O Brasil é um país realmente interessante. Nós precisamos que a nossa Constituição estabeleça pisos mínimos de gastos em setores vitais como Saúde e Educação, e uma lei que impeça o gestor público de gastar demais, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ainda assim, o problema fiscal está na base de muitos problemas econômicos atuais: com a subida da dívida do governo, sobe o risco de calote – e, com esse risco, os juros da dívida.
A situação brasileira é risco de insolvência, ou seja, de que o governo perca sua capacidade de financiar seus gastos futuros. Em sua base, está a deterioração do balanço do governo – chamado em economês de “superávit primário”. Desde o fim de 2014 o governo gasta mais em suas despesas correntes do que arrecada com tributos. Isso, somado à crise econômica, levou à explosão da dívida do governo. Veja nos gráficos abaixo.
Por isso, a equipe econômica do Governo Temer voltou-se para proposta de limitação do crescimento do gasto público. Vale ressaltar que medida semelhante já havia sido posta em pauta durante o 1º Governo de Lula, mas arquivada.
Assim, foi enviado para o Congresso Nacional uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para limitar o gasto público pelas próximas duas décadas. Apesar de, a princípio, essa PEC ser essencial para o controle das contas públicas brasileiras, ela está enfrentando muita resistência por diversos setores da sociedade. O principal argumento contra ela gira em torno do fato dela supostamente causar perdas substanciais no orçamento da saúde e da educação pública, sucateando os já insatisfatórios serviços públicos; esses cortes, portanto, afetariam seriamente a população mais pobre, que depende desses serviços, o que aprofundaria mais ainda a desigualdade social brasileira. Será que isso é verdade? Vamos aos fatos.
A PEC 241 limita o crescimento do gasto público federal real. Assim, o gasto para 2017 será equivalente ao de 2016, corrigido pela inflação do ano anterior (IPCA, ou outro índice que venha a substituí-lo no futuro).
Há, contudo, importantes exceções. Estão fora do controle do teto:
Por conseguinte, Estados e Municípios não terão seu regime fiscal alterado. A PEC vale apenas para os gastos do Governo Federal.
Temos, atualmente, um cenário de um déficit primário de 170 bilhões de reais, o pior da história da Nova República. Essa situação pressiona a taxa de juros, uma vez que ela aumenta o risco de moratória da dívida pública, o que impede agrava ainda mais a situação de crise e aumento do desemprego no país.
A situação fiscal tem duas instâncias a serem atacadas. A primeira diz respeito ao fato de cerca de que 80% de todas as despesas do Governo Federal são despesas vinculadas constitucionalmente – isto é, o governo ou o Congresso não têm capacidade de alocá-las conforme desejarem. Aproximadamente metade dessas despesas obrigatórias vem da Previdência, enquanto a outra metade são os gastos com o restante das áreas.
Esse é, talvez, o maior risco da PEC do Teto dos Gastos Públicos: o Congresso negligenciar as reformas sobre os gastos obrigatórios, como previdência e funcionalismo público. Se esses gastos continuarem crescendo, sem nenhuma mudança, de fato pode haver risco para os gastos sociais.
Se aprovada, a própria PEC já prevê uma mudança nesse sentido. O gasto com o funcionamento de cada um dos três poderes será congelado de forma independente, sempre com a correção pelo IPCA. Dessa forma, o Congresso e os gestores públicos terão uma pressão enorme para melhorar os serviços oferecidos à população sem necessariamente gastar mais do que já se gasta hoje.
Outro ponto importante, também presente na PEC, é o de que não poderá haver mudanças nas carreiras, bem como criação de novas carreiras, que signifiquem aumento de gastos públicos. Dessa forma, os concursos públicos somente ocorrerão para reposição de quadros, seja por aposentadoria, seja por avanço na carreira dos atuais servidores. É justamente por este motivo que o leitor deve desconfiar quando a oposição a PEC vem de setores da elite do funcionalismo público.
Com isso, pode-se concluir que finalmente os gastos sociais estão protegidos da sanha de grupos de pressão. Por fim, vale lembrar que, entre outros objetivos, há o claro propósito de se tirar o peso dos gastos do governo da nossa economia. Se o PIB aumentar em termos reais e os gastos não aumentarem tanto, isso significa que a relação gastos/PIB irá cair. Isso significa menos impostos no futuro.
A Previdência, por enquanto, é a maior inimiga da PEC do Teto. Apenas por conta do envelhecimento da população, mantidas as regras atuais, ela crescerá aproximadamente 4% ao ano em termos reais. Veja abaixo as projeções de como o défice da previdência deve triplicar.
