Enquanto modalidade literária, a sátira desenvolveu-se na Roma Antiga, próxima à comédia, e podia ser dividida em duas variações principais: a horaciana (de Horácio), amena e sorridente; e a juvenaliana (de Juvenal), pessimista e mordaz. Sua característica central é o ataque e a crítica de costumes, que tornam necessária alguma relação entre com a realidade, o que entrega a intimidade entre essa modalidade e o jornalismo.
Dentre os estudiosos da história do jornalismo ocidental, é comum considerar que, apesar do jornalismo ter desenvolvido características semelhantes as que conhecemos hoje somente a partir do Renascimento, com a invenção da tipografia, existem fenômenos pré-jornalísticos desde a Antiguidade Clássica, seja na forma das Actas Romanas, que informavam atos do governo, seja nos relatos documentais que atingiam grandes públicos ainda na Grécia. Em seu livro Uma breve história do jornalismo no Ocidente, o professor português Jorge Pedro Sousa defende que as obras de Homero, Ilíada e Odisséia, já possuíam diversos elementos jornalísticos, inclusive no aspecto estilístico da narrativa. Nesse sentido, não é exagero afirmar que elementos satíricos acompanham o jornalismo desde os primeiros fenômenos pré-jornalísticos registrados.
Isso é ainda mais evidente no caso brasileiro. Em seu renomado ensaio Iniciação à Filosofia do Jornalismo, Luiz Beltrão enquadra a sátira como elemento central dos primórdios do jornalismo brasileiro, referindo-se a figuras como Tomás Antonio Gonzaga e Gregório de Matos, este responsável pela obra que ele considera “o nosso primeiro jornal, onde estão registrados os escândalos miúdos e grandes da época, os roubos, os crimes, os adultérios e até as procissões, os aniversários e os nascimentos”.
Com o surgimento dos tipos, a sátira continuou sendo uma presença constante em meio ao amadurecimento da imprensa. No contexto de florescimento das idéias iluministas, no ambiente histórico da Revolução Francesa, o jornalismo satírico desempenhou um papel fundamental para a dessacralização da autoridade real e a desconstituição do status social privilegiado da aristocracia, expondo aquelas figuras ao ridículo, muitas vezes através do apelo a insinuações pornográficas. Como mostra Antoine de Baecque em Revolução Impressa, a fantasia obscena dos jornais da época pintava Maria Antonieta como uma amante insaciável que, após levar à exaustão o rei Luís XVI e o conde d’Artois, recorria à Madame de Polignac, somando acusações de impotência real a uma “lascívia antinatural” e bissexual da rainha que desmascaravam a decadência dos valores e pudores religiosos que sustentavam a monarquia.
No Brasil imperial, é bastante conhecido o uso das charges para escarnecer e criticar o governo, como o famoso caso do quinto dos infernos. Um pouco depois, a campanha abolicionista teve o importante auxílio da Revista Ilustrada, publicada por Ângelo Agostini, que marcou época com caricaturas que colocavam em cheque a elite escravagista. Exemplos que reforçam o grande potencial do humor para uma difusão socialmente efetiva de críticas políticas e de costumes.
Como é fácil imaginar, não foram poucas as ofensivas que tentaram silenciar o jornalismo satírico. Na França, onde os jornais desempenharam papel importante para a instalação da revolução, os próprios revolucionários, assim como Napoleão posteriormente, trataram de cercear a liberdade de imprensa. Na Inglaterra, apesar da lei formalmente assegurar a livre expressão, as “taxas sobre o conhecimento” impunham, na prática, restrições legais e econômicas ao exercício do jornalismo. No Brasil, é válido lembrarmos os destinos de dois dos mais proeminentes jornalistas do período imperial: Frei Caneca foi morto; Cipriano Barata condenado à prisão perpétua.
Os argumentos contra o jornalismo satírico costumam ser basicamente os mesmos do passado. Em primeiro lugar, a pretensão do direito à imagem e à honra, como se fosse razoável imaginar que alguém deve possuir controle sobre o que os outros pensam a respeito de si. Como dizia Mencken, “pode até ser um pecado pensar mal dos outros, mas raramente será um engano”. Outra idéia comum é a de que o jornalismo constitui um exercício de poder, e a sátira uma espécie de flerte com o abuso. Nessa linha, assim como acontece com o estado, a falta de limites levaria esse poder à opressão e à tirania – e por isso precisaríamos de uma “regulamentação da liberdade de imprensa”.
Ignoram que uma idéia só se combate com outra e que a expressão só é um exercício de poder para os desempoderados. Como lembra Rogério Ortega: os poderosos não se exprimem pela sátira; demitem, prendem ou mandam matar – impõem multas e tributos, poderíamos acrescentar. Por mais violenta que seja uma sátira, ela jamais será capaz de ultrapassar a violência da censura. A capacidade de conviver com a diversidade e com as idéias que desprezamos, o elogio do pluralismo, é sintoma do grau de maturidade da sociedade.
Além disso, por qual motivo, afinal, imaginaríamos que uma eventual regulamentação da expressão pela via do estado, justamente a esfera de maior concentração de poder que existe, seria capaz de defender os oprimidos dos poderosos? Há tempos, Karl Kraus reconhecia que o mal prospera com mais facilidade quando lhe põem um ideal à frente. Sempre é tempo de ouvir os sátiros.
Originalmente publicado na revista Café Colombo.