Por Felippe Brandão Barros
Resumo: O presente artigo busca questionar a ideia de que o Direito constitucional contemporâneo representa um campo da organização social dependente de um poder Estatal centralizado e à ideia de institucionalização e universalização da norma, apresentando em seu lugar a hipótese de que a organização constitucional parte fundamentalmente de um princípio voluntário com base nas próprias relações do indivíduo, fato que aponta para necessidade de revisão da forma de se pensar o Direito constitucional dentro do cenário de modernidade líquida descrito por Zygmunt Bauman[1]
Introdução:
A abordagem tradicional para enxergar a origem e bases sob as quais é exercido o poder constituinte é a de que a vontade, bem como a iniciativa para a atividade constitucional necessita surgir do Estado, que organiza sua forma de organização interna por meio da Constituição, e por meio dela decreta quais são os direitos e deveres dos cidadãos subordinados a ela.
Contrastando com esta corrente, apresentarei o entendimento de que o constitucionalismo mostra-se, principalmente na contemporaneidade, como um elemento social cujo princípio parte de uma vontade do próprio indivíduo, de forma descentralizada e de acordo com cada necessidade prática, por meio de exemplos práticos de como, dentro das mais simples e cotidianas atividades da modernidade líquida nós exercemos ações e estabelecemos relações voluntárias que demonstram nossa capacidade de firmar princípios sob os quais aquela sociedade se organiza. Este entendimento discorda da forma de produção centralizadora, burocrática, partidária e institucionalizada como costuma ser produzido o Direito constitucional nas sociedades modernas, bem como no caso do Brasil.
A partir deste ponto, apresentarei hipótese de que uma organização constitucional descentralizada e volátil encontra perspectivas favoráveis dentro do cenário de modernidade líquida em que nos encontramos inseridos.
A concepção voluntária do Direito constitucional
A visão tradicional que estuda a concepção do Direito constitucional nos Estados Modernos normalmente utiliza-se da abordagem de que a vontade para a formulação e validação de normas constitucionais provém do Estado como fonte imediata e do “Direito Natural”, jurisprudência ou costumes e tradições como fontes mediatas, ou seja, que dependem de um intermediário para que seja formulada[2] . Partindo desta forma de analisar a concepção do Direito constitucional, decorre a ideia de que a formulação dos direitos e deveres do Estado e do cidadão pode ser feita de forma centralizada, por meio da organização da conjuntura social (verificada pelos costumes e tradições de um povo) e de conceitos internos ao poder Estatal.
Entretanto, as vantagens para a produção e organização de princípios constitucionais de forma volátil e descentralizada mostram-se mais interessantes do que o modelo burocrático e concentrador de poder desenvolvido pelo Estado. Além disso, é possível inferir que, nas mais diversas relações do nosso cotidiano, estamos exercendo nossa capacidade de deliberação por direitos e deveres frente à comunidade em que nos inserimos.
O ser humano, por decorrência de sua própria vontade, suas possibilidades e sua personalidade, busca estabelecer contratos e organizar seu meio social de forma a balancear seus próprios interesses com os interesses dos que participam da mesma comunidade. Por exemplo, quando um condomínio estabelece, por meio de encontros e reuniões, o próprio regimento interno, as necessidades específicas de cada condômino são abordadas para que se estabeleça uma norma geral para o grupo. Esta organização interna do condomínio se constrói sobre os mesmos princípios sobre os quais o Direito constitucional deveria funcionar: a união dos diversos valores e necessidades da comunidade para a formulação de sua organização social.
Entretanto, a forma como se constrói o Direito constitucional nos Estados Modernos mostra-se oposta à ideia de pluralidade e conciliação de interesses, aproximando-se de um cenário de burocratização do acesso ao poder constituinte e estabelecimento da norma rígida e autoritária. No Brasil, o cenário não é diferente. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por seu nome, deveria representar uma norma geral que garantisse considerável autonomia aos estados da Federação, mas na realidade, tivemos a formulação de uma Constituição extremamente rígida, que exige um processo legislativo elaborado e demorado, o que retira da norma máxima da organização social a possibilidade de adaptação aos diversos desejos que emanam do povo.
