Por Rodrigo Viana

[dropcaps]L[/dropcaps]iteratura de Cordel (ou folheto) é um gênero da cultura popular que remonta a época do Renascimento. São, geralmente, poesias escritas em formas rimadas com origens em relatos e impressos em folhetos. Muitos são impressos com figuras em xilogravuras também.

Trazida pelos portugueses, a literatura de cordel logo tornou-se conhecida a partir da segunda metade do século XIX em regiões do nordeste brasileiro. Seus temas variam entre lendas, histórias religiosas, acontecimentos do cotidiano, fatos históricos e muitos outros. Não há limites para as ideias.

O “pai” da Literatura de Cordel

Conhecido como o “pai da Literatura de Cordel”, Leandro Gomes de Barros foi um dos maiores cordelistas e pioneiro ao utilizar versos rimados. Nascido em 1865, no município de Pombal, estado da Paraíba, conviveu com muitos violeiros de onde tinha adquirido sua inspiração popular. Faleceu em 1907.

Leandro G. de Barros

Leandro G. de Barros, o “pai” da Literatura de Cordel

Foi muito crítico à política de sua época. Temas como governo, impostos e guerras estiveram no imaginário de suas obras. E isso pode ser visto em obras como Padre-Nosso do impostoO aumento do selo e a crise atual e Panelas que muitos mexem. Tendo convivido com a dureza da vida dos povos nordestinos, Barros não deixava de mencionar esse lado de seu cotidiano.

A alma da fateira

Nascido em 1897 em Sergipe e falecido em 1952, Manoel de Assis Campina foi um cantador, poeta cordelista e repentista. Autor de Aventuras de Justino no reino de sete quartos, Aparecimento de Padre Cícero na Urucânia com o nome de Padre Antônio e A cheia de 48, é também autor do Discussão dum Fiscal com uma Fateira. Obra esta que já foi representada em círculos teatrais populares.

Nesta obra, Campina demonstra uma raiva crescente na personagem da fateira sobre um fiscal. Como um agente do estado, o fiscal tenta de várias formas ter o pagamento da mulher mas o resultado termina de forma inesperada. A fateira, representando a raiva do povo pela imposição do estado, desafia o fiscal de modo corajoso. Vale muito a pena ler.

Discussão dum fiscal com uma fateira

Discussão dum fiscal com uma fateira – obra de Campina ao qual já foi encenada no teatro.

O Imposto de Honra
por Leandro G. de Barros 

O velho mundo vai mal.
E o governo danado
Cobrando imposto de honra
Sem haver ninguém honrado.
E como se paga imposto
Do que não tem no mercado?

Procurar honra hoje em dia
É escolher sal na areia
Granito de pólvora em brasa
Inocência na cadeia
Água doce na maré
Escuro na lua cheia.

Agora se querem ver
O cofre público estufado
E ver no Rio de Janeiro
O dinheiro armazenado?
Mande que o governo cobre
Imposto de desonrado.

Porém imposto de honra?
É falar sem ver alguém
Dar remédio a quem morreu
Tirar de onde não tem
Eu sou capaz de jurar
Que esse não rende um vintém.

Com os incêndios da alfândega
Como sempre tem se dado
Dinheiro que sai do cofre
Sem alguém ter o tirado
Mas o empregado é rico
Faz isso e diz: — Sou honrado.

Dizia Venceslau Brás
Com cara bastante feia
Diabo leve a pessoa
Que compra na venda alheia
O resultado daí
É o freguês na cadeia.

Ora o Brasil deve à França
Mas a dívida não foi minha
Agora chega Paris
Tira o facão da bainha
E diz: — Quero meu dinheiro
Inda que seja em galinha.

Seu fulano dos anzóis
Entrou e meteu o pau
Pensou que tripa era carne
E gaita era berimbau
Vão cobrar desse, ele diz,
Quem paga é seu Venceslau.

Disse Hermes da Fonseca
Eu não tinha nem um x.
Mas achei quem emprestasse
Tomei tudo quanto quis
Embora tivesse feito
A derrota do país.

Disse Pandiá Calógeras:
— Há um jeito de salvar
Cobre.se imposto de honra
Que ver dinheiro abrejar.
Disse o Brás: — Ninguém tem honra,
Como se pode cobrar?

Apareceu uma parte
Do Rivadávia Correia:
Não tem aqui entre nós
Devido à cousa está feia
Não acha-se no senado
Procura-se na cadeia.

O major Deocleciano
Disse da forma seguinte:
— Na cadeia do Recife
Eu tive um constituinte
Entre ele e outros mais
Inda se pode achar vinte.

Disse o Dr. Rivadávia:
— Eu fiz doutor de 60
Dei carta aqui a quadrado
Que não escreve pimenta
Tem médico que receitando
Procura o pulso na venta.

Porém na minha algibeira
Sessenta fachos ficaram
Embora tenha saído
Mais burro do que entraram
Dei diploma a criaturas
Que nem o nome assinaram.

