Hoje (23), o Reino Unido realiza referendo que decidirá sobre sua permanência na União Europeia ou sua saída do bloco. Uma das promessas de campanha de Cameron para as eleições gerais de 2015, o referendo tem polarizado os britânicos e permeado o debate político do país pelos últimos meses. O discurso sobre a saída britânica (British exit) da UE ganhou o nome de Brexit, em uma comparação com a discussão interior sobre a possível saída grega da Zona do Euro, ou “Grexit”.
A incerteza sobre o resultado do referendo tem aumentado o risco da atividade econômica e gerado instabilidade nas bolsas de valores e no valor da libra esterlina. Desde o início do ano, os lados Remain (favoráveis à permanência) e Leave (favoráveis à saída) disputam pela maioria da população. A partir de meados de maio, os defensores da saída conseguiram conquistar a maior parte dos indecisos. Esse padrão de incertezas culmina nas recentes pesquisas de boca de urna, que indicam empate entre as duas opções – 44% dos pesquisados disseram que votariam para permanecer, e 44%, para sair da União Europeia, conforme reporta o Economist.
A realização do referendo e a popularidade do Leave não destoam da participação histórica do Reino Unido na integração europeia. O país não fez parte da pioneira Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e somente aderiu aos esforços de integração em 1973, quando entrou na então Comunidade Econômica Europeia. Em 1979, os britânicos foram o único país da Comunidade Econômica Européia (CEE) a não tomar parte na criação do Sistema Monetário Europeu, que fixou os câmbios entre as moedas europeias, e saíram do bloco logo em 1992, quando uma crise cambial assolou a Europa. Também em 1992, quando era criada a União Europeia (UE), o Reino Unido garantiu sua exclusão da Zona do Euro por tempo indeterminado e até hoje mantém a libra esterlina no lugar da moeda única europeia. Fica claro que o Reino Unido nunca esteve totalmente vinculado aos esforços de integração. Sua relação com os países continentais, de fato, não raro foi tumultuosa.
Os defensores da saída são capitaneados pelo político conservador e ex-prefeito de Londres Boris Johnson e pelas lideranças do Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP). Adotam, em geral, um discurso nacionalista que preza pela soberania do Parlamento britânico em Westminster sobre as decisões tomadas em Bruxelas, a capital da UE. Alegam que o Parlamento Europeu é um órgão desprovido de poder, porque os parlamentares não podem introduzir projetos de lei. A tomada de decisões seria, ainda, antidemocrática, porque depende da iniciativa do órgão executivo do bloco, a Comissão Europeia, cujos membros não são eleitos diretamente. Em última instância, eles temem a ascensão de um governo supranacional afastado do escrutínio da população britânica.
Mecanismos supranacionais de governança, por um lado, podem ser fatores centralizadores, diminuindo a transparência do governo e afastando representantes dos eleitores. Podem, ainda, canalizar demandas nacionais por favorecimento e impô-las sobre os demais países. Um exemplo famoso no caso europeu ocorreu quando produtores agrícolas franceses lideraram o lobby pelas medidas protecionistas da Política Agrícola Comum da União Europeia, que impõe tarifas e barreiras não tarifárias ao comércio de bens primários com países fora do bloco.
Por outro lado, esses mecanismos também podem restringir a discricionariedade dos países-membros para tornar viável a cooperação. Embora nem sempre cumpram, os países da Zona do Euro, por exemplo, precisam respeitar normas fiscais, sem as quais a moeda comum dificilmente seria operacional.
As “quatro liberdades” da União Europeia – livre circulação de produtos, serviços, pessoas e capitais – também são outro aspecto que divide a opinião pública. O Reino Unido, por não ser parte do chamado Espaço Schengen, pode impor controles de passaportes em suas fronteiras; mas, como parte da UE, não pode barrar a livre entrada ou saída de cidadãos europeus. Ainda assim, a crise migratória e de refugiados da Europa e os atentados terroristas contra Paris e Bruxelas têm deixado boa parte da população britânica reticente quanto à liberdade migratória da UE.
A liberdade de migração é largamente reconhecida entre economistas como um mecanismo benéfico à eficiência da economia, porque permite uma alocação mais eficiente de trabalhadores entre países. A imposição de barreiras migratórias significaria uma grande perda de eficiência e teria, ainda, um imenso impacto demográfico, visto que, hoje, 70% do crescimento populacional britânico se deve à população migrante (embora essa alta taxa de natalidade, em geral, não seja de migrantes europeus). Por outro lado, se supusermos que o governo britânico tem uma “cota máxima” de migração, a liberdade migratória da UE representaria uma discriminação contra imigrantes de outras áreas do mundo, que, porventura, beneficiariam mais (sob qualquer critério que se escolher) o Reino Unido.
