O economista francês Thomas Piketty ficou famoso em meados de 2013-14 por seus estudos sobre a desigualdade, compilados no livro “Capital no Século XXI”. Seu trabalho gerou um grande alvoroço por apontar a existência de uma tendência natural de concentração de riqueza no capitalismo – que, segundo o autor, só seria resolvida após a aplicação de um imposto progressivo mundial sobre o patrimônio das pessoas.
No Brasil, uma das principais respostas foi o recentemente lançado “A Riqueza da Nação no Século XXI”, um livro do economista Bernardo Guimarães, entrevistado recentemente por este Mercado.
Bernardo afirma que, apesar de a desigualdade ser um mal, há um conjunto relativamente fácil de armas com as quais sabemos ser possível combatê-la, como transferências diretas de renda e impostos progressivos.
Parte do seu livro discute a fórmula do crescimento econômico, problema que quebra a cabeça dos mais diversos economistas, até hoje em busca de uma compreensão mais refinada sobre as causas do desenvolvimento das forças produtivas desde a Revolução Industrial, que permitiram um aumento na qualidade da vida humana incomparável a qualquer precedente histórico. Trata-se do debate sobre a origem da riqueza das nações, cujo ponto de partida é geralmente atribuído a Adam Smith.
No Brasil, especificamente, esse debate costuma separar economistas de duas linhagens de pensamento distintas. Os primeiros, usualmente mais simpáticos à economia de mercado, ajustam seu foco em direção à qualidade das instituições, entendida através dos incentivos que elas fornecem para alguns fins (especialmente um crescimento sustentado capaz de enriquecer brasileiros em todas as faixas de renda); para tantos outros, muito menos representativos no debate acadêmico, a riqueza de uma nação dependeria de um projeto de desenvolvimento capaz de integrar políticas industriais, desenvolvimentistas e protecionistas, para que o Estado não se limite a propiciar um ambiente institucional favorável ao desenvolvimento, mas o promova de forma ativa e direta.
Nos termos em que este debate é travado no Brasil, Thomas Piketty e Bernardo Guimarães convergem mais do que imaginaria um desavisado, ávido em colar o rótulo de “neoliberal malvado” neste, ou de “comunista enrustido” naquele.
Apesar de Bernardo assumir sua simpatia por ideias liberais, e da proximidade entre Piketty e partidos de esquerda ao redor do mundo, ambos aderem à primeiro linha de compreensão sobre o enriquecimento das nações e defendem que crescimento econômico e distribuição de renda são dois objetivos desejáveis e não-conflitantes que podem ser promovidos por alguns arranjos de instituições. (Ambos afirmam, por exemplo, que estas boas instituições geralmente asseguram o direito à propriedade privada e o cumprimento de contratos, além de outros aspectos necessários ao funcionamento de uma economia de mercado, mas este seria um assunto para outro texto.)
Quando falamos sobre o Brasil, a construção de instituições que simultaneamente promovam o crescimento e combatam a desigualdade é ainda mais urgente. Como mostra o gráfico abaixo, nosso país é extremamente desigual e pobre quando comparado com outros. O Brasil de Bernardo Guimarães tem uma renda 58% menor do que a França de Thomas Piketty, e quase o dobro do índice de Gini, que mede a desigualdade.
Se é verdade que os dois economistas reconhecem que o caminho para o aumento da qualidade da vida das pessoas passa por ambiente institucional que incentive o crescimento combatendo a desigualdade, também é verdade que seus livros indicam prioridades distintas.
Em seu livro, Piketty discute a história econômica da Europa e nos Estados Unidos (principalmente por conta da maior quantidade de dados disponíveis sobre essas regiões), centrando-se especialmente no modo como a riqueza é distribuída nesses países, e ficou famoso por prever uma trajetória assustadora de crescimento das desigualdades nesses países. Bernardo, por sua vez, discorre sobre um tema específico, num país específico em um momento específico: a criação de riqueza no Brasil do século XXI.
A pergunta que segue é tão inevitável quanto importante para pensar políticas públicas para o Brasil: nossa prioridade deve ser a criação de mais riqueza ou o combate a desigualdade com programas governamentais de transferência de renda?
