O carnaval é um grito de liberdade.
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses
Oswald de Andrade
O carnaval sempre foi algo que rondou o imaginário brasileiro. Afinal, “nossa carne é de carnaval, o nosso coração é igual”. Mas de onde vem esse fetiche? Não é a única grande festa popular do mundo ou do Brasil. Durante todo o ano, também se toca samba, frevo, axé. Como evento em si, o carnaval não tem nada de mais. O que tem de tão magnético no carnaval é a sua capacidade de ser um fenômeno de liberdade.
Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
O carnaval permite a todos nós brasileiros cantar a jardineira até a quarta-feira de cinza e muito mais. Nos deixa ser o que quisermos e não sermos (completamente) julgados por isso. Isso é importante em uma sociedade cujas relações sociais não são baseadas na impessoalidade e que o fenômeno do “sabe com quem você está falando?” é ainda algo corrente. O carnaval, entre uma marchinha e outra, joga uma cortina de fumaça nessa sociedade hierárquica e permite que o rico e o pobre dancem na mesma avenida, o carnaval “é o acontecimento religioso da raça”
Essa interpretação, é claro, não é minha. Ele já existe no pensamento social brasileiro a algum tempo e está sendo, recentemente, motivo de um intenso debate a partir de questionamentos feitos por Jessé de Souza, presidente do IPEA e com réplicas de Marcus Melo e Bolívar Lamounier. Como estes apresentam, Jessé ignora diversos elementos de como o Estado brasileiro foi, na prática, construído sempre tendo o Estado um papel central no objetivo do desenvolvimento nacional e uma reticência aos agentes privados. Um exemplo claro disso é como entrou no senso comum a nomenclatura de “república velha” e “Estado novo” que surgiu, na verdade, da crítica fascista a suposta fraqueza da ‘democracia liberal’ como algo velho e decante em oposição ao novo, forte e igualmente fascista Estado varguista[1].
Me permito, humildemente, apresentar mais um argumento para contrapor a visão de Jessé. O anti-liberalismo na sociedade brasileira vai muito além da formação do Estado, mas é algo impregnado na nossa sociedade. Como destaca Marilena Chauí, o Brasil sempre foi um povo em busca de um messias. Na época do Brasil colonial, de formação nacional o imperador absolutista português é uma figura distante que “reforça a imagem de um poder percebido como transcendente, mas que, distante, também aparece como um lugar vicário e, como tal, preenchido pelas múltiplas redes de mando e privilégio locais” (CHAUÍ, 2000, p. 85).
Isso cria um vazio de heróis nacionais políticos ou militares, e paradoxalmente uma visão messiânica da política, como o que levará o país a redenção (diferentemente da visão anglo-saxã de que a redenção se dá através do trabalho, ou seja, por vias econômicas e não políticas). Além disso, essas múltiplas redes de poder levaram a uma sociedade muito consciente das distintas relações de micro poder, da prática de carteiradas, de sobrenomes, de coronéis. Essa visão de mundo é antagônica com uma sociedade calcada em valores liberais e favorável ao livre-mercado e a livre iniciativa. Primeiro, uma sociedade que o ‘você sabe com quem você está falando?’ é a regra e não a exceção rejeita a base da igualdade formal perante a lei, uma das bases do liberalismo. Segundo, um país em os meios para o sucesso são ter o sobrenome certo e não o quanto de valor você retorna para a sociedade.
Em suma, uma sociedade não inclusiva e coletivista que vai de encontro a uma manifestação da plena individualidade com um mosaico de identidades e valores. E é isso que o carnaval, cantando a vassourinha conseguimos em um passo de frevo mostrar toda a exuberância de cada individualidade. O carnaval nos fazendo ser heróis e malandros, nem que seja só por três dias. Por isso, menina vamo nessa que esse frevo é bom demais!
[1] Para uma visão simplificada sobre o que é fascismo, recomendo a leitura esse texto http://www.vox.com/policy-and-politics/2015/12/10/9886152/donald-trump-fascism
[2] CHAUÍ, M. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.