Por Jopa Velozo
“Existe uma arte visual japonesa na qual o artista é obrigado a ser espontâneo. Com um pincel especial e tinta preta, ele deve pintar sobre um fino pergaminho esticado, de tal maneira que uma pincelada não natural ou interrompida virá a destruir a linha ou romper o pergaminho.” – Bill Evans
Falar sobre a individualidade na música é, geralmente, um tema bastante controverso. Freqüentemente os músicos trabalham em grupo, e por isso tende-se a debater filosoficamente mais as nuances coletivas do que a individualidade. Como o ser humano tende a ser contraditório, ele coloca muitas vezes em primeiro lugar certas idealizações sobre o coletivo e deseja que o indivíduo se coloque em segundo plano . Entretanto, muitas pessoas nutrem internamente mais paixão por certos momentos individuais do que pelos coletivos. Por isso mesmo, ao “adorar” uma música, freqüentemente os fãs terminam focando seu lado mais passional em relação a um determinado artista do que aos grupos em si.
Um torcedor de futebol, por exemplo, além de apreciar individualmente a participação de cada jogador, pode comemorar puramente (ou simplesmente) um resultado de seu clube. Ele pode se apegar apenas ao simbolismo representado pelo seu time favorito, sem nem mesmo assistir a uma partida e ignorando quase completamente todas ações individuais que ocorreram. Entretanto, aquele que pretende desfrutar da arte, ou do futebol arte, não pode se apegar aos resultados finais de caráter meramente informativo, ele precisa voltar-se para o indivíduo, para a importância da participação de cada jogador, desfrutando o lado mais humano do futebol.
Apesar de todo esse entusiasmo com o profundo valor do indivíduo na música, não é possível tratar o tema apenas sob o prisma dos aspectos individuais sem abordar os aspectos coletivos. O que quero dizer com aspectos está ligado à percepção e consciência de individualidade, tida tanto pelo ouvinte, quanto pelos outros músicos do grupo ou de um músico por ele mesmo. Estes aspectos são o foco deste texto, pois, de outra maneira, não há como debater o tema, já que toda banda necessariamente significa um grupo de indivíduos atuando de forma colaborativa. Assim como o trabalho em grupo não anula o trabalho de cada músico, o desempenho individual não diminui a função colaborativa que os músicos pretendem exercer. Desta maneira, mais aspectos individuais não tornam um grupo menos colaborativo e menos aspectos individuais não fazem o grupo ser uma ideia abstrata onde não há seres humanos reais trabalhando.
O jazz é um estilo de música que tem como uma de suas principais características a improvisação, um processo de criação espontânea, construída à medida que uma música está sendo executada, de maneira que não é possível voltar atrás em algo que foi feito.
Na improvisação não há tempo para se refazer. Há um tempo para um indivíduo atuar sem ser limitado por alguma objeção feita pelos outros membros da banda durante o processo criativo. Há também um tempo para cooperar e comunicar novas ideias musicais, sem que haja tempo para podar e polir aquilo que está sendo criado.
Por estas características e por suas consequências, o jazz talvez seja a arte musical em que existe a maior marca do indivíduo. Refiro-me ao destaque individual, à valorização do indivíduo, à apresentação individual no momento musical. Por exemplo: Uma sinfonia – executada, por exemplo, por um grupo com mais de 40 músicos – certamente é fruto de um enorme esforço do indivíduo que a compôs e dos músicos que a executam. Entretanto, durante um evento musical, para as pessoas do público, que não estão mergulhadas na obra, compreendendo o que o compositor empreendeu naquele projeto, o que se destaca é o aspecto coletivo, a massa sonora.
Não quero me perder em excessivas considerações teóricas sobre o escopo musical, pois isso pode nos afastar do foco deste texto e desvirtuar a reflexão em curso. Mas se nos detemos observando determinados estilos ou momentos musicais, percebemos que, em alguns, é possível notar um corpo sonoro uniforme que dá pouco ou nenhum destaque ao indivíduo e, em geral, menos espontâneo pois seu foco é previamente criado e combinado.
Essa música ou estes momentos musicais contrastam com os momentos ou com os estilos nos quais, ainda que haja a ação conjunta, um dos músicos pode estar em claro destaque como, por exemplo a participação do solista de um concerto. Mas a coisa fica mais interessante quando esse solista se torna um agente de criação musical no exato momento destinado à improvisação, não a uma execução pré-definida. Um solo totalmente previsto por todos dá ao solista um destaque no contexto musical. Mas é na improvisação que se põe em evidência a influência do caráter individual e, exatamente por isso – pela sua espontaneidade –, que a improvisação tanto tem a ver com a liberdade. Quando a banda goza de ampla liberdade criativa no acompanhamento ao solista, como é o caso do jazz, ela pode se comunicar, trazer mais beleza e exaltar todas as individualidades presentes. É uma arte que valoriza ações individuais, espontâneas, descentralizadas, e que valoriza a comunicação entre os indivíduos. A representação coletiva é construída através de individualidades muito marcantes.
Mesmo que desprovidos de limites pré-estabelecidos, os músicos de jazz ainda costumam lidar com certas bases de onde deriva a sua improvisação. Normalmente o tema da música é tocado de uma determinada maneira, onde há uma situação mais coordenada do que no jazz. E mesmo durante os solos improvisados, os músicos costumam seguir a forma, a harmonia, o tempo, a métrica da música , sendo que muitos recorrem a citações do tema original da música durante suas improvisações. O objetivo não é criar simplesmente uma música dentro da outra, mas explorar as possibilidades que uma música oferece. Quando o músico muda e ousa, depende muito da época, do seu objetivo, sua personalidade ou simplesmente da sua qualidade nesta arte. Mesmo próximo do máximo limite da liberdade no jazz, naquilo que é conhecido como free jazz, os músicos ainda costumam se valer de alguma base musical, mesmo que minimamente. Muitas vezes se livram da harmonia, outras vezes abandonam a melodia ou o tempo. Porém, no extremo limite, os músicos podem se sentar e simplesmente começar a tocar e criar sem nenhum plano anterior, simplesmente dispondo de suas habilidades e de suas capacidades criativas e comunicativas com os outros músicos.
É importante ressaltar que todos os limites a que me refiro, são limites estéticos e artísticos. As vantagens ou desvantagens de uma abordagem derivam de que ela sirva ao que pretendem os artistas, mas, por isso mesmo, elas são significativas e os artistas devem usá-las a seu favor!
Talvez seja devido às características de valorização individual de cada um dos músicos – e, em consequência, na maior valorização de todos os componentes do grupo – que o jazz atraia tanto os músicos. O jazz é uma prática musical que valoriza, mas, principalmente, desafia os músicos. Essa sensação, misto de liberdade e desafio, também permite mais prazer estético. Esta valorização não se dá exclusivamente na relação com o público, mas do artista consigo próprio. Mais que tudo, podemos observar a experiência intensa que é vivida especialmente pelos mestres do jazz. Muitos deles a relacionam com uma experiência espiritual ou religiosa. Isso varia de caso para caso, mas certamente, para todos os músicos de jazz, é uma experiência profundamente humana, no melhor sentido que esta palavra pode ter.