Em países de língua espanhola, o processo de impeachment é frequentemente chamado de juicio político (“julgamento político”). O nome é apropriado: o impedimento de presidentes é uma ação eminentemente política, desenhada para responsabilizar governantes que cometem graves desvios morais ou funcionais, removendo-lhes do cargo.

Uma função do impeachment é garantir que os governantes tenham responsabilidade fiscal. Num país que experimentou décadas de inflação muito alta decorrente do descontrole nas finanças públicas e do uso político de bancos estatais para financiar repasses do governo, pedaladas fiscais são assunto sério. Atrasar o pagamento à Caixa Econômica Federal para, em meio às eleições, mascarar o déficit orçamentário do governo é um golpe contra a democracia, e uma fraude que atenta contra as medidas austeras da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tem graves consequências econômicas – faz lembrar da inflacionária “conta movimento” do Banco Central – e deve ter consequências políticas.

Mas, talvez, a função mais fundamental do impeachment seja preservar as instituições de um país num contexto de agitação política. Não há mecanismos automáticos de destituição, como o voto de desconfiança em regimes parlamentaristas (mas também não há a possibilidade de paralisia do governo à la Bélgica, caso uma maioria não possa ser formada). Para suprir essa falta, sistemas presidenciais adotaram, após acúmulo de experiência histórica, o mecanismo do impedimento. A ideia era remover presidentes dentro da legalidade, a partir de certos critérios, sem que houvesse a ruptura institucional característica de golpes de Estado.

Essa trajetória histórica é típica dos países da América Latina após a redemocratização dos anos 80 e 90. Entre 1990 e 2005, o subcontinente viu a destituição de 10 presidentes, por impeachment, renúncia ou processos similares. De Fernando Collor de Mello, no Brasil, a Carlos Andrés Pérez, na Venezuela, a região passou por uma onda de presidentes removidos do cargo.

O cientista político Aníbal Pérez-Liñán estudou essa onda política no livro Presidential impeachment and the new political instability in Latin America. Uma constatação surpreendente é que, entre os diversos processos de destituição e crises políticas graves do período, poucas foram as que envolveram a participação dos militares ou processos ilegais de remoção.

Não se trata, portanto, de golpes de Estado, como os que atingiram a região nos anos 60 e 70. Uma conclusão de Pérez-Liñán é que o impeachment, num contexto democrático, tem feito surgir um fenômeno novo nos países latino-americanos: a queda de presidentes sem queda de regimes. Segundo o autor, “essa tendência [de impeachments] provavelmente não comprometerá a estabilidade de regimes democráticos, mas é letal para governos democráticos”.

O uso do mecanismo de impedimento é, novamente conforme Pérez-Liñán, “consistente com um modelo de accountability espasmódica, em que controles institucionais são ativados quando uma administração cai em desgraça”. Tem provido a necessária flexibilidade aos nossos sistemas presidenciais, permitindo que o Legislativo exerça o controle de presidentes instáveis sem abalar as instituições.

Um dos principais argumentos dos que se opõem ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff é a alegada instabilidade institucional que o processo geraria. Os críticos, porém, parecem não ter entendido o propósito do impedimento. É um julgamento político que visa preservar o funcionamento das instituições contra a interferência negativa de presidentes irresponsáveis. Longe de ser uma ameaça à normalidade democrática, é um mecanismo que fortalece as instituições, blindando-as contra golpes de Estado em tempos de crise política (e econômica). E as evidências do último quarto de século, na América Latina, têm mostrado que esse é o caso.

Compartilhar