Por Mário Vargas Llosa
[dropcaps]E[/dropcaps]u teria gostado de ouvir uma palestra de Ortega y Gasset, ou melhor ainda, participar de qualquer um dos seus cursos. Todos os que o ouviam dizem que ele falava com a mesma elegância e inteligência com que escrevia, em espanhol fluido e elegante, muito confiante e com algumas grosserias vaidosas que certamente não ofendiam ninguém, dada a enorme cultura e clareza com que era capaz de desenvolver as questões mais complexas. Meio século depois de ter sido sua aluna, a escritora Margot Arce me contou que se instalava um silêncio reverencial e entusiasmado diante das palavras dele na sala de aula. Eu posso imaginar muito bem: mesmo quando se lê Ortega y Gasset – e eu li bastante, sempre com prazer – há uma sensação de se estar ouvindo, porque a sua prosa clara e exuberante tem sempre um elemento de oralidade.
A biografia recém-publicada por Jordi Gracia (Editora Taurus) mostra um Ortega y Gasset muito menos convicto de suas idéias do que se pensava, um intelectual que de vez em quando experimentava profundas crises de desânimo que paralizavam o seu ímpeto produtivo, que em outros momentos parece inesgotável, levando-o a escrever, estudar e refletir incessantemente, durante semanas e meses, gerando artigos, ensaios, uma enorme correspondência, palestras e aulas durante o desenvolvimento de um trabalho editorial que deixou uma marca importante na cultura do seu tempo. Mostra também que esse trabalhador incansável era, como Isaiah Berlin, praticamente incapaz de planejar e terminar um livro orgânico, apesar de ter a intuição premonitória de muitos, que jamais chegou a escrever porque a dispersão o vencia. Por isso ele foi, acima de tudo, um escritor de artigos e ensaios curtos, sendo os seus livros, todos eles, inconclusos – exceto o seu inaugural, Meditações sobre Quixote*. Nada disso empobrece ou apaga a originalidade do seu pensamento; pelo contrário, como acontece quase sempre com os textos curtos de Isaiah Berlin, os trabalhos de Ortega são geralmente muito mais ricos e mais profundos do que normalmente podem ser um artigo de jornal, uma conferência, uma resenha ou uma crítica, muitas vezes tratando de questões de alto nível intelectual e carregando sugestões imprevisíveis, por vezes deslumbrantes, mas sempre, no entanto, acessíveis ao leitor médio, não especializado.
Por isso fez muito bem Jordi Gracia ao farejar, como um cão de caça, a trajetória completa de Ortega y Gasset; é a forma mais segura de abordar o trabalho e a intimidade do homem de letras e ideias, de descobrir como foi desenvolvida a sua vocação de filósofo e literato. Tudo começava com uma idéia ou intuição que gerava um artigo (às vezes vários). A partir daí, esse embrião passava para o teste de uma sala de aula ou de uma palestra pública e, amadurecido, tomava forma em um ensaio. Embora muitas vezes tenha tido a intenção de ampliar suas ideias em livro, de modo geral não passava da intenção porque, antes, outra intuição, descoberta ou invenção genial o desviava para outro artigo, que, então, seguindo o mesmo itinerário, acabava desembocando em mais um daqueles ensaios – com freqüência excelentes e pretensiosos – que são a espinha dorsal do seu trabalho e ocuparam grande parte da sua vida.
Jordi Gracia mostra também que a vocação política foi tão importante para Ortega quanto a sua vertente intelectual. Na juventude, na média e alta maturidade, as duas vocações se fundiram em uma só; Ortega queria ser um grande pensador e um grande escritor para poder ser capaz de mudar radicalmente a Espanha e transformar a Europa, modernizá-la e democratizá-la, o que para ele – assim como para os intelectuais que atraiu para a Agrupación al Servicio de la República – significava focalizar a capacidade de influenciar o país para as pessoas mais cultas, inteligentes e honestas, e não para a classe política que ele desprezava pela mediocridade, falta de idéias, ausência de criatividade, inércia e cinismo. Para tentar formar um movimento que materializasse esse projeto ele dedicou boa parte de seu tempo: estava convencido de que esta era uma atividade cultural, de divulgação de idéias novas e férteis, e isso explica que tenha se voltado, desse modo, a uma atividade jornalística em jornais e revistas, certo de que esta era a melhor maneira de mudar a política em uso, espalhando entusiasmo por idéias e valores que deveriam chegar ao público da mesma forma que chegavam a seus alunos: através da persuasão, do convencimento pacífico. Isso era o que ele chamava de seu “liberalismo”, embora, muitas vezes, tenha acrescentado também a palavra “socialismo”, para indicar que essa revolução cultural da vida política não seria ausente de um forte conteúdo social. Nesse contexto, a república lhe parecia o regime mais adequado para aquela transformação política da Espanha.