Considerando os níveis alarmantes de vulnerabilidade social e pobreza no Brasil do século XXI, qual desses fins deve ser prioritário na construção de um país onde o maior número possível de famílias – especialmente dentre as que estão na base da distribuição de renda – alcance o maior nível possível de prosperidade?
Essas reflexões, essenciais para um diálogo sério sobre os grandes problemas de nosso país, só podem ser respondidas se nos aprofundarmos um pouco mais na estrutura social e econômica do Brasil.
No gráfico, fica claro como o Brasil é mais pobre do que a França: a renda de um francês médio tem um poder de compra equivalente a 2,5 vezes a renda de um brasileiro médio.
Já o próximo gráfico aborda diretamente a distribuição de renda. Ele é baseado, para os dados do Brasil na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), levantamento amostral mais completo do IBGE, realizado em 2013. Tratam-se dos dados mais recentes à disposição de pesquisadores e curiosos, já que a versão de 2014 será divulgada apenas neste final de 2015.
Através da PNAD, podemos auferir a renda familiar per capita média de cada decil de renda do Brasil. O nome grande pode assustar, mas o significado é bastante simples: cada decil representa um grupo de 10% dos brasileiros dividido de acordo com sua renda, indo desde o decil mais pobre (0-10%) ao mais rico (90-100%); a renda per capita média é igual à renda de cada família dividida pelo número de pessoas que vivem com aquele dinheiro.
No gráfico, a população do Brasil e da França é dividida em decis de renda, dos 10% mais pobres aos 10% mais ricos no entanto, e a cada um dos grupos recebe um tamanho equivalente à porcentagem da renda total do país que fica com cada grupo.
Assim, vemos que o decil mais rico da França (em roxo) recebe 25% da renda francesa total, enquanto no Brasil 41% da renda total produzida no país vai para os 10% mais ricos. Já os franceses entre os 10% mais pobres de seu país controlam 3,6% da renda total, enquanto os 10% mais pobres do Brasil se apropriam de apenas 1,1% da renda total.
Crescer e distribuir nem sempre são objetivos opostos. Nos últimos anos, o Brasil alcançou os dois objetivos. A economia cresceu como um todo, mas a renda dos mais pobres cresceu a velocidades muito superiores ao crescimento da renda dos mais ricos, permitindo que a desigualdade caísse enquanto a economia aumentava – neste Mercado Popular, há um texto de Pedro Menezes que aborda este período com mais detalhe.
Por outro lado, como o próprio Bernardo apontou em sua entrevista para este portal, em alguns casos específicos, políticas públicas de combate à desigualdade podem prejudicar o crescimento da economia, geralmente por conta dos impostos e outras distorções geradas por algumas políticas públicas. Neste caso, novamente, o Brasil tem uma boa notícia da qual pode se orgulhar: o programa Bolsa Família tem demonstrado méritos consideráveis, combinando um baixo custo em impostos, poucas distorções e um benefício efetivo para as famílias cadastradas.
Quanto ao crescimento econômico, dois aspectos precisam ser notados. O primeiro é que, como também foi ressaltado por Bernardo em sua entrevista, alguns países como a China alcançaram níveis estupendos de redução da pobreza, com centenas de milhões saindo da fome em um espaço curto de tempo, como poucas vezes se viu na história humana. E tudo isso se deu com aumento da desigualdade, mostrando que inclusão social e desigualdade não são mutuamente excludentes.
Algumas décadas atrás, os chineses não sofriam com a desigualdade, mas enfrentavam crises de fome e miséria extrema. Com a abertura aos mercados internacionais, especialmente em algumas regiões do país, a economia chinesa passou a crescer muito rapidamente e todos os chineses ficaram mais ricos. A nova prosperidade não veio em igual escala para todos e alguns chineses, especialmente os moradores das cidades, enriqueceram em velocidade mais rápida. Será que, para impedir que a desigualdade na China crescesse, valeria a pena forçar milhões de pessoas a continuar passando fome?
