“A quem interessa o fim das zonas exclusivamente residenciais?”, diz uma faixa afixada no muro de uma mansão no Jardim Europa, em São Paulo.

Entre as várias mudanças sendo feitas atualmente na política urbana da cidade de São Paulo está a revisão da Lei de Zoneamento, que altera a lógica de desenvolvimento de várias zonas da cidade. O Jardim América e o Jardim Europa, duas das regiões mais ricas de São Paulo e atualmente legisladas para uso estritamente residencial de baixa densidade, seriam afetadas pela lei na sua versão atual, que ainda deve passar por algumas dezenas de audiências até ser aprovada. A proposta sugere que atividades comerciais sejam permitidas em algumas das avenidas dos Jardins (hoje o uso comercial é bastante restrito, embora, na prática, muitas casas já sejam usadas para comércio de forma irregular), além de permitir o aumento da área construída em algumas destas vias, favorecendo o adensamento populacional.

As mudanças não agradaram os moradores, que se manifestaram contra as mudanças na imprensa, na internet, na justiçae com faixas de protesto nas suas casas. Mas para entender melhor a proposta e os argumentos dos moradores, precisamos antes lembrar como foi formada a região.

Tanto o Jardim América como o Europa foram construídos como empreendimentos imobiliários da Companhia City, a empresa de urbanização mais influente na história de São Paulo, também responsável pela construção de bairros como Alto de Pinheiros e Alto da Lapa.

A região que os Jardins América e Europa ocupam era, no início do século 20, uma várzea do Rio Pinheiros, distante do centro original da cidade. Quando o Rio foi retificado pela construção da Marginal Pinheiros, os alagamentos frequentes deixaram de ser um problema e um grupo de empresários – que se transformaria na Cia. City – comprou os terrenos em lotes únicos, possibilitando empreendimentos do tamanho dos Jardins.

O conceito urbanístico proposto era arriscado: seria uma tentativa de replicar a “cidade-jardim”, um novo conceito de urbanismo que tinha sido recentemente criado na Inglaterra por Ebenezer Howard, considerado um dos primeiros urbanistas da história.

A novidade da cidade-jardim permitia que seus moradores se isolassem da densa metrópole que então se desenvolvia, fugindo da congestão, do barulho, da diversidade e da desigualdade de São Paulo, relativamente recentes na metrópole que se desenvolvia rapidamente. Em 1870, São Paulo tinha em torno de 30 mil pessoas, mas em 1920 esse número chegaria a 570 mil pessoas. Ou seja, a população paulistana foi multiplicada por dezenove em apenas 50 anos.

Na época, uma das teorias mais populares para explicar alguns problemas de saúde pública era a “teoria da miasma”, que apontava a falta de verde, sol e ar puro como a origem da proliferação de doenças. Ainda não havia sido descoberta ateoria microbiana, que hoje prevalece sem grande contestação científica. Por isso, o urbanismo no Brasil de então foi marcado por reformas sanitaristas, onde médicos se tornavam urbanistas para tentar corrigir estes problemas sob pretextos de uma ciência hoje ultrapassada.

Apesar da força incontrolável do crescimento urbano e do poder atrativo da cidade, para técnicos e intelectuais a cidade em si era um problema a ser corrigido, e a cidade-jardim resgataria as qualidades das zonas rurais criando a nova utopia de morar: espaços amplos e ar puro em uma distância ainda próxima ao centro, ainda acessível por automóvel. As semelhanças com o subúrbio norteamericano não são mera coincidência, dado que ambos são frutos de um pensamento comum.

Os urbanistas ingleses Barry Parker e Raymond Urwin foram os primeiros a projetar uma cidade jardim que realmente saiu do papel, chamada de Letchworth, em 1902. A Companhia City, de origem inglesa e operando no Brasil, então considerado um território virgem para ser desbravado com novas ideias, chamou Parker e Urwin para o projeto do Jardim América, que se tornou o primeiro projeto da Companhia City em São Paulo. As obras se iniciaram em 1913 e terminaram quase duas décadas depois, em 1929.

As restrições urbanísticas impostas no loteamento privado eram muito mais severas que em qualquer outro bairro da cidade, que então ainda se desenvolvia em torno da região central. Enquanto o centro de São Paulo mirava aos céus com altos edifícios para abrigar uma população cada vez maior, nos Jardins foram determinados rígidos limites populacionais, com restrições de altura, e de afastamentos frontais e laterais das edificações. O projeto foi pensado para uma elite paulistana emergente (a elite tradicional ainda morava mais próxima ao centro, na Av. Paulista ou em bairros adjacentes como Higienópolis), também disposta a experimentar este novo conceito de moradia. Um pouco parecido com os empreendimentos da Alphavile da atualidade, ainda mais longes da região central.

A cidade cresceu.

