O Ministro da Saúde, Ricardo Barros, que já havia gerado polêmica ao dizer que o SUS precisava ser repensado (ao nosso ver, com razão), tem sido alvo de críticas por ter afirmado que os brasileiros não sabem utilizar o sistema de saúde socializado. Muitos profissionais da saúde, aliás, são ensinados nos bancos da universidade que o sistema do SUS é perfeito na teoria, mas na prática a gestão e os pacientes o tornam inviável. Mas desde quando já se viu um serviço culpando seus consumidores pelas suas próprias incompetências? A culpa é da população, que não sabe usar o SUS direito, ou do SUS, por ser mal estruturado?

Apesar das críticas recebidas, o posicionamento do ministro é endossado por diversos técnicos associados ao sistema de saúde estatal brasileiro. Isso ocorre porque as pessoas vão à emergência médica quando deveriam ir a postos de saúde ou quando poderiam ir às Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Pacientes chegam com condições psicossomáticas que não necessariamente requerem tratamentos ou exames mais detalhados — mas mesmo assim os exigem –, entre tantos outros discursos.

Mas os problemas vão além disso: fato inegável é que o SUS é mal estruturado tanto no desenho para a prestação de seus serviços, quanto no sistema de incentivos para a população. Quando um tratamento de emergência tem o mesmo “custo” percebido pelo paciente que um tratamento em uma UPA, pacientes vão à emergência por buscarem o imediatismo do atendimento. Quando o paciente não paga por nenhum dos serviços nem medicamentos no processo, ele vai sempre demandar mais e mais do sistema, mesmo que nenhum ganho em seu bem-estar seja auferido. Quando a conta é custeada por terceiros, os pacientes tenderão a ter comportamentos irresponsáveis em seu cotidiano, como não fazer exercícios, não manter uma dieta equilibrada e, até mesmo, não ter uma vida sexual regrada — não se preocupando com DSTs ou com o risco de uma gravidez indesejada –, entre outras atitudes imprudentes e/ou negligentes.

Isso se dá por um problema de entendimento básico da maior parte das pessoas que usa e que trabalha no SUS: os pacientes são os usuários (consumidores), mas não os compradores do sistema. O papel de comprador é reservado aos burocratas, tanto de Brasília quanto das capitais estaduais, pois eles controlam como o dinheiro será alocado no sistema. Dessa forma, o SUS não tem a capacidade de interpretação dos preços, tampouco de entender a demanda e alocar recursos de uma forma minimamente aceitável. O planejamento central realizado tenta forçar a população para que ela atue do jeito que eles desejam, situação falha do sistema.

Qual a diferença entre consumidor e comprador?

Para entender essa diferença entre consumidor e comprador, podemos utilizar um exemplo simples, como o aniversário de uma criança de um ano. Os pais são os compradores do serviço, sendo aqueles que pagam a conta e que, portanto, têm o poder decisório. Por mais que eles tenham as melhores das intenções em mente, eles não sabem tudo que está se passando pela cabeça de seu filho — principalmente por ele não conseguir se comunicar direito ainda — e quase nunca conseguirão fazer uma festa que seja totalmente do agrado da criança. O que normalmente vemos é um bebê que fica irritadiço ao longo do dia com barulho, pessoas e comidas estranhas, sendo que o “dono” da festa não se lembrará de nada do que aconteceu naquela celebração.

Mas como compradores, os pais focam em coisas que para eles são importantes, como a imponência da festa, o local, número de convidados, tipos de comida e música, em grande parte para mostrarem seu status social. O resultado disso é que o consumidor da festa, que seria o bebê, tem uma experiência ruim porque ele não tem a capacidade decisória e alocatória dos recursos. Os compradores se sentem bem porque na visão deles suas prioridades foram atendidas e eles acham que conseguiram prover algo “legal” para a criança, sendo que ela ficou “chateada” por não conseguir “entender” direito o que estava acontecendo.

Qualquer semelhança desse exemplo com o SUS não é mera coincidência. Burocratas estatais, geralmente indivíduos que nunca usaram o sistema, são os compradores dos serviços. Eles definem como os médicos e outros profissionais de saúde estarão distribuídos — hospitais, UPAs, equipes do SAMU, postos de saúde –, quais medicamentos serão contratados, quais vagas de residência serão abertas e assim por diante. Os pacientes, consumidores dos serviços, ficam deixados de lado no processo e, quando se irritam com o desenho do sistema, são os culpados por não entenderem como usar o sistema projetado pelos gestores de Brasília.

É certo que há falhas de gestão no SUS que podem e devem ser corrigidas. A corrupção e “o jeitinho brasileiro” devem ser combatidos. Porém, nada disso alteraria a lógica do desenho: enquanto os burocratas forem os tomadores de decisão, o sistema nunca será capaz de atender às necessidades dos seus reais usuários.

Trata-se de uma faceta do problema do conhecimento: o planejador central é incapaz de agregar toda a informação para tomar decisões que afetam a vida de milhões de pessoas. Nesse caso, ainda temos um claro sistema de incentivos errados, que tira o poder decisório daqueles que são afetados pelas medidas — os consumidores —  e passa para um grupo de pessoas que tem poder de editar normas e orçamento, mas que não convive com problemas do dia-a-dia, afetando os usuários do sistema.

O interessante é que a lógica por trás do desenho do SUS também existe em praticamente todas as outras políticas públicas no Brasil, mas nem sempre elas geram sistemas tão ineficientes quanto o SUS. Por exemplo, por pior que seja a educação brasileira, todas as pessoas entendem como funciona a distribuição de alunos em sala de aula: por idade e localização geográfica. O sistema educacional é muito ruim em questão curricular e de ensino, mas ele consegue ser claro o suficiente para que todos os “consumidores” saibam em qual série os seus filhos estarão matriculados, em qual escola eles vão estudar e quais os níveis de progresso necessários para se completar a formação.

Ou seja, é possível, mesmo com toda magnitude do problema do conhecimento e do sistema de incentivos perverso, que separa consumidores e compradores, ter algo minimamente viável e que seja claro para os seus usuários, o que não ocorre no SUS, como demonstramos. Vale ressaltar: nos sistemas em que o SUS se espelha e se baseou, como o modelo sueco e o britânico, há cobrança de diversos serviços no intuito de evitar procedimentos supérfluos. Há também extensa propaganda ensinando os usuários a utilizar adequadamente o serviço. Essas medidas seriam benéficas para o caso brasileiro, mas não seriam suficientes para tornar o SUS operacionalmente viável porque o maior problema dele é sua própria estrutura.

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