Dentro deste contexto, é necessário observar que nos encontramos, como afirma Bauman[3] , em um contexto de modernidade líquida, em que as relações humanas não são mais tangíveis e a vida em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante, perdem a consistência e estabilidade que anteriormente possuíam. Diante deste cenário, é possível afirmar que, em um mundo globalizado e cada vez mais dinâmico, nos vemos diante da necessidade de que os princípios sob os quais são regidas as relações sociais e econômicas estejam construídos sobre modelos que permitam adaptações igualmente dinâmicas, atentando para a garantia dos Direitos Humanos bem como da pluralidade social e cultural da humanidade.
Além disso, a produção constitucional deve considerar que tratamos de um país cujas dimensões territoriais desconstroem a ideia de uma universalidade da abrangência da norma, e portanto é preciso viabilizar que necessidades específicas das diversas regiões sejam atendidas igualmente, o que não ocorre já que o Estado, por meio da Constituição Federal, estabelece com primazia quais são os direitos e quais são os deveres individuais e coletivos para todo o país, bem como estabelece por meio dela de que forma se dão os direitos de propriedade e a organização social, econômica e tributária de toda a nação. Sob esta ótica, as particularidades regionais e locais encontram na Constituição entraves para que a organização social normativa esteja em conformidade com a fluidez com que se relacionam os agentes sociais.
Neste sentido, é essencial o desenvolvimento de um modelo capaz de abranger as menores porções sociais, visando garantir justamente a possibilidade de se alcançar uma organização nacional justa e igualitária. Pensando na possibilidade de constituições que tenham abrangência territorial menor e sejam estabelecidas de forma que garantam o acesso direto do interesse popular à democracia, fugindo aos meios representativos já desgastados pelas diversos modelos “democráticos” tentados no país. A contemporaneidade aponta para a necessidade de uma constante reformulação dos valores para a construção social, e isso nos indica que a descentralização do poder máximo da organização social é urgente.
Um modelo constitucional descentralizado
A possibilidade de adoção de Constituições múltiplas dentro do território nacional encontra vantagens dentro de diversos aspectos da conjuntura social. Alguns exemplos práticos estão no que a Constituição Federal versa sobre quais são os deveres do Estado perante a sociedade e quais são os deveres dos indivíduos perante o Estado e a sociedade.
O estabelecimento de direitos de propriedade da terra fortes, garantidos pela Constituição de 1988, garantem privilégios, monopólios e distorções de mercado que agravam a situação de desigualdade econômica já enfrentada pelo país. Na região Norte do país, em que a concentração fundiária é grave, as distorções entre a posse de terra de diferentes classes sociais são claramente mais graves do que na região Sul, por exemplo, o que aponta para a necessidade de que os direitos quanto à posse da terra em estados como o Pará sejam mais flexíveis para a capacidade do Estado promover a reforma agrária, e para que direitos de grupos que promovam ocupações nas terras não produtivas sejam respeitados.
Além disso, direitos de propriedade intelectual também fortes, principalmente no que se refere ao desenvolvimento de meios produtivos (a propriedade industrial) criam distorções na lógica de liberdade de empreender, garantida pela própria constituição, criando barreiras burocráticas e legais para que pessoas possam desenvolver as mais diversas atividades econômicas. Além disso, quando o Estado garante patentes sobre remédios, têm-se um atentado aos direitos humanos, ao se proibir a livre produção, distribuição e comercialização de fórmulas que foram criadas inicialmente para salvar vidas[4] .
Da mesma forma, nossa Constituição centralizada ainda trata, do artigo 193 ao 232, de diversos os temas relacionados ao bom convívio e desenvolvimento social do cidadão, como deveres do Estado, a saber: Saúde (Seguridade Social e Sistema Único de Saúde); Educação, Cultura e Desporto; Ciência e Tecnologia; Comunicação