Hoje o Jardim Europa e o Jardim América não mais se caracterizam como subúrbios de uma região central mas, apesar de se localizarem historicamente nas chamadas zonas Sul/Sudoeste, elas estão muito próximas ao novo centro geográfico da mancha urbana paulistana, e no centro financeiro onde estão concentrados muitos dos empregos da Zona Metropolitana, que hoje ultrapassa 20 milhões de pessoas.


“O preço médio de um imóvel nos Jardins é em torno de R$12 mil por metro quadrado, o dobro da média da cidade.”


A centralidade e importância da região levam a uma altíssima demanda para morar nos Jardins e, com a oferta restrita, imóveis com preços altíssimos. O preço médio de um imóvel nos Jardins é em torno de R$12 mil por metro quadrado, o dobro da média da cidade. Se o bairro que era destinado às jovens elites emergentes, hoje ele abriga mansões de alguns dos cidadãos mais ricos do país.

Embora os Jardins tenham mantido a sua forma e densidade populacional próxima da original, as regiões ao seu redor tiveram grande aumento na população e na área construída. Os distritos de Pinheiros e Jardim Paulista, dos quais os Jardins fazem parte, possuem uma densidade de 8171 e 14540 hab/km2, respectivamente, mesmo contando com os Jardins “vazios” de densidades muito inferiores, em torno de 4500 hab/km2 segundo o livro “História econômica da cidade de São Paulo”.

Em 1986, o Jardim Europa e América foram determinados como patrimônio histórico da cidade, não só por ser uma das primeiras manifestações urbanas dos criadores originais da cidade-jardim, mas pelo princípio de que eles melhorariam a qualidade urbana para o resto da cidade, desempenhando um “importante papel na formação de um clima urbano mais ameno, capaz de atenuar a ‘ilha de calor’ característica das metrópoles compactas.”


A clara divisão entre o Jardim América, abaixo, e o restante do bairro, acima, já urbanizado. A rua na horizontal que passa no centro da imagem é a Rua Estados Unidos.


Este é, inclusive, um dos principais argumentos usado pelos moradores que hoje criticam a revisão da Lei de Zoneamento: o Jardins seria um dos “pulmões verdes da cidade”, segundo vídeo divulgado pelo grupo “Contra Mudança de Zoneamento Na Rua: Estados Unidos” do Facebook, que já possui mais de 2 mil seguidores.

Outra crítica à revisão do plano seria o aumento do trânsito no bairro, já que as atividades comerciais atrairiam gente de fora. Segundo uma recente reportagem do Estadão, Regina Monteiro, presidente do Instituto das Cidades e conselheira do Movimento Defenda São Paulo, contratada pela Sociedade dos Amigos e Moradores do Bairro Cerqueira César (Samorcc) para avaliar o impacto que tal legislação teria na região, “Com o aumento dos carros, seria necessária uma hipotética quarta faixa (a via tem três) para manter os níveis de congestionamento atuais” na Rua Estados Unidos.

No entanto, hoje os moradores destes oásis em meio à selva de concreto paulistana se transportam quase exclusivamente de automóvel, dada uma série de fatores: a baixa densidade que não consegue suportar uma rede de transporte coletivo eficiente e, aliado ao uso exclusivamente residencial e amplos recuos, a caminhabilidade do bairro – facilidade de fazer atividades diárias a pé – é precária.

A crítica ao trânsito foca exclusivamente nos impactos locais, esquecendo o impacto negativo que o bairro hoje gera para o resto da cidade com a sua baixa densidade, ao contrário do que é divulgado no vídeo: baixa densidade demográfica com distâncias maiores entre atividades dificultam o deslocamento, independente do modal de transporte escolhido.

Considerando que tanto o Jardim Europa como o Jardim América têm em torno de 1 quilômetro quadrado cada um, é possível estimar o número de pessoas que poderiam estar morando nesta região central caso o seu adensamento fosse maior. Se eles tivessem 10 mil hab/km2, semelhante aos bairros adjacentes, seriam 11 mil pessoas a mais na região central, próximas às principais atividades e serviços. Se fosse proposta uma densidade ainda mais democrática, como a dos bairros Liberdade ou República, de em torno de 20 mil hab/km2, este número aumentaria para 31 mil pessoas.


“Caso houvesse tal adensamento, seria economizado o deslocamento de dezenas de milhares de pessoas partindo da periferia a esta região central.”


Caso houvesse tal adensamento, seria economizado o deslocamento de dezenas de milhares de pessoas partindo da periferia a esta região central. Este caso extremo deve ser considerado já que, mesmo se os possíveis novos moradores do Jardins viessem de bairros adjacentes, sua mudança geraria um efeito em cascata, liberando imóveis para que moradores mais distantes possam se aproximar da nova região central.

