A descoberta de uma importante bacia de petróleo foi transformada em propaganda pelo grupo que dominava o governo federal na época. Em discursos ufanistas, a população foi informada que a exploração daquela imensa bacia levaria o Brasil à autonomia dentro de poucos anos e nos colocaria numa rota de desenvolvimento sustentada, graças ao ouro negro.

Não, eu não estou falando do pré-sal. Isso aconteceu nos anos 70.

Sigamos com a história: o projeto fracassou, as empresas brasileiras continuaram importando petróleo gringo e as metas de autonomia prometidas nas propagandas do governo chegaram apenas nos anos 90. Ainda assim, todos aqueles que defenderam a abertura da exploração petrolífera à iniciativa privada, foram pintados por décadas como vendidos aos interesses de investidores estrangeiros. Também por isso, o ex-diplomata, ministro e senador Roberto Campos ficou conhecido por décadas pelo apelido ‘Bob Fields’, utilizado por críticos para cutucar sua oposição ao nacionalismo econômico.

Mesmo com as novas descobertas, a produção demorou a crescer. Enquanto isso, o preço do petróleo disparava como nunca antes havia acontecido e as empresas brasileiras eram obrigadas a importá-lo a preço de ouro. O cenário externo não sensibilizou o governo brasileiro, que seguiu sem permitir qualquer investimento ou exploração privada, pois os militares viam no petróleo um “patrimônio nacional” e qualquer lucro privado – especialmente estrangeiro – representaria um profundo golpe contra a pátria. Muitos economistas apontam este como um dos pontos de partida da hiperinflação brasileira entre os anos 70 e 90, além de um ponto crucial para a criação da “década perdida” que viria nos anos 80.

Ivan Lessa dizia que, a cada 15 anos, o Brasil se esquece do que ocorreu nos últimos 15 anos. Nada mais natural, portanto, que a imensa maioria dos brasileiros desconheça estes acontecimentos dos anos 70, ocorridos durante a ditadura militar, que em muitos pontos lembram os anos recentes. Tal como o pré-sal, a Bacia de Campos, descoberta em 1974, fez a produção da Petrobras disparar.

Ainda em tempos recentes, 80% dos barris de petróleo extraídos no Brasil saíam de Campos, mas as metas de autonomia que a ditadura vendeu quando a bacia foi descoberta só foram alcançadas nos anos 90. Enquanto isso, os choques no preço do petróleo jogaram o país numa profunda crise, que poderia ter sido atenuada anos antes se a Petrobras não fosse vista como intocável. Por conta da postura do general, o ex-ministro Delfim Neto – que certamente não pode ser rotulado como neoliberal privatista pela esquerda, nem como hater da ditadura pela direita – afirmou recentemente que “foi Geisel quem quebrou o Brasil”.

As mesmas previsões que nunca se confirmam

A Petrobras sempre foi a queridinha dos círculos nacionalistas do exército, numa história que começa com a criação da estatal nos anos 50. Não foi por acaso, afinal, que o militar e deputado Jair Bolsonaro propôs o fuzilamento de FHC quando ele permitiu a exploração do petróleo brasileiro por empresas privadas e abriu as ações da estatal na Bolsa de Valores. Para Bolsonaro, aquilo apenas permitiria que os capitalistas estrangeiros fizessem a festa com o petróleo brasileiro e ainda colocaria a empresa de joelhos perante seus acionistas privados, que mandariam no que deveria ser público. As declarações estão amplamente documentadas e a um Google de distância do leitor.

Hoje, a previsão de Bolsonaro (muito repetida também à esquerda do espectro político) não pode ser tida como séria. A Petrobras passou a ter acionistas privados nos anos 90, mas hoje sabemos que os acionistas jamais apitaram sobre o que acontecia na empresa. Seus representantes no Conselho de Administração da Petrobras há muito já reclamavam e um deles chegou até a formalizar uma queixa na CVM por isso, em 2013.

A acusação gerou pouca repercussão em 2013, quando as expressões “Petrolão” e “Operação Lava-Jato” não faziam parte do vocabulário nacional e Sérgio Moro era um desconhecido juiz paranaense. Hoje, o mundo inteiro sabe que os acionistas privados da Petrobras foram simplesmente assaltados e o Conselho, domado pelo governo e presidido por Dilma Rousseff, aprovou centenas de procedimentos fraudulentos que faziam parte de um dos maiores esquemas de corrupção da história humana. Os supostos vilões dos anos 90 eram, para surpresa de muitos, as grandes vítimas.

Para ter suas ações vendidas na Bolsa, a Petrobras foi obrigada a se submeter a diversas regras de transparência, dentre outras exigências que fazem parte do mercado financeiro. Algumas dessas regras foram cruciais para que a estatal fosse obrigada a corrigir seus balanços e demonstrações financeiras no fim do ano passado, quando se descobriu que os números estavam inflados em mais de 100 bilhões de reais por um misto de corrupção, erros de gestão e medidas controversas lideradas pelo governo. Será que o governo reconheceria isso tudo sem a pressão externa gerada pela abertura de capital? Você pode até mesmo achar que todo investidor da Bolsa é um canalha, mas o fato é que eles prezam pelo próprio dinheiro de forma mais eficiente do que os políticos costumam prezar pelo seu.

