Por Mano Ferreira

Não foi sem assombro que me deparei com a notícia. Domingo, em pleno dia de Iemanjá, fomos surpreendidos com a trágica morte de Eduardo Coutinho, 80 anos, que era o principal documentarista brasileiro em atividade. Ele não resistiu a facadas desferidas em seu apartamento, provavelmente pelo próprio filho, Daniel, com histórico de esquizofrenia, que também teria atacado a mãe antes de ferir a si mesmo. E por que estamos falando disso aqui nesse Mercado, tão distante das páginas policiais? Porque eu acho que todo amante da liberdade precisa conhecer o modo Coutinho de fazer um documentário.

Sim, para falar sobre ele numa ocasião dessas, de tom afetivo e efetiva dor, eu não poderia fugir a um traço marcante de seu estilo: eu precisava, em primeiro lugar, evidenciar o narrador – coisa que ele sempre fazia. E não por capricho ou narcisismo, mas por honesta convicção, por função estética e simbólica.

Na perspectiva do texto literário, Coutinho poderia ser pensado enquanto um narrador-personagem que conduz os acontecimentos ao mesmo tempo em que está envolvido neles. Desde o mais conhecido Cabra Marcado Para Morrer (1968-1984), os seus filmes fazem questão de evidenciar a presença da equipe de filmagem no momento de captação das imagens, transformando o próprio cineasta, seus produtores e o processo de fatura do filme em personagens participantes da obra. Há um objetivo por trás desse recurso. Assim como Machado de Assis através de Bentinho no clássico Dom Casmurro, Coutinho oferece a dúvida ao expectador. O documentário expressa a Verdade? Ali, fica claro, estamos tratando das impressões do autor. É um modo de reconhecer que:

Na impossibilidade de atingir uma verdade última, o real seria o real de cada indivíduo e, portanto, um fenômeno da ordem da construção discursiva. Abdica-se, desse modo, de qualquer pretensão de universalidade, assim também como se renuncia à pretensão de falar pelo outro. (Follain de Figueiredo)

Neste sentido, o próprio Coutinho, em entrevista, sintetizou seu método: “O que eu penso não vale nada (para a vida dos outros). Tento entender o que pensam os outros a partir de suas vidas”. Para mim, ao pensar a respeito disso é inevitável lembrar do Manifesto deste Mercado. Veja este trecho, por exemplo:

É o reconhecimento da inexistência de superioridade valorativa universal – seja moral ou estética – que deva ser imposta aos indivíduos, deixando-se, portanto, a cada um a condução de sua própria vida com base nos critérios entendidos como mais importantes para si, ainda que suas escolhas sejam consideradas falhas por outros.

A arte do encontro destruindo hierarquias

Para falar de Coutinho, também é importante situá-lo no contexto histórico do gênero documentário, linguagem onde a obra dele se insere. Avesso ao modelo conhecido como sociológico, no qual são feitas análises macro-sociais com a pretensão de retirar verdades sobre a sociedade como um todo ou sobre episódios históricos marcantes, Coutinho foca seu trabalho em pessoas comuns, que não estão dotadas de grande força política. Ele aborda o cotidiano das pessoas – e como elas dizem que se sentem no dia a dia. Seu cinema é baseado na narrativa verbal empreendida pelos personagens, o que significa que a escolha de cada um deles passa a ser central para o poder de significação da obra.

É incorreto dizer, no entanto, que suas obras são sobre personagens.

“Estamos filmando um encontro sempre: o encontro entre o mundo do cineasta e da sua equipe, mediado pela câmera, e o mundo que está em frente a essa câmera. É por isso que a maioria dos meus filmes começa com a equipe chegando ao local de filmagem: uma favela, um lixão, um prédio. (…) A imanência desse momento é fundamental. Por isso, a presença de um ao outro, e a presença da câmera filmando esse encontro, é o que importa.” Eduardo Coutinho em entrevista à revista Galaxia.

Mesmo diante de uma situação necessariamente hierárquica como é a de “documentarista x documentado” (já que o primeiro poderá editar tudo depois…), Coutinho utiliza artifícios para desconstruir o ambiente de desigualdade quanto ao lugar de fala. Desse modo, no lugar de uma relação “sujeito x objeto”, o cineasta se recusa a objetificar seu personagem, procurando estabelecer uma relação sempre “sujeito x sujeito”. Um tratamento estético, portanto, que recusa a instrumentalização de um ser humano em função do grupo em que ele por ventura se enquadre. Vale apenas ele próprio, ser humano, valor em si mesmo.