Se considerarmos que a divisão de recursos se mantenha como estão hoje, todos os outros setores terão que ter cortes reais de 3,8% ao ano. Com mais recursos sendo necessários para cobrir o défice da previdência, sem uma reforma, quem sofreria seria, prioritariamente, a área da saúde.
Dessa forma, uma vez a PEC do Teto entrando em vigor, torna-se extremamente vital para o país que a Reforma da Previdência ocorra, seja por aumento da idade mínima para aposentadoria, seja por outras vias. O Instituto Mercado Popular já deu outros motivos essenciais pelos quais essa reforma precisa ocorrer. Os dados estão aqui.
A PEC vai tirar recursos da Educação e da Saúde?
Não. A PEC 241, na verdade, estabelece um piso para esses gastos. Para a saúde, por exemplo, o congelamento só irá valer a partir de 2018. Será definido um piso de 15% da receita líquida total (acima do que é hoje) para o gasto em 2017. A partir daí esse piso será atualizado ano a ano pela inflação.
Isso não significa que esses gastos precisarão necessariamente ficar congelados. Eles podem ficar acima do piso mínimo obrigatório o quanto for necessário. A diferença é que, a partir de agora, governos precisarão tratar o orçamento como limitado. Para aumentar investimentos em saúde e educação, será necessário algum corte em algum outra pasta.
Por fim, vale comentar que, no regime atual, os gastos com saúde e educação também tem um piso. Historicamente, os gastos nesses setores são superiores ao piso estabelecido constitucionalmente. Como exemplo, analisemos o caso da educação: em 2018, ela ainda seguirá a regra atual. Está estabelecido que, no mínimo, 18% da receita líquida do Governo Federal (receita total menos transferências para estados e municípios) deve ser aplicada no setor. A partir de 2019, esse mínimo constitucional, considerando 2018, será corrigido pela inflação. Vale salientar que devido a diminuição da taxa de natalidade, a relação entre investimento e alunos na educação tende a aumentar por inércia.
No caso da saúde, a notícia é melhor: segundo a regra atual, em 2017, o Governo Federal deveria gastar, no mínimo, 13,7% da arrecadação líquida. Com a PEC 241, está ocorrendo um aumento nos recursos para a saúde, pois o piso será elevado em 2017 para 15%. Só a partir de 2018 esse valor será corrigido pela inflação.
Dessa forma, vemos que não há congelamento para saúde e educação: pelo contrário. Os pisos mínimos constitucionais não estão apenas sendo mantidos, mas ampliados. Além disso, esses gastos são imunes a períodos de baixa arrecadação, como ocorre atualmente.
A PEC vai diminuir o salário mínimo?
Existe o risco. Isso ocorre porque a PEC prevê que, caso algum governo não cumpra o teto, os gastos obrigatórios subsequentes deverão ser congelados. Esse é um ponto grave contra a PEC, já que não parece muito lógico penalizar a população que mais precisa dos gastos sociais por conta de irresponsabilidades de gestores públicos.
Dessa forma, esperamos que o Senado proponha alguma punição alternativa e, dessa vez, para o gestor, não para a população. Na verdade, o problema aqui é mais complexo que apenas isso. Não faz sentido atrelar o salário mínimo do mercado de trabalho à aposentadoria paga pela Previdência Social. Cada um deveria ter sua própria dinâmica de reajuste. Mas essa é uma discussão para outro artigo.
O Novo Regime Fiscal favorece os rentistas da dívida pública? Iremos tirar dinheiro da saúde para dar para banqueiros?
Não. A ideia de, em alguns anos, voltarmos a ter superávit primário (economias que o governo faz gastando menos do que arrecada em impostos) para pagar juros da dívida passa justamente por diminuir a relação dívida/PIB. Sem reformas, a dívida pública brasileira passaria dos atuais 68% para incríveis 88% do PIB já em 2018.
Ter compromisso com o controle dos gastos públicos significa, no médio e longo prazo, reduzir drasticamente nossas taxas de juros, que são o maior alimento dos rentistas. Diminuir essas taxas de forma sustentável deveria ser o compromisso de qualquer gestor que vê o rentismo como algo ruim para o país.
Os concursos públicos irão acabar?
Em parte, sim. A ideia é que não haja expansões no quadro de servidores públicos durante a vigência da PEC. Concursos públicos a nível federal irão ocorrer, mas apenas para reposição de vagas disponibilizadas por avanço na carreira, aposentadoria, etc.
Essa ideia está em consonância com o princípio de que nenhuma esfera federal (Executivo, Legislativo e Judiciário) poderá criar cargos ou carreiras que levem a um aumento do gasto público colocado como teto para si.
O superávit primário ao final da vigência da PEC não é alto demais? 20 anos não é tempo demais?