Outro argumento nacionalista culpa o livre comércio no bloco pelo desemprego de trabalhadores britânicos e mesmo pela destruição de indústrias do Reino Unido. Mas os dois lados do debate, em geral, reconhecem a importância da liberdade de comércio entre a Grã-Bretanha e o continente. As críticas à União Europeia se centram no suposto excesso de regulações burocráticas impostas pelo bloco de forma centralizada e na longa duração das negociações de acordos comerciais na UE. Assim, pertencimento à União Europeia diminuiria a competitividade do Reino Unido e atrasaria a assinatura de acordos comerciais bilaterais benéficos – por exemplo, com a China. Os membros da União Europeia, afinal, como em qualquer união aduaneira, não podem negociar acordos separadamente do resto do bloco. Vale ressaltar o caso brasileiro, que não pode fazer acordos comerciais sem a concordância do restante do Mercosul – e esse é um dos principais argumentos pela saída brasileira do bloco do Cone Sul.
Os defensores do Remain alegam que, mesmo se saísse do bloco, o Reino Unido ainda teria, na prática, que seguir as regulações europeias, porque a UE continuaria sendo o maior parceiro comercial do país. A negociação centralizada na União Europeia também aumentaria, alegam, o poder de barganha do Reino Unido e asseguraria acordos comerciais mais favoráveis à economia britânica.
O argumento da burocracia europeia é especialmente importante no caso da proteção à cidade de Londres, que permanece um dos principais centros financeiros do globo. Após a crise de 2008 e a crise do euro, a União Europeia reforçou sua regulação contra lavagem de dinheiro e paraísos fiscais. A campanha do Leave aponta que essas normas diminuem a competitividade do centro londrino, mas é bastante discutível se, fora da UE, Londres poderá manter maior liberdade operacional e continuar oferecendo serviços financeiros para seu maior mercado – justamente a União Europeia.
O impacto econômico real da saída da União Europeia é difícil de prever, porque o modelo a ser adotado nessa hipótese não está inteiramente claro. O Reino Unido pode aderir ao Espaço Econômico Europeu, mantendo a livre circulação de bens e serviços sem ter que arcar com o ônus regulatório, mas, para isso, provavelmente terá de aceitar fazer parte do Acordo Schengen, como fizeram Noruega e Suíça. Pode negociar acordos comerciais de forma bilateral ou no âmbito da Organização Mundial do Comércio, como fazem países de fora do continente. Pode, ainda, abrir a economia unilateralmente e se engajar numa maciça desregulação econômica. Esse seria o melhor cenário para a economia britânica no médio prazo, mas é improvável. De fato, as projeções do impacto econômico do Brexit tendem ao lado pessimista: o Tesouro Britânico estima uma queda permanente do PIB britânico da ordem de 3,4% a 9,5%, por quinze anos, a depender do modelo adotado.
A demanda de boa parte dos escoceses por independência é outro fator a ser considerado. Após perder o referendo da independência em 2014, o Partido Nacional Escocês (SNP) alerta que, se o povo escocês decidir pela permanência, mas os britânicos, em geral, votarem pela saída, isso poderia levá-los a exigir um novo referendo independentista. De fato, segundo os dados de pesquisas do Economist, os escoceses são relativamente mais favoráveis ao lado do Remain que os demais britânicos: 54% favoráveis à permanência versus 44%. O Brexit também divide a população do Reino Unido por classe: as classes mais altas são favoráveis à permanência (54% contra 37%), enquanto as mais baixas apoiam em sua maioria a saída (53% contra 34%). Essa discrepância alimenta o discurso populista do campo do Leave.
Há muitas incertezas em relação ao Brexit: qual será o modelo adotado se o Reino Unido sair? Qual seria o impacto econômico da saída no longo prazo? A União Europeia seguirá o caminho de um Estado supranacional se o país permanecer? Existe mesmo a dúvida se o Parlamento britânico aprovará ou barrará a decisão das urnas, especialmente se o resultado for bastante próximo da metade. Enquanto a população está dividida, os parlamentares favorecem a permanência na proporção de 74%, contra 24% que se posicionaram pela saída.
A única certeza que o referendo nos oferece é a garantia de grande turbulência dos mercados ao longo das próximas horas, até serem divulgados os primeiros resultados das urnas, dias, enquanto os votos totais são compilados, e semanas, em antecipação da decisão do Parlamento. E, se o país optar por sair, a incerteza econômica prosseguirá por meses – em meio à negociação de um “acordo de retirada” junto à UE, o que pode durar até dois anos, prorrogáveis por consenso do Conselho da União Europeia. Resta saber qual será a nova “certeza” após o fim de todo esse processo: um Reino Unido mais protecionista, ou mais aberto; uma União Europeia forte, ou em franco esfacelamento. Em última instância, o voto do Brexit determinará se a UE emergirá da crise do euro e das turbulências migratórias ainda mais integrada, ou se passará a ser uma utopia do pós-guerra, nunca realizada.