Um exemplo bastante ilustrativo é a cena final de Peões (2002), filme onde Coutinho encontra ex-companheiros sindicais de Lula, que então se elegia presidente. Naquele momento, o personagem Geraldo refletia sobre sua própria condição e concluía não querer para nenhum dos dois filhos a vida que teve pra si. “Peão é aquele que roda”, diz, referindo-se ao caráter nômade da busca por oportunidades. “Peão é aquele que bate cartão, que tem que cumprir horário”, reelabora com regulações trabalhistas. E então se cala. Um primeiro plano mostra a tensão de seu semblante. Na superfície do filme, esse silêncio – que dura uns 15 segundos – assume um sentido de angústia. Opção autoral, Coutinho não rompe o clima: silencia também, levando ao paroxismo. E nesse impasse as hierarquias tradicionais são completamente rompidas, o personagem sai da posição passiva de entrevistado respondendo questões e assume ele mesmo uma posição autoral, com a iniciativa da pergunta: “Você já foi peão?”.

E então me lembro de outro trecho do nosso Manifesto:

É a admissão de que sua singularidade (do ser humano) expressa-se na subjetividade, na dúvida, nas parcelas de silêncio e de incomunicabilidade que são próprias à vida afetiva, no desejo de solidão dos namorados e na criação artística e intelectual

Estereótipos abaixo, sujeitos de seus destinos

O terceiro ímpeto libertário da obra de Coutinho que me marca hoje é a destruição dos estereótipos coletivistas. Ele se recusa a construir seus personagens submetendo-os à narrativa vitimista tradicional da esquerda “piegas e paternalista” – como ele mesmo chamava. “A utopia é o ópio dos intelectuais”, dizia. E a prisão das percepções a partir das próprias vontades “impede que as pessoas vejam as coisas como elas são”.

Assim, a postura de Coutinho se fundamenta praticamente como a aplicação concreta de um pensamento do filósofo austríaco Karl Popper:

“Os nossos sonhos e esperanças não têm necessariamente de comandar as nossas conclusões. Na procura da verdade, o nosso melhor plano pode ser o de começar por criticar as crenças que mais prezamos. É possível que este pareça a alguns um plano perverso. Mas não o parecerá àqueles que querem descobrir a verdade e não têm receio dela”.

Contundentemente, é este o caso em Boca de Lixo (1992), documentário que marca o início da fase madura de Coutinho, trabalho a partir do qual ele consolida seu jeito libertário de filmar. A obra retrata o seu encontro com catadores de lixo que, cansados da estigmatização sub-humanizadora comumente empreendida pelos jornalistas e intelectuais, inicialmente reagem de modo bem ofensivo à chegada da equipe de gravação e demoram a aderir à lógica do entrevistador x entrevistado.

Depois, à medida em que o cineasta consegue construir uma relação de confiança, descobre seres humanos autônomos, complexos e com pensamentos próprios. Descobre, ouvindo os próprios catadores, que é possível ter orgulho de catar lixo – que trabalho honesto, sem ferir ninguém, dignifica a alma até quando é o mais aparentemente adverso. Coutinho descobre – e nós descobrimos juntos -, ouvindo a voz do outro, que há situações em que o lixo representa a liberdade. Porque há situações em que o lixo é a melhor escolha, melhor do que trabalhar em casa de madame. Sim, leitor. No filme, a catadora negra, diretamente do lixão, diz que pode preferir trabalhar no lixo a ter que trabalhar numa casa como a sua, que me lê agora.

E então nós percebemos entranhadamente que não podemos escolher pelos outros. E que se a situação do outro nos compadece, não é tratando-lhe como vítima ou retirando-lhe a escolha que iremos ajudá-lo de fato. O que podemos fazer é tentar expandir ao máximo o horizonte que se desenha – porque a escolha final é sempre de cada um. Creio que este seja um dos pontos mais bonitos deixados pelo trabalho de Coutinho: a percepção radical do ser humano enquanto sujeito de seu destino.

As pontes de universos

Mas eu não poderia acabar sem pôr em relevo, ao fim, mais um traço a evidenciar o narrador que aqui vos fala. Coutinho foi fundamental para reforçar a minha paixão pessoal pelo jornalismo narrativo, essa ânsia de juntar dois universos – ou pelo menos atuar para que se vejam, ao contar histórias dessa existência.

Porque se cada ser é uma ilha particular e intransferível, parece-me fundamental para a vida em sociedade – e também pra o acalento de nossa própria individualidade – esse eterno exercício de criar pontes para as ilhas alheias. Mais ou menos como Coutinho extraiu dessa cena, quase clássica, de Edifício Master (2002):

Por tudo isso, Coutinho, muito obrigado.

Fotografia: Tuca Vieira

382492_10201273879199824_1443806324_nMano Ferreira é jornalista, integrante do Café Colombo e co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Tem interesse em filosofia política, comunicação, estética e comportamento. Está terminando o Trabalho de Conclusão de Curso na UFPE sobre a relação entre as obras do filósofo Karl Popper e do documentarista Eduardo Coutinho, cuja descoberta reafirmou sua paixão pela comunicação e deu algum sentido a sua estadia na universidade para além das amizades e do afeto.

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