A pergunta pode parecer exagerada, mas esse é justamente o dilema que deu título ao livro mais famoso de Angus Deaton, economista especializado em pobreza e bem-estar que ganhou o Prêmio Nobel este ano (2015). Em “The Great Escape”, Deaton analisa uma seguinte situação, inspirada num filme homônimo sobre a Segunda Guerra Mundial: em uma prisão nazista, todos os detentos são igualmente privados de sua liberdade; caso ocorra uma fuga em massa, haverá uma desigualdade de liberdade imensa entre os que fugiram e quem continuou preso, mas valeria a pena prender todos os fugitivos para garantir a volta da igualdade? Deaton considera que a resposta para essa pergunta, embora bastante óbvia quando discutimos a história dos prisioneiros, não é tão clara quando discutimos a desigualdade de renda, que muitos procuram combater com medidas que apenas fariam muitas pessoas continuarem iguais em sua miséria.
Além disso, o que talvez seja ainda mais importante para o debate em questão, os dados disponíveis mostram que crescer mais não faz com que a desigualdade cresça. Em países que já são muito desiguais, como o Brasil, muitas vezes o contrário acontece e o crescimento acelerado (especialmente quando combinado com baixa inflação) se transforma em queda na desigualdade. De quebra, o crescimento é o remédio mais bem sucedido no combate à pobreza em toda a história humana.
Um estudo do FMI desse ano mostra que uma alta desigualdade leva a conflitos sociais (tais como violência e instabilidade política), que reduzem o potencial de crescimento de uma economia. Neste sentido, basta lembrar do Brasil, que convive com recordes de desigualdade e quase 60 mil homicídios anuais, com níveis de criminalidade que, além de um custo inestimável em vidas humanas também empobrecem os brasileiros em 258 bilhões de reais anuais, de acordo com especialistas.
Para que um país combata a desigualdade de forma efetiva, ele também deve ter renda suficiente para financiar políticas sociais de forma sustentável, sem quebrar as contas do governo a todo o momento- a exemplo novamente do Brasil, especialmente do Governo Dilma.
O caminho para a justiça social, portanto, não passa por ignorar crescimento ou desigualdade, mas numa combinação de ambas, em que o peso estratégico nas políticas públicas varia de acordo com o país sobre o qual estamos conversando. E no Brasil, que precisa combater a pobreza com tanta urgência, é provável que um foco maior no crescimento seja necessário. Um experimento estatístico simples pode nos ajudar a entende melhor esse ponto.
Imagine que você achou uma lâmpada e dela saiu um gênio que lhe deu duas opções: na primeira, você pode transformar o Brasil num país tão rico quanto a França; na segunda, pode fazer com que a distribuição de renda do Brasil seja tão igualitária quanto a da França. O que você preferiria?
Esta é a simulação que está no gráfico abaixo. Novamente, a população está dividida em decis. Em azul, estão as faixas de renda de um Brasil que tem a mesma estrutura econômica desigual, mas com uma renda média em nível francês. Em vermelho, o Brasil tem a renda média igual a atual, mas sua distribuição de renda é idêntica à da França.
As simulações, para além de tudo, mostram que é muito difícil atingir um patamar de justiça social sem combinar crescimento econômico com políticas distributivas. Para nada menos do que 90% dos brasileiros, seria melhor ter a riqueza da França. Os resultados fornecem um argumento de peso a favor do crescimento, mas mostram um dilema, pois a minoria restante – que preferiria ser mais igual – é formada justamente pela parcela mais pobre e vulnerável da população.
Justamente neste ponto, entram as políticas distributivas como o Bolsa Família, capazes de evitar que as faixas da população com menor renda fiquem para trás no processo de desenvolvimento econômico. Estudos recentes apontam que o crescimento econômico costuma anteceder novas políticas sociais.
O crescimento econômico pode até ser mais importante, mas quem disse que existe uma oposição entre as duas coisas? E quem disse que as coisas possam ser separadas assim, de maneira exata, tintim por tintim? O que se percebe de fato é que o caminho da Justiça Social é uma combinação entre políticas de crescimento e políticas distributivas que não afetem as primeiras.