Ou seja: o impacto da mudança da Lei de Zoneamento seria extremamente positivo para a cidade de São Paulo. Não só haveria uma redução no trânsito pelo aumento da proximidade entre as pessoas como o deslocamento que hoje é feito primordialmente de carro poderia ser feito tanto a pé como de transporte coletivo. Esta solução, ainda, é muito maisverde do que a atual, já que a vegetação do Jardins beneficia apenas aos seus moradores, enquanto com a mudança do zoneamento haveria uma grande redução nas emissões de gases tóxicos resultantes de deslocamentos descenessários. Neste sentido, o próprio tombamento da região deveria ser reconsiderado, dado que se suporta em argumentos ambientais equivocados.

Seja como for, estes argumentos são, na verdade, uma distração ao principal motivo de mobilização dos moradores: o simples fato de que não querem mais gente no seu bairro, preservando seu status quo.

Uma das principais mobilizadoras do grupo, segundo o Estadão, é a paisagista Sylvia Luiz que, durante a entrevista ao jornal, aponta para um carro velho e enferrujado que estava estacionado em frente à sua casa e comenta “Olha, é isto que a gente não quer”, deixando a entender que o proprietário do carro poderia ser um criminoso. O proprietário do carro apareceu logo em seguida: era um ajudante contratado na obra de recapeamento da Rua Polônia, devidamente uniformizado, que estava em hora de almoço.


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Rua Espanha, no Jardim América: verde para quem mora, mas sem pedestres e sem transporte coletivo.


É inegável o caráter elitista do grupo, que tenta usar uma retórica popular para convencer a população a preservar seus interesses. Flávio Villaça, um dos mais importantes urbanistas brasileiros, em entrevista para o IG, comenta que “o que eles querem manter é a qualidade de vida do bairro deles, é o silêncio, o verde…”, e que é legítimo que os moradores dos Jardins queiram proteger seu bairro, “mas dizer que é interesse público? Isso, não”. Outros urbanistas, como o professor da FAU-USP João Sette, concordam que os bairros-jardins são segregacionistas – no caso dele indo até mais além,comparando-os com o Apartheid – mas relutam em concordar com seu adensamento, muito menos com a entrada “livre” do mercado imobiliário.

Sette apresenta sentimentos ambíguos em relação ao desenvolvimento da região, sugerindo que o tombamento deveria ser preservado, beneficiando o morador que “teve a oportunidade de lá morar”, aliado a um grande receio de que a incorporação imobiliária transformaria a região em um “paliteiro” verticalizado, já que o desenvolvimento é feito (sic) “sem planos, sem lógica, sem desenho, sem proteção dos espaços públicos, sem redimensionamento das ruas, sem regulação do Estado, segundo sua livre vontade”.

No entanto, ao usar tais argumentos, autores como Sette esquecem que os principais geradores da má tipologia urbana em São Paulo foram justamente as regulações que restringem as densidades demográficas, obrigando que a verticalização seja aliada a amplos recuos de ajardinamento, desincentivando a ocupação do térreo com atividade comercial e ainda obrigando a construção de uma grande quantidade de vagas de estacionamento em cada construção, quem acabam utilizando boa parte do térreo para isso. Nenhum bairro que se desenvolveu anterior a este tipo de legislação, como qualquer um da Subprefeitura da Sé, na região do centro histórico de São Paulo, possui a característica de paliteiro criticada por tais autores, mas sim uma verticalização que produz densidade, moradia acessível e uma calçada viva. Uma flexibilização regulatória, dessa forma, certamente traria ganhos na qualidade e na democratização do espaço urbano.

Alguns podem argumentar, ainda, que os moradores devem ser protegidos pois fazem parte de um loteamento privado com regras próprias. No entanto, isso não ocorre de fato na legislação, dado que um loteamento é diferente de um condomínio. Em um loteamento, o incorporador pode definir uma série de regras, mas logo em seguida tanto as regras como a infraestrutura pública são incorporadas ao poder público.

Ou seja, é a Prefeitura de São Paulo que custeia a manutenção do espaço público do bairro e que é responsável pela legislação urbana que incide sobre ele. Não é o caso do Jardim América e Europa serem condomínios totalmente privados, onde existem convenções de condomínio e que os espaços são custeados totalmente pelos moradores, como é o caso, por exemplo, de empreendimentos da Alphaville ou de projetos ainda maiores como a Riviera de São Lourenço. O Jardins foi sim um loteamento planejado e construído por uma incorporadora privada, mas logo em seguida se tornou um bairro como os demais na cidade de São Paulo, sujeitos a alterações do Plano Diretor como as que estão hoje sendo feitas.

Assim, o cidadão paulistano deve estar ciente que alteração da Lei de Zoneamento dos Jardins é legítima e que, se aprovada, trará benefícios para a cidade. A população deve lutar contra este pequeno grupo de pessoas que são sim, moradores, mas não donos da área, pessoas que pedem pela exclusão do resto da cidade da região dos Jardins. Então, respondendo a pergunta “a quem interessa o fim das zonas exclusivamente residenciais?”: à cidade de São Paulo.

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