No início do ano, o noticiário de todo o mundo foi tomado de assalto por uma surpresa: Bernie Sanders, candidato que se rotula como ‘socialista democrático’ e está na extrema esquerda do espectro político americano, aparecia entre os favoritos na disputa pela presidência dos Estados Unidos. O fenômeno logo chegou ao Brasil. Páginas no facebook foram criadas por apoiadores brasileiros e blogs de esquerda, como o Diário do Centro do Mundo (eu sei, eu sei…), perguntaram quem poderia emergir como versão nacional de Sanders.
Uma simples análise sobre o perfil do eleitorado pode revelar uma resposta surpreendente: nas eleições de 2014, o candidato com base de apoio mais semelhante à de Bernie Sanders foi o tucano Aécio Neves. Considerando as candidaturas ‘nanicas’, Luciana Genro também poderia ser apontada. Desde ontem, está claro que assim como Aécio e Luciana, Bernie Sanders provavelmente perderá as eleições presidenciais por ter um apelo limitado à parcela mais branca e jovem das regiões mais ricas do país.
Ontem, como em toda primeira terça-feira de março nos anos eleitorais, ocorreu nos Estados Unidos a ‘Super Terça’. Nesta data, mais de 20% dos eleitores republicanos e democratas votam em 12 estados para eleger quem será o candidato dos seus partidos à presidência. Geralmente, a ‘Super Terça’ é um divisor de águas na campanha, o dia em que os favoritos se destacam e é possível distinguir de forma mais clara quem tem (ou não) chances de levar a nomeação.
Em 2008, o então desconhecido senador Barack Obama se transformou num fenômeno após a ‘Super Terça’ e o fim desta história todos nós conhecemos. Neste ano, Hillary Clinton – derrotada por Obama em 2008 – praticamente sacramentou sua vitória. De acordo com reportagem do site FiveThirtyEight.com, famoso pela precisão de sua equipe na análise de pesquisas eleitorais, “algo realmente louco precisaria acontecer daqui para frente para que Bernie Sanders tenha chances de vencer a nomeação (…) Os dados indicam que Hillary Clinton deve superá-lo com relativa facilidade”. A mesma conclusão pode ser lida em análise do Vox.com, enquanto o modelo probabilístico da CNN calcula as chances de Sanders em apenas 3%.
Estamos falando apenas de probabilidades e o improvável nem sempre é impossível. Na verdade, Sanders até “ganhou” em 4 dos estados disputados ontem, mas essas “vitórias” devem ser vistas de forma relativa. Utilizo as aspas porque, numa eleição primária, ter mais votos do que o adversários em estados isolados não é o que importa. E o fato é que as vitórias de Sanders significaram muito pouco. Ele ganhou de lavada em Vermont, onde construiu sua carreira política, mas o peso deste estado é muito pequeno, dado que sua população é inferior à da região metropolitana de Cuiabá. Noutros estados, como Oklahoma, a vantagem de Sanders foi muito pequena, praticamente irrelevante no cômputo geral de votos. Vitórias deste tipo passam longe de serem suficientes.
Os dados detalhados das pesquisas indicam os “culpados” pela virtual derrota de Bernie Sanders no jogo principal: os negros e latinos, principais minorias étnicas dos Estados Unidos. Todas as vitórias de Sanders se deram em estados onde os negros formam menos de 10% da população. Em todos os estados até agora, Hillary venceu de maneira acachapante entre os eleitores negros.
Uma análise da ABC News sobre as pesquisas boca-de-urna indica que Hillary vence entre os eleitores negros por uma goleada de 83% a 15%; já entre os latinos, Hillary tem 63% dos votos, enquanto Sanders fica com 36%. A vitória de Sanders só se dá entre jovens, 63% a 36%.
Em estados como a Carolina do Sul, Alabama e Geórgia, onde os negros formam a maioria do eleitorado democrata, Hillary abriu vantagens imensas contra Sanders, vencendo por até 60 pontos percentuais de vantagem em alguns casos. Algo parecido aconteceu no Texas, onde há um grande número de latinos, com o agravante deste ser um dos estados de maior população e, portanto, maior peso nas primárias. No distrito texano de Hidalgo, onde quase toda a população é de latinos, Hillary venceu por mais de 40 pontos percentuais de vantagem. Já no estado de Oklahoma, onde a população é conservadora e branca, Sanders venceu, ainda que por uma pequena vantagem. Em Massachusetts, o mesmo padrão se repete, com Hillary vencendo em regiões com maior concentração de minorias, enquanto Sanders ganha onde há mais brancos.
