No último dia 14 vários jornais e blogs anunciaram que “Para Ministério Público, pedaladas do governo Dilma não são crime” e alguns entusiastas da Presidenta afastada já comemoravam que isto era o “fim do impeachment”. Para entender o impacto que a suposta decisão pode ter, precisamos primeiro entender o que estava em discussão e ver o que foi efetivamente dito, em que âmbito e com qual intuito.
A notícia se baseia num despacho emitido por um Procurador da República, nos autos de um procedimento investigatório criminal. Esse procedimento configura uma investigação prévia, que antecede o próprio inquérito policial, com amparo no poder geral de investigação do Ministério Público[1] e tem como objetivo decidir se o MPF irá apresentar ou não denúncia, ou pedir abertura de inquérito, contra uma pessoa por crime comum.
O Procurador da República Ivan Marx, avaliando notícia de irregularidade apresentada pelo TCU sobre as irregularidades fiscais, concluiu que:
“conforme esclarecido no decorrer da investigação no Inquérito Civil, o objetivo da união nunca foi o de se financiar por meio do BNDES, do qual é inclusive credor, mas sim o de ‘maquiar’ o resultado fiscal. Essa maquiagem, muito embora não configure o crime referido, configura improbidade administrativa e a devida definição das responsabilidades segue sendo apurada no Inquérito Civil respectivo.”
O Procurador entendeu que não houve crime comum e opinou pelo arquivamento da investigação, o que será decidido efetivamente por um Juiz Federal. Agora, qual a relação da suposta ausência de crime comum com o processo de impeachment?
No direito brasileiro vigora o princípio da independência das instâncias, o que significa que um mesmo ato pode infringir (ou não) normas de direito penal, civil e administrativo, tendo diferentes sanções. Inclusive o resultado de um processo não implica o do outro. A única exceção é quando o processo penal tem sentença (expedida por um juiz ou tribunal) que reconheça que o acusado não cometeu o fato.
No Brasil temos três formas básicas de responsabilidade de autoridades públicas: i) criminal, ou de crimes comuns; ii) a ação civil de reparação de danos ou de improbidade administrativa; iii) a responsabilidade político-administrativa.
A responsabilidade criminal, que decorre dos crimes comuns, é a mais grave. Suas penas incluem restrição de liberdade (prisão), restrição de direitos (inclusive políticos), multa, e podem configurar causa de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. Seus casos estão previstos no Código Penal e outras leis específicas (como a Lei de Licitações), são julgados pelo Poder Judiciário mediante denúncia do Ministério Público, normalmente antecedida por inquérito policial. Ela tem o procedimento mais delicado, regulado pelo Código de Processo Penal, com mais garantias aos direitos fundamentais do acusado. Entre essas proteções estão os princípios de em dúvida decidir a favor do réu e proibição da analogia para punir decorrente da legalidade prévia e estrita da norma penal.
Todos aqueles que se relacionam com a Administração Pública, incluindo servidores públicos, mandatários políticos (parlamentares, presidentes, governadores, prefeitos), juízes, fornecedores, estagiários, estão sujeitos a Lei da Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92). Esta lei pune os atos de enriquecimento ilícito, dano ao erário e desrespeito aos princípios administrativos, tendo conceitos mais abertos, para abarcar também os casos que, pelo princípio da legalidade estrita, muitas vezes seriam ignorados pelo direito penal. Ela segue o rito da lei própria e do Código de Processo Civil, sendo julgada por juízes cíveis ou especializados em causas estatais, dentro do Poder Judiciário. Suas penas incluem demissão ou perda do mandato, proibição de contratar com a Administração Pública, suspensão dos direitos políticos, multa civil, obrigação de indenizar e também pode causar a inelegibilidade por oito anos.
Os crimes de reponsabilidade, estabelecidos pela Constituição e por legislação específica[2], se amparam no princípio Republicano da repartição de poderes e no controle mútuo entre estes. São os que tem configuração mais ampla e genérica entre todas as categorias. O processo contra o chefe do Poder Executivo pode ser movido por qualquer cidadão (enquanto nos demais há sempre uma restrição) e o julgamento é feito pelo Poder Legislativo (Senado Federal, autorizado pela Câmara dos Deputados).
A maior parte dos seus casos são previstos para aumentar a responsabilidade geral do Presidente sobre as ações do seu poder, e seu dever de cuidado sobre o ato de seus subordinados. As penas se limitam à perda do mandato e inabilitação para funções públicas por cinco anos, além de configurar causa de inelegibilidade. A lei 1.079/50 (Lei do Impeachment) expressamente estabelece que suas penas não excluem “o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis de processo penal”.
Tipo de Infração | Crime Comum | Improbidade Administrativa | Crime de Responsabilidade |
Natureza | Penal estrita | Civil-Administrativa | Político-Administrativa |
Órgão Julgador | Supremo Tribunal Federal | Justiça Federal de 1º Grau | Senado Federal |
Lei Processual | Código de Processo Penal | Lei 8.429/92 e Código de Processo Civil | Lei 1.079/50, Constituição da República, Regimentos do Congresso |
Penas máximas | Prisão, Suspensão dos Direitos Políticos pela duração da pena, Multa | Perda do cargo, Suspensão dos Direitos Políticos por Multa Civil | Perda do Cargo, Vedação de novo cargo público em 5 anos |
Atuação direta do MPF | Sim. | Sim | Não. |
Apesar de toda a pirotecnica observada na imprensa, a realidade é que:
Portanto, o despacho do MPF tem apenas a capacidade política de influir no julgamento do impeachment, ainda que não tenha sequer avaliado os pressupostos de fato e de direito da acusação que pesa contra a Presidente Dilma.
[1] Art. 8º, V, da Lei Complementar 75/93
[2] Pela Lei 1.079/50 (Presidente, Ministros, Ministros do STF, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado) e Decreto-Lei 201/1967 (Prefeitos e Vereadores).