E este imposto de honra
Está nas mesmas condições
Tira-se bom resultado
Onde houver muitos ladrões
Até mesmo a meretriz
Levará seus dez tostões.

Ela pagando imposto
Pode provar que é honrada
Tendo uns oito ou nove erros
Isso não quer dizer nada
Passa por viúva alegre
Ou uma meia casada.

Qualquer ladrão de cavalo
Paga o que for exigido
Porque dessa data cru diante
Não rouba mais escondido
Com o talão do imposto
Não o prendem é garantido.

Pelo menos eu conheço
Um tal Chico Galinheiro
Que disse: — Eu pago imposto
Também quem tiver poleiro
Nunca mais há de criar-se
Nem um pinto no terreiro.

Disse Marocas de todos:
— Oh! cousa boa danada
Eu compro um vestido preto
E grito: — Rapaziada
Meu marido não morreu
Mas eu? sou viúva honrada.

Pago o imposto de honra
Boto no bolso o talão
E grito no meio da rua
Se aparecer um ladrão
Que diga: — Não és honrada
Veja se eu provo ou não.

Esses diabos que hoje
Me chamam Marocas tinha
Quando eu pagar o imposto
Me tratam por sinhazinha
Se for de tenente acima
Chamam dona Maroquinha.

O Imposto de Honra, de Leandro Barros

Disse um zelador da noite:
— O imposto não é mau
Foi uma lembrança ótima
Aquela do Venceslau
O diabo é se o talão
Não livrar ninguém do pau.

Se a cousa for como eu penso
E não tiver seus conformes
Nós operários noturnos
Teremos lucros enormes
Cada corador por noite
Nos rende dous uniformes.

Dormindo o dono da casa
Dar-se a busca no quintal
Inda a polícia chegando
Não pode nos fazer mal
Pois nós pagamos imposto
Ao governo federal.

Disse um passador de cédula:
— Ai eu não sei o que faça
Se quem pagar o imposto
Puder passar cédula falsa
Com uma eu pago o imposto
Sai-me a receita de graça.

Disse Zé Frango: — Esse imposto
Chegando eu tenho que pagá-lo
O pago com sacrifício
Mas também tenho o regalo
Quem me chamava Zé Frango
Há de chamar Zeca-Galo.

Dizia João caloteiro:
— Está muito bem isso assim
Benza-te Deus, Venceslau
Deus te ajude até o fim
Eu hei de ver se o comércio
Ainda cobra de mim.

Tem dia que lá em casa
Eu desespero da fé
Ouço baterem na porta
Vou abrir e ver quem é
Acho na porta escorado
O caixeiro do café.

Antes de desenganá-lo
Chega o danado da venda
O sapateiro de um lado
E o turco da fazenda
O recado do açougue
A velha cobrando a renda.

Nisso chega outro diabo
Com um recibo na mão
Antes de chegar, pergunta
Se eu tenho dinheiro ou não.
Ou o dinheiro ou a chave
Manda dizer o patrão.

Eu pagando esse imposto
Fico disso descansado
Quando um bater-me na porta
Digo puxe desgraçado
Eu pago imposto de honra
Não sou desmoralizado.

Embora roube de alguém
O imposto hei de pagar
Mas todo mundo já sabe
Na bodega que eu chegar
Nem pergunto pelo preço
É só mandar embrulhar.

(Em O cordel; testemunha da história do Brasil. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987. Literatura popular em verso, antologia nova série, 2) 

O povo na cruz
por Leandro G. Barros: 

(alguns trechos)
Alerta, Brasil, alerta!
Desperta o sono pesado,
Abre os olhos que verás
Teu povo sacrificado
Entre peste, fome e guerra
De tudo sobressaltado.  

O brasileiro hoje em dia
Luta até para morrer,
Porque depois dele morto
Tudo nele quer roer,
De forma que até a terra
Não acha mais que comer.

A fome come-lhe a carne
O trabalho gasta o braço
Depois o governo pega-o
Há de o partir a compasso
Estado, alfândega, intendência.
Cada um tira um pedaço. 

O médico cobra a receita
O boticário a meizinha,
O juiz confisca logo
Alguns bens, se acaso tinha,
Inda ficando uma parte
Diz a Intendência: – É minha!

Assim morre o brasileiro
Como bode exposto à chuva,
Tem por direito o imposto
E a palmatória por luva
Família só herda dele
Nome de órfão e viúva. 

Discussão dum fiscal com uma fateira, por Manoel A. Campina (narrado por Jonas Varela):

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=G7slHzvrxSc[/youtube]

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rodrigoviana

Rodrigo Viana é programador de software e blogueiro. Em seus interesses incluem disciplinas como história, sociologia, economia e filosofia política. Já colaborou escrevendo para outros blogs políticos e atualmente colabora no Portal Libertarianismo, além de manter os blogs A Esquerda Libertária e Libversiva!. Quando não está falando sobre política, provavelmente está falando de música ou algum assunto relacionado a cultura pop. Seu twitter é @VDigo.

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