Moro há 26 anos numa cidadezinha de sete mil habitantes. Faço parte do pequeníssimo grupo de judeus locais. O pessoal daqui, em sua maioria, teve pouco ou nenhum contato com outros judeus durante a vida.
Já perdi a conta de quantas vezes me desejaram “Feliz Páscoa” ou perguntaram aos meus filhos, quando pequenos, se Papai Noel viria ou se já havíamos decorado a casa para o Natal. Quando um deles, aos cinco anos, disse à funcionária da mercearia que nós não comemoramos o natal, o olhar dela era de quem tinha finalmente encontrado os adoradores de Satã de quem tanto lhe haviam falado. A lista de episódios do tipo é enorme.
Hoje, esses comportamentos ganharam o nome de “microagressões” e nas redes sociais há quem proclame que essas pessoas estão tentando “aniquilar minha auto-identididade judaica” e que deveriam checar seus privilégios (cristãos).
Ao longo desses anos eu tive ampla oportunidade de avisar aos meus vizinhos que somos judeus e que aquelas “microagressões” eram ofensivas. Nunca disse nada. Há muitos motivos para isso.
Primeiro, eu não atribuo à maldade o que provavelmente é fruto apenas do desconhecimento. (Perdoai-os, eles não sabem o que dizem). A linguagem que muitos usam para falar de microagressões parece presumir, por exemplo, que homens ocupando espaço demais na cadeira do trem estão sendo intencionalmente sexistas. Acusações do tipo, mesmo quando contextualizam o problema como algo mais estrutural do que individual, usam de linguagem e retórica acusatórias.
Sempre presumo que as outras pessoas querem nosso bem e estão tentando apenas conversar amistosamente, em vez de exercer um privilégio cristão para nos deixar desconfortáveis. Não há, portanto, nenhuma razão para que eu intencionalmente os deixe desconfortáveis em resposta.
Afinal, a cidade também é minha e eu tenho que viver com todos. Se eu gostaria que eles soubessem mais sobre judaísmo e que não dissessem essas coisas? Sim, claro. Se eu acho que a fila do caixa de supermercado é o lugar certo para um sermão sobre tolerância religiosa? Não mesmo. Sei que tratam-se de vizinhos, pais dos amigos dos meus filhos e às vezes meus colegas de trabalho (ou alunos). O que eu faço nessas horas é oferecer a outra face e lembrar que provavelmente eu também já cometi pecados desse tipo. Pais judeus dispostos a ir nas escolas primárias para ensinar os feriados judaicos às crianças estão ajudando a combater essa ignorância de modo muito mais produtivo.
Segundo, nós vivemos em um mundo onde as externalidades negativas são constantes. Nas sábias palavras do livro The Economic Way of Thinking (ainda não lançado em português): “Pessoas razoáveis aprendem a ignorar a maioria das externalidades negativas que os outros lhes infligem, enquanto tentam ser sensatas em relação aos prejuízos acidentais que as suas próprias ações causam aos outros… Se as pessoas insistirem em obter absolutamente tudo a que julgam ter direito, a civilização vai dar lugar à guerra.” Viver numa sociedade liberal significa reconhecer que nós não temos como eliminar toda externalidade negativa do planeta e que, em prol da paz maior, nós não podemos fazer valer todos os “direitos” que temos de não ser ofendidos, insultados, desrespeitados, etc. Às vezes nós simplesmente temos que tolerar aquilo de que não gostamos, porque é esse, e não a tributação, o verdadeiro preço da civilização.
Por fim, sempre pareceu grosseiramente desproporcional e até mesmo privilegiado de minha parte reclamar dessas “microagressões” anti-semitas. Os judeus passaram milhares de anos tentando sobreviver contra aqueles que queriam exterminá-los da face da terra. O meu povo foi alvo de crucificações, da Inquisição e de pogrons. Fomos mandados à câmara de gás e transformados em experimentos científicos para a raça superior. Nossas famílias viram suas celebrações pacíficas de liberdade serem explodidas por fanáticos. Eu não tenho que me preocupar com entrar no ônibus e essa ser a última vez que eu vejo a minha família. Minha sinagoga não precisa de polícia 24h a fim de evitar que seja incendiada. Eu posso andar pela minha cidade com um quipá se eu desejar e o máximo que vai acontecer é olharem-me com alguma estranheza.
Nesse contexto, chamar “Feliz Páscoa” ou essa estranheza do olhar ou “As suas crianças virão à loja quando chegar o Papai Noel?” de “uma microagressão que aniquila minha auto-identidade” parece mesmo desproporcional e priviegiado. Se você passa as horas preocupado com a aniquilação da sua auto-identidade, provavelmente isso se deve ao fato de que você já não corre tanto perigo de ser aniquilado de verdade.
Esse é o contexto geral em que vejo as conversas sobre microagressão e privilégio. Eu não nego que microagressões são reais. Eu apenas questiono se elas são mesmo tão importantes ao ponto de justificar o barulho. Quando se tem o luxo de gastar tanta energia importando-se com as nuances da língua e com quanto espaço as pessoas podem ocupar, isso deve significar que fizemos progressos significativos nos problemas muito maiores e perigosos. E viver numa sociedade em que isso é verdade é o privilégio invisível daqueles que se sentem constantemente microagredidos, vítimas do privilégio dos outros.
Steven Horwitz é economista, formado pela Universidade de Michigan e Ph.D pela Universidade George Mason. Atualmente, é professor de economia na Universidade St. Lawrence e escreve para o blog Bleeding Heart Libertarians, onde este texto foi originalmente publicado.
Tradução de Stefan Rotenberg