Por favor, procurem uma petrolífera cujos diretores não sejam indicados pelo PMDB

Os críticos mais fervorosos de qualquer nova abertura à iniciativa privada costumam citar a defesa do patrimônio público dentre seus argumentos. É realmente notável que alguém tenha coragem de dizer algo assim em 2016. Basta lembrar que, por anos, o governo usou a Petrobras para manipular os preços dos combustíveis no país e manter os índices de inflação artificialmente baixos. O prejuízo que chegou a 1,8 bilhão de reais POR MÊS. Isso mesmo: 1,8 bi por mês – além de ter ajudado a quebrar parcelas significativas da economia brasileira, como algumas empresas aéreas – numa medida que não fazia sentido técnico, segundo a própria diretoria da Petrobras. Os fins eram claramente políticos e eleitorais: misteriosamente, passadas as eleições, os preços voltaram a subir; será que Dilma venceria em 2014 se os índices de inflação já estivessem disparando, sem preços manipulados?

Há também um tom moralista que rejeita a discussão como se esta dividisse bem e mal. Fosse o caso, seria possível entender por que tantos números são apresentados sem qualquer contextualização, pois vale mesmo tudo na luta na contra o mal. O senador Roberto Requião, por exemplo, apresenta dados de crescimento da produção de petróleo, sem contextualizar com a dívida gerada para esse crescimento ou sua sustentabilidade financeira. Há quem lembre que a Petrobras sustenta grande parte de alguns setores da indústria brasileira, mas será que poderíamos esperar outra coisa de uma empresa monopolista e cheia de privilégios, dentre eles um sócio majoritário que geralmente se comporta como se o seu dinheiro – que no caso é seu mesmo, do leitor – fosse infinito.

Os contextos são bastante diferentes, mas os paralelos entre a década de 70 e os anos que se passaram desde a descoberta do pré-sal são muitos. As lições também. Esta semana, o Senado aprovou um projeto que modifica o modelo de exploração do pré-sal e a reação lembrou o nacionalismo de outros tempos. Segundo dizem, o petróleo é nosso e por isso deve-se ignorar que a Petrobras se endividou em meio trilhão de reais e está quebrada por conta da política de exclusividade, que a obrigou a fazer investimentos bilionários sem levar em conta o risco de dar tudo errado, como deu. Assim como tudo deu errado no cenário internacional dos anos 70 e os brasileiros daquele tempo pagaram a conta.

Quando as ações caem dia após dia e as manchetes indicam que a Petrobras vale zero reais, não é por acaso. Nenhum investidor privado ignora que o pré-sal esteja cheio de petróleo, mas todos acham que dali não sairá dinheiro tão cedo. Caso contrário, estariam comprando as ações da estatal, mais baratas do que nunca. Só me convencerei de que este não é o caso se alguém mostrar boas evidências sobre a ação de uma conspiração internacional entre todos os investidores do mundo.

Vale a pena cogitar o pior: e se, por causa da exclusividade obrigatória, a Petrobras quebrar? E se o preço do petróleo continuar baixo por anos? E se não sobrar dinheiro para explorar o pré-sal? E se os investimentos bilionários no combate ao aquecimento global gerarem resultados, levando a uma revolução energética que faça o petróleo ficar obsoleto, especialmente o petróleo caro do pré-sal?

Todas essas possibilidades são razoáveis. A última, da revolução energética, pode até não parecer realista, mas há gente do peso de Bill Gates e Paul Krugman apostando nela. Com mais alguns anos de cenário desfavorável, a Petrobras pode quebrar. Nesse caso, restaria ao governo federal bancar o rombo, mas todo mundo sabe que as contas do governo não andam exatamente uma maravilha, e já há também muita gente apostando que o próprio governo pode quebrar. Se tudo der certo com os próximos anos e o petróleo voltar a ser o ouro negro ultra-rentável que ganhou fama durante o século XX, nada de mal aconteceria caso a exclusividade seja quebrada. Se tudo der errado, todos os brasileiros quebrarão juntos e o sonho de quem quer viver num Brasil desenvolvido seguirá como piada de salão.

Se o pré-sal também é meu, peço encarecidamente que considerem as certezas do passado e as incertezas do futuro. Meu lado ambientalista, inclusive, não gostaria de viver num futuro em que o petróleo é tratado como ‘riqueza estratégica’ pelo Estado – qualquer política ambiental será mais difícil com a Petrobras estatal -, mas você pode concordar comigo ainda que não leve a sério qualquer preocupação com o planeta.

Não digo isso por ter recebido dinheiro da Exxon Mobil, da Shell ou do FBI. Eu simplesmente não quero que o meu dinheiro seja jogado numa petroleira cujo diretor é indicado pelo PMDB. Será que estou pedindo muito?

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