A campanha de Bernie Sanders dá demonstrações claras de que percebeu o ponto fraco do seu candidato. Em vídeos de campanha recentes, há um claro apelo às minorias. Sanders foi ainda o candidato, dentre todos os partidos, que mais gastou em sua campanha nos estados da ‘Superterça’. Na Carolina do Sul, de acordo com o Politico.com, os gastos de Sanders com o comitê estadual de campanha superaram os de Hillary em seu comitê nacional.
A comparação com Aécio no início do texto pode ter soado como provocação e, de fato, Bernie Sanders não é exatamente o tipo de candidato que indicaria Armínio Fraga para comandar a economia do país. A reação dos seus eleitores, porém, tem sido bastante semelhante. Em redes sociais como o twitter, não é difícil encontrar apoiadores de Sanders cometendo o que os americanos chamam de racismo “borderline” – racismo disfarçado, em tradução não tão exata.
Já a página Bernie Sanders Brasil, formada por brasileiros com simpatia pelo candidato, faz uma análise muito parecida com a dos eleitores de Aécio após o ano passado. Assim como Diogo Mainardi descreveu o voto de nordestinos como fruto de seu histórico eleitoral “bovino”, os apoiadores de Sanders atribuem às derrotas do candidato entre minorias à “capacidade da eficiência de uma máquina eleitoral e do poderio do establishment que consegue se inserir nas camadas mais oprimidas e exploradas e extrair votos, mesmo que seu programa político vá na contramão dos interesses das mesmas”.
Tanto lá como cá, a derrota é justificada pela fragilidade dos mais pobres, que não conseguem pensar com independência e votar em quem quer o melhor para eles, preferindo os enganadores. A análise não resiste a fatos bem divulgados, como os já citados gastos da campanha de Sanders, superiores à “máquina eleitoral” de Hillary, culpada por enganar ingênuos. Podem até existir bons motivos na base de cada um desses discursos, mas a essência é a mesma. Trocando alguns nomes e chavões, adicionando um ‘Bolsa Esmola’ aqui e acolá, os discursos são verdadeiramente parecidos, embora a linguagem seja diferente.
Bernie Sanders não é um fenômeno único na história americana. Em 1972, um candidato com o sugestivo nome de George McGovern teve um papel bastante semelhante, com uma campanha radicalmente progressista que até venceu as prévias partidárias, mas perdeu feio nas eleições principais. O mesmo aconteceu no lado conservador em 1964, quando Barry Goldwater era o radical da vez e também amargou uma derrota. Em menor escala, o libertário Ron Paul pode ser comparado a Bernie Sanders, com uma campanha ainda mais radical em 2008 e 2012, também com grande maioria dentre jovens universitários.
À luz da história, não é possível dizer que esses candidatos tenham sido completamente derrotados. Ao contrário da maioria dos políticos que perdem eleições, eles deixaram um legado. Hoje, o momento mais lembrado da campanha de Goldwater foi o poderoso discurso que o precedeu na Convenção Nacional Republicana, proferido por ninguém menos do que Ronald Reagan, que ali alçou sua campanha política. É fácil achá-lo no Google sob o título de “A Time for Choosing” (Um Tempo de Escolhas). O casal Bill e Hillary Clinton, o ex-presidente e a possível (provável?) futura presidente americana, se conheceram como voluntários na campanha de McGovern, e ambos – assim como muitos políticos democratas – apontam aquelas eleições como um momento crucial para a formação de uma nova geração progressista nos Estados Unidos.
O mesmo aconteceu com Ron Paul. Depois de anos como o único ‘libertário’ do Partido Republicano, suas campanhas presidenciais deram vigor a figuras como Justin Amash e seu filho Rand Paul, dentre outros congressistas que, apesar de formarem uma minoria dentre os republicanos, já não estão sozinhos na defesa de uma plataforma política que abraça livre mercado e liberdade nos costumes. Alguns analistas chegam a atribuir a Ron Paul um papel fundamental nos avanços recentes com relação à legalização das drogas nos Estados Unidos, depois de décadas como uma rara voz republicana contra a Guerra as Drogas. Hoje, até mesmo candidatos fervorosamente religiosos e conservadores como Ted Cruz reconhecem que os estados devem ter o direito de decidir quais drogas devem ser proibidas (ou não), como vem acontecendo no país.
É provável que o mesmo aconteça com Bernie Sanders. Aos 74 anos, não me parece possível que ele concorra novamente à presidência, mas o que importa é o seu legado. Os jovens que se inspiraram com a sua mensagem seguirão vivos por longas décadas e isso independe da opinião do leitor sobre eles. O desempenho de Bernie Sanders este ano é notável, ainda que a eleição pareça quase impossível neste momento. Mas se os seus militantes quiserem levar seu legado adiante, precisam entender o que deu errado neste ano – e, principalmente, arranjar desculpas melhores e menos paternalistas do que as que apareceram até o momento.