No entanto, infelizmente aqueles não eram tempos para uma disputa saudável de idéias como Ortega queria, mas de um fanatismo tão grande que os insultos e as armas rapidamente substituíram os debates e os diálogos entre os adversários. Este é o grande fracasso de Ortega, a ineficácia absoluta daquela revolução cultural pacífica que ele propunha e que foi enterrada por mais de meio século, primeiro com a violenta experiência republicana e depois com o levante fascista e a guerra.
O livro de Jordi Gracia relata detalhadamente e com admirável objetividade a experiência traumática que significou para Ortega o colapso de todos os seus anseios políticos. Em primeiro lugar, a desilusão com a República, que não parecia em nada com aquela ideia de coexistência da diversidade que ele havia previsto, e, depois, com o levante militar e a Guerra Civil. A impotência o condenou ao silêncio. Mas ele nunca traiu o seu próprio ideal, embora tenha admitido que, naquelas circunstâncias, suas ideias eram simplesmente impraticáveis, desprovidas de toda a realidade. O silêncio mantido por muitos anos de exílio, na França, em Portugal e na Argentina, fez com que Ortega ficasse desacreditado aos olhos de muitos. Eu acho que foi um ato de grande coragem ficar longe, sem tomar partido, dessas duas opções que lhe pareciam igualmente inaceitáveis: o fascismo e a república muito pouco democrática, dominada por extremismos sectaristas.
Creio que foi um grande erro de Ortega voltar à Espanha durante a ditadura, acreditando ingenuamente que o regime se abriria com o pós-guerra. A verdade é que ele pagou muito caro, pois como Jordi Gracia mostra com luxo de detalhes, enquanto Ortega continuava sendo atacado (e silenciado) com ferocidade pelos setores do catolicismo nacional, determinados setores falangistas trataram de se apropriar de sua figura, semeando uma grande confusão em torno dele, ao ponto de admiradores tão fiéis quanto María Zambrano terem passado a acreditar que Ortega havia traído seus antigos ideais. Mas ele nunca traiu: até o fim de seus dias ele permaneceu laico, ateu e defensor de uma democracia liberal marcada pela tolerância. Ao mesmo tempo, apesar do desconforto político permanente em que ele passou seus últimos anos, a sua vitalidade intelectual nunca parou de manifestar-se, em ensaios e artigos que por vezes recuperavam o vigor expressiva e a riqueza criativa do passado. O reconhecimento que Ortega teve nos últimos anos de sua vida foi todo no exterior, principalmente na Alemanha, mas também na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na Espanha, no entanto, e até hoje, ele nunca foi realmente reconhecido, pois, para alguns, se trata de uma figura ambígua e reticente, que manteve durante a Guerra Civil e o pós-guerra um silêncio covarde que constituía uma cumplicidade discreta com os fascistas, ou um desajuste antiquado conservador e irremediavelmente adverso à modernidade.
Um dos grandes méritos do livro de Jordi Gracia é que, sem deixar de lado nenhum de seus equívocos e erros políticos, e assinalando como às vezes a vaidade o cegou e levou a exagerar suas explosões, feito o balanço, Ortega y Gasset é um dos grandes pensadores da nossa época, e que, precisamente no momento em que vivemos – não no que ele viveu – as suas ideias políticas são amplamente confirmadas pela realidade. Lê-lo agora não é uma empreitada arqueológica, mas uma imersão num pensamento ardente, muito proveitoso para encarar os problemas da atualidade, e ainda desfrutar de um prazer requintado: a produção de um escritor que pensava com grande liberdade e originalidade – e expressava suas ideias com a beleza e a precisão dos melhores prosistas da língua.
Tradução: Mano Ferreira
*Segundo Eduardo Cesar Maia, mestre em filosofia com ênfase na obra de Ortega y Gasset:
“Na resenha, Vargas Llosa comete um pequeno equívoco quando menciona as Meditaciones del Quijote como supostamente sendo, entre as obras de Ortega, o único livro concebido e realizado na íntegra (na verdade, mesmo as Meditaciones são parte de um projeto inconcluso).”