Projeções do economista Felipe Salto indicam que, em 2037, o superávit primário, sem mudanças no regime de atualização do teto, será de 6,5% do PIB. Esse superávit é tido no mercado como exagerado e desnecessário.
É justamente por conta da imprevisibilidade de um cenário 20 anos para frente que a PEC prevê que, após 10 exercícios (ou seja, em 2027), o governo poderá propor ao Congresso uma mudança na regra de atualização do teto do gasto. A depender do sucesso da medida e da retomada do crescimento, pode fazer sentido aumentar o gasto algum percentual acima da inflação.
Então, sim, 20 anos é tempo demais. Entretanto, na prática, a PEC está dividida em duas partes e, daqui a 10 anos, ela será revista.
Os superávits primários gerados pela PEC não são altos demais?
Sim, mas apenas se supormos que o modelo ficará estável durante os 20 anos de vigência. Por exemplo, segundo estimativas do economista Felipe Salto (artigo completo aqui), para uma situação de crescimento médio do PIB de 2% ao ano, juros reais de 4,5% ao ano e dívida pública em torno de 85% do PIB (hoje estamos em 70%), o nível de superávit primário que estabilize essa dívida é de 2,1% do PIB.
Caso não haja nenhuma alteração tanto na carga tributária quanto no regime de atualização dos gastos, esse superávit poderia chegar a 6,3% do PIB, um verdadeiro exagero. Qual a solução para evitar isso?
A PEC prevê a flexibilização do aumento dos gastos no 10º ano de sua vigência. O próprio Felipe Salto sugere uma correção de IPCA + crescimento do PIB. Outra solução, muito mais fácil de se fazer de um ano para o outro, a qualquer momento, é rever a carga tributária. Quando se diminui impostos, um superávit alto demais pode ser estabilizado e a população poderá respirar melhor com menos tributos.
O que significa “aumento de capital de empresas estatais não dependentes” que ficou fora do teto?
Empresas como Petrobras, Caixa e Banco do Brasil (a lista completa de empresas enquadradas nessa categoria está aqui) podem precisar, por razões diversas, de aporte de capital por parte do governo federal. Esses eventuais aportes não serão afetados pelo teto imposto pela PEC 241.
Governos terão incentivos para aumentar a inflação para que se gaste mais?
Não. Um primeiro efeito positivo será a falta de incentivo dos governos para mascarar a inflação, por exemplo, por congelar preços administrados, como foi feito pela gestão da ex-presidente Dilma Rousseff. E isso é ótimo.
Do ponto de vista fiscal, o governo pode impulsionar a inflação ao aumentar sistematicamente seus gastos, como veio sendo feito desde o final do governo 2º Governo de Lula e o 1º de Dilma. Esse incentivo não mais existirá por conta da PEC.
Em um caso de inflação acelerada, ou seja, inflação que aumenta consecutivamente de um ano para o outro, a PEC terá efeito amortecido. Por exemplo, se em 2021 a inflação for de 6% e em 2022, de 7%, a correção do gasto de 2022 para 2023 será a inflação de 6%. Esse “atraso” de um ano de uma inflação acelerada sobre os gastos evitam que essa “indexação” acelere mais ainda a inflação.
Por fim, podemos pensar na inflação causada por efeitos monetários, ou seja, o Banco Central. Se as taxas de juros nominais ficarem abaixo das taxas que estabilizam a inflação, dado o cenário fiscal controlado, pode acontecer de a inflação ser pressionada para cima. Esse cenário ocorreu sistematicamente durante a gestão de Dilma. Nesse caso, é crucial que se discuta uma reforma na atuação do Banco Central. Quanto menos dependência ele tiver do poder executivo, será menos provável que ele seja uma força que empurre a inflação para cima.
Apesar das dificuldades, a PEC será ótima para o país. Não coloca em risco os gastos sociais, cria uma expectativa futura de superávit extremamente crível (pois está pouco sujeita a governos irresponsáveis) e possui seus estabilizadores (transferências para estados e municípios, bem como a possibilidade de mudar a carga tributária). Ela representa uma grande pressão sobre o Congresso para que outras reformas (tributária, previdenciária, trabalhista) sejam aprovadas a fim de que se garanta os investimentos necessários nas áreas sociais.
Assim, pode-se afirmar que essa PEC tem bem menos riscos de dar errado do que tinha o Plano Real, que deu certo. No entanto, ela depende diretamente da reforma da Previdência para ter os efeitos esperados, bem como do corte de supersalários e alterações na previdência do funcionalismo público. Nossos políticos terão que fazer essa escolha: esperamos que eles optem pelos interesses das pessoas que mais precisam, e não pelos os interesses das elites formadas pelo setor público.