fica a minha pergunta: será?

Recentemente o Rio de Janeiro elegeu um bispo evangélico para ser prefeito. No Congresso Nacional contamos com 87 deputados federais e 6 senadores – que compõem a chamada bancada evangélica. É, inegável, portanto, a necessidade de um diálogo com esses segmentos religiosos para as decisões da vida pública em geral, com temas importantíssimos.

Ademais, não se pode afirmar que política e religião não se misturam – ao menos essa não é a realidade quando tratamos do debate público que precede as medidas do governo. Portanto, na motivação que fundamenta o ato do estado, é crucial constar que se consideraram todas as posições sem o favorecimento ou valorização de uma religião em detrimento das demais.

Por outro lado, como ensina Saul Tourinho Leal, é preciso permitir que as pessoas tenham a liberdade de buscar o melhor caminho para serem felizes, de acordo com sua fé e ideologia, sem quaisquer empecilhos, respeitando as liberdades individuais – que incluem, é claro, crença e cultura.

Apesar de o tema ser muito atual, problemas envolvendo religiões vêm desde a antiguidade, com histórias notadamente sabidas por todos. O êxodo liderado por Moisés, os tribunais da santa inquisição e o fenômeno do chamado sincretismo religioso aqui no Brasil colonial são alguns exemplos.

No Brasil, temos a maior população católica do mundo. Por aqui, os seus adeptos estão atrelados a uma forte tradição que acompanha o país há séculos. É inegável, portanto, que o catolicismo já deixou sua marca na cultura e costumes dos brasileiros.

Creio que a suposta supremacia moral das religiões majoritárias seja a principal diferença em relação às demais religiões ou mesmo a quem não tem uma religião definida (ateus e agnósticos, por exemplo). O forte julgamento aos adeptos de outras religiões possui, portanto, fortes componentes morais e étnicos.

Felizmente, há vozes que se levantam contra esse tipo de comportamento, defendendo que o caráter de alguém não se molda pela religião que ela segue ou mesmo por sua opção em não seguir qualquer delas: “Eu prefiro muito mais conviver com um ateu honesto, humanista, a conviver com um religioso hipócrita” (Padre Fábio de Melo).

Vale, ainda, destacar uma entrevista do Papa Francisco sobre ateus: “Você me perguntou se o Deus dos cristãos perdoa aqueles que não acreditam nele e que não buscam o perdão. Eu começo – e isto é uma coisa fundamental – dizendo que o perdão de Deus não tem limites se você vai a ele com um coração sincero e penitente. O problema para esses que não creem em Deus é obedecer a consciência”.

Já os muçulmanos ao redor do globo, sofrem preconceito pela existência de organizações fundamentalistas minoritárias, que realizaram atentados terroristas contra nações ocidentais violadoras das leis do Islã, e que findam impondo a pecha de terroristas a toda essa população, pacífica, em sua grande maioria.

Quando tratamos dos seguidores das religiões de matriz africana, porém, a história é outra. Neste caso, o que se atinge é a própria condição de ser humano. A multiplicidade de divindades, guias e protetores cultuados por seus praticantes é considerada maléfica pelo restante da sociedade, seja numa perspectiva religiosa, seja pelo prisma comunitário efetivo.

O sincretismo religioso foi o início de uma camuflagem cultural ocorrida ainda no Brasil colonial, que se perpetua até os dias de hoje. Os números do Censo/2010 mostram que 588.797 brasileiros se declararam umbandistas ou candomblecistas. No entanto, existe uma frase famosa entre os praticantes dessas religiões que diz: “me chamam de macumbeiro, mas quando precisam, batem lá no meu terreiro”. Isso quer dizer que o número oficial, em verdade, é muito maior seja por praticantes, seja por pessoas que procuram ajuda em seus rituais.

Com a escravização dos negros no Brasil, houve uma imposição cultural de que os mesmos deveriam também ser convertidos ao cristianismo/catolicismo. Não era somente sua liberdade extirpada, mas também sua condição de seres humanos, inclusive a possibilidade de praticar sua fé.

No entanto, de modo a burlar esse massacre, o povo negro utilizou os santos católicos como referências às suas crenças originais. Daí porque, atualmente, dias santos também são festivos para os terreiros, porquanto cada um equivale a um orixá diferente.

Dessa maneira, a tolerância religiosa, no que tange às religiões de matriz africana, passa muito ao largo de qualquer das outras, visto que seus praticantes, muitas vezes, não se declaram adeptos abertamente por trazerem consigo uma carga degenerativa social considerável.

E aí podemos perguntar: a que se deve isso?

Resposta pura e simples: ao racismo.

Historicamente tudo que vem da cultura negra tem uma qualificação mais baixa e desprezível. Assim, na mesma medida, nós tínhamos a marginalização da capoeira, uma luta travestida de dança para poder sobreviver através dos tempos, considerada crime por muitos anos.

O medo do desconhecido e o desdém que vem dessa cultura culmina numa série de ataques e questionamentos que resultam na violação da proteção constitucional prevista na nossa Carta de 1988.

