O período eleitoral se iniciou no dia 15/08/2016, quando a sociedade recebeu – ou pelo menos deveria ter recebido – todas as informações necessárias para a escolha de seus representantes municipais, ou seja, prefeito, vice-prefeito e vereadores.

Todo esse processo marca a chamada “festa da democracia”, oportunidade em que o povo poderá eleger “livremente” – com o voto obrigatório – quem irá lutar pelo seu bem-estar pelos próximos 4 anos juntamente aos Poderes da República.

Ao observar dados étnicos disponíveis no próprio site do TSE, recentemente chegou ao conhecimento da população um fato no mínimo curioso: dos 5.568 municípios do país, em 2.512 cidades não há candidato negro (preto ou pardo) disputando as eleições para o cargo de prefeito. Ora, em uma nação onde mais da metade da população – 53% – é de negros, por que em 45,11% dos municípios eles sequer se apresentaram para disputar o cargo de chefe do poder executivo local?

Algumas razões poderiam vir a responder esse questionamento.

A primeira justificativa a ser enfrentada é que essas cidades poderiam estar compreendidas em locais de uma concentração muito alta de brancos em relação a negros.

Entretanto, com o levantamento apresentado, tal conclusão intuitiva começa a ruir. A nível nacional, vemos que candidatos a prefeito brancos  foram 66,40% do total, contra 32,83% de negros.

Destrinchando mais a análise, com dados feitos por região, em números absolutos, reforça-se a ideia de que não há uma correlação direta entre população e candidatos.

Na região norte há 23,23% de brancos e 73,70% de negros[1], enquanto existem 558 candidatos brancos, contra 1.009 negros. Neste caso, embora existam três vezes mais negros, a correlação, quando se trata de candidatura, passa a ser de dois para um.

Já na região nordeste, do total de sua população, 29,17% são brancos e 69,24% negros. Neste cenário, quando estudamos a relação de raça e candidato, essa desproporção praticamente some, tendo em vista que existem 2465 candidatos brancos e 2.679 negros.

No centro-oeste, com uma distribuição populacional de 41,52% brancos e 56,04% negros.  A relação na corrida pela prefeitura é de 835 candidatos brancos a 469 negros. Nesse panorama, embora haja mais negros do que brancos na região, os candidatos brancos são praticamente o dobro do número de candidatos negros.

No sudeste, por sua vez, a discrepância é ainda maior. Com 4.208 candidatos brancos e apenas 1.120 negros, encontramos uma relação de quatro vezes mais brancos que negros. Todavia, a porcentagem da população nessa região é de 54,94% brancos para 43,78% negros. Aqui, apesar de encontrarmos um relativo equilíbrio populacional, parece haver uma barreira de difícil transposição para que negros concorram ao executivo.

A única região que pode não causar espanto em um primeiro momento é a região sul. Ela conta com ampla maioria de candidatos e população branca,  tendo em seu quadro 2.934 candidatos brancos e 162 candidatos negros, em uma sociedade composta por 78,34% de brancos e 20,69% negros. Há, contudo, numa análise mais detida desse caso, uma peculiaridade que, apesar de a população branca ser quatro vezes maior do que a negra, o número de candidatos brancos ultrapassa dezoito vezes o de candidatos negros.

Assim, com os dados expostos, não é possível extrair que a ausência de candidatos negros à prefeitura se dá exclusivamente pela distribuição populacional de cada região do país, pelo contrário, já que identificamos não haver uma correlação direta entre estes fatores.

A fim de melhor compreender esse fenômeno, se faz necessário recorrer a outros fatores e condições do processo eleitoral, observando como se dá a disputa em outros casos.

Uma verificação mais minunciosa foi feita no âmbito já atualizado das eleições 2016, sob a perspectiva da composição do acesso às câmaras dos vereadores. Esse recorte demonstra outra realidade, qual seja um equilíbrio entre candidatos brancos e negros. Em todo o país, temos 50,52% de candidatos brancos e 48,70% de candidatos negros.

Nesse ponto, embora ainda existam discrepâncias, é possível identificar que a disparidade está muito menor e, por conseguinte, a participação dos negros na corrida eleitoral das assembleias legislativas é muito maior. Qual seria o motivo?

Para sanarmos tais dúvidas, é preciso recorrer às últimas eleições (2014) e trazer outros elementos complementares à discussão.

O quadro geral das eleições de 2014 teve uma proporção de 55% dos candidatos brancos para 44,26% negros. Ao aumentarmos a lupa e vermos essa distribuição por cargos, os dados mostram que 53,59% dos candidatos ao cargo de deputado estadual são brancos contra 45,63% negros. Um degrau acima, na disputa para deputado federal, a proporção é de 58,06% de brancos e 41,06% de negros.