É por esse motivo que uma menina de apenas 11 anos foi apedrejada, única e exclusivamente, por trajar roupa branca após realização de um ritual de sua fé. Em outro caso, uma criança de 12 anos foi impedida de entrar na escola e assistir à aula por usar os chamados fios-de-conta, após também ter passado por um ritual de candomblé. Um terceiro caso emblemático mostra que traficantes em favelas do Rio de Janeiro traficantes em favelas do Rio de Janeiro expulsaram quem praticasse religiões de matriz africana e proibiram que se estendessem roupas brancas no varal.

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Se já não bastasse essa repressão social, mesmo o estado-juiz, quando instado a intervir e proteger a livre prática religiosa, conforme manda a Constituição, não reconhece a umbanda e o candomblé como aptas a receber esse tipo de tutela: “manifestações religiosas afro-brasileiros não se constituem religião”, porque “não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado”.

Esses são alguns de muitos casos em que, além de se extinguir o direito de praticar a religião que se pretende, outros direitos fundamentais são violentamente exterminados, como a incolumidade física/segurança, direito de propriedade/moradia, acesso à educação ou mesmo o direito de acesso à justiça.

Todos esses casos são recentíssimos e, caso o caro leitor ainda esteja na dúvida, trago ainda alguns números alarmantes de violência contra casas de umbanda ou candomblé, que sofreram os mais diversos tipos de ataques, num aumento abrupto.

Segundo dados da Fundação Cultural Palmares (FCP), somente no Distrito Federal foram depredados, saqueados ou queimados 21 templos, desde o ano passado. Além disso, o Disque 100 (do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, Juventude e dos Direitos Humanos) registrou 705 crimes de intolerância religiosa entre atos de vandalismo e perseguição no país somente no ano de 2015.

Apesar de contar com apenas 0,3% da população, os casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana chegam a 71% das denúncias, de acordo com o mesmo órgão oficial do governo.

O mais curioso é que tanto no candomblé quanto na umbanda, não há uma diferença na gênese de como seus praticantes devem agir com relação aos seus semelhantes. Na específica definição de ligar o humano ao bem e a Deus, as religiões de matriz africana seguem parâmetros de convivência em harmonia com a coletividade e a natureza, pregam o exercício da caridade e do agir de acordo com a moralidade.

Por curiosidade, vale aqui saber o significado das palavras umbanda e saravá.

Umbanda é a composição de AUM – BAN – DAN, onde “AUM” significa Divindade Suprema, “BAN” significa conjunto ou sistema e “DAN” significa regra ou lei, resultando, por conseguinte, no “conjunto das leis divinas”. Por sua vez, Saravá também é oriundo de uma composição (SA-RA-VA), que pode ter duas acepções: “a força que reina na natureza” ou “o senhor que move todas as energias”. No segundo sentido, podemos ver uma aproximação com o namastê.

Com isso, fica a indignação de como coisas com significados e propósitos tão bonitos e puros podem ser tão deturpados, violentados e silenciados ainda nos dias atuais.

Mas há esperança!

Recentemente, o prefeito Eduardo Paes declarou a umbanda como patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, sinalizando com uma faísca de esperança nessa luta por reconhecimento.

Por último, é importante alertar para um julgamento importantíssimo que ocorrerá no Supremo Tribunal Federal em breve, que versa sobre os rituais de sacrifícios de animais nas religiões, de relatoria do ministro Marco Aurélio, no recurso extraordinário 494.601.

Ação originalmente proposta no Rio Grande do Sul alegando que o art. 2º da lei estadual 12.131/04 é inconstitucional ao excepcionar da proibição de maus tratos aos animais as religiões de matriz africana, bem como ao não contemplar outras religiões que também utilizam sacrifícios de animais, gerando uma desigualdade. O dispositivo questionado está dessa forma:

“É vedado ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; […] enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem; […] Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana”.

O tribunal de justiça gaúcho entendeu que não havia violação à constituição gaúcha e, assim, houve interposição de recurso para o STF. A Procuradoria-Geral da República opinou por julgar o artigo constitucional, ou seja, posicionando-se pela não violação da proteção do meio ambiente e sugerindo uma interpretação extensiva para permissão de rituais de sacrifício de animais em qualquer religião.

Esse é um caso importantíssimo para a manutenção da prática dessas religiões, que acreditam na influência da energia vital da natureza, a qual nunca se perde e se renova através desses procedimentos, gerando benefício na vida de seus adeptos. É importante ressaltar que tais sacrifícios não são realizados por meio da tortura dos animais, muito diferente do que ocorre nos abatedouros para o consumo de carne, por exemplo, quando o boi é pendurado vivo e sangrando para que sua carne permaneça macia. Além disso, após o ritual de sacrifício, os filhos de santo consomem a carne do animal abatido, não havendo qualquer desperdício ou desprezo pela perda daquela vida.

Cabe concluir tratar-se de tema delicadíssimo, já que, na hipótese de se julgar inconstitucional a prática dos sacrifícios, o estado irá criminalizar, uma vez mais, a cultura afro-brasileira – como acontecia no século XIX. Entretanto, seria uma imposição colonizadora de ter fé em coisa distinta ou ir para a cadeia, em pleno século XXI, exercendo a pior forma de intolerância religiosa possível, já que parte do estado, o responsável por proteger e garantir o exercício das liberdades individuais de seus cidadãos. Isto, não podemos permitir.

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