Quando voltamos à eleição majoritária no âmbito federal, o abismo é ainda maior, porque na concorrência para o senado, contamos com 67,56% de candidatos brancos e 30,81% de candidatos negros. Além disso, temos 68,18% dos candidatos a governador brancos contra 31,25% negros. Entretanto, foi na corrida presidencial que tivemos a maior disparidade. Nela, 91,66% candidatos eram brancos contra 8,33%, porcentagem esta representada por uma única candidata – Marina Silva – que disputou contra 11 outros para conquistar o mais alto cargo do poder executivo na esfera nacional.

As variações existentes entre as corridas para os cargos políticos se definem eminentemente pelo custo de suas campanhas, se considerarmos a abrangência de sua atuação quando forem eleitos.

Assim, é interessante observar o histórico de despesas nos variados cargos políticos existentes.

A eleição de um deputado federal custou, nas eleições passadas (2014), em média, R$ 6,437 milhões, segundo estimativa apresentada à Justiça Eleitoral por oito dos maiores partidos políticos – PT, PSDB, DEM, PP, PMDB, PPS, PSB e PR. Já para deputado estadual, a estimativa dessas legendas é de que se gastou, em média, R$ 3,8 milhões. Na corrida para o Senado, por sua vez, o custo médio dos não eleitos foi de R$ 1.054 milhão, enquanto o dos eleitos ficou em R$ 4.700 milhões.

Passando para o âmbito dos municípios, nesse ano de 2016, houve a divulgação pelo TSE do valor máximo para as campanhas – com base nos artigos 5° e 6° da lei 13.165/2015 que estabelece os limites de gastos nas campanhas eleitorais – baseando-se nas eleições anteriores (executivo nas cidades pequenas é de R$ 108 mil; para o legislativo, R$ 10,8 mil).

Analisando as duas maiores capitais do país, temos R$ 45,4 milhões para a corrida da prefeitura de São Paulo e R$ 19,8 milhões para a do Rio de Janeiro. Já para a câmara legislativa do Rio, o valor é de R$ 1.400.000,00, enquanto para São Paulo é de R$ 3.200.000,00.

Assim, se faz necessário reconhecer que os custos de uma campanha eleitoral estão diretamente ligados à discrepância de representatividade entre brancos e negros nas candidaturas, uma vez que a população negra do Brasil representa a base da pirâmide de renda per capta nacional, conforme explicitado nos gráficos abaixo.

extre pobres

Na faixa social classificada como extremamente pobre[2], notamos que 71% é composta por negros – traduzidos em 5.651.071 de pessoas. Ainda na base, mas subindo uma faixa, considerada pobre[3], o correspondente é de 75% negros, ou 7.357.054 pessoas.

Assim, é inquestionável que o racismo estrutural existente em nossa sociedade se reflete no pleito eleitoral, já que para se concorrer a cargo político precisa haver dinheiro para as propagandas e demais custos. Uma análise mais profunda nos revela assim a existência de um filtro racial: conforme mais alto o cargo, menor a participação de negros concorrendo e, por consequência, menor a representatividade nas diversas funções políticas. Tal fato nos faz pensar no nível de legitimidade das escolhas possíveis dentro do quadro apresentado.

Por outro lado, quando se afirma que inexiste interesse na participação política por parte da população, é preciso se perguntar a razão dessa ausência. Com os fatores apresentados acima, podemos ter uma boa noção de sua resposta.

Afinal, que democracia é essa em que não aproveitar toda a nossa capacidade de representação, uma vez que não há uma estrutura plenamente formulada? A verdade é que com o racismo estrutual entranhado em nossa cultura, chegamos ao ponto de asfixiar possíveis lideranças que poderiam de fato trabalhar pela melhoria do país.

Como essa discrepância pode influenciar nas políticas públicas focadas em favor dessa parcela tão significativa da população, que forma a maioria nacional?

Parece que essas conclusões podem servir de base para outras tantas questões democráticas e sociais, que deixarei para o caro leitor refletir.

Sem medo dos desdobramentos, a festa da democracia se mostra restrita e com candidatos VIP.

[1] Todos os dados demográficos foram extraídos do Censo 2010.

[2] Definida pelo programa Brasil sem Miséria Renda referente a renda domiciliar per capita de até R$79,12.

[3] Definida pelo programa Brasil sem Miséria Renda referente a renda domiciliar per capita entre R$79,12 e R$ 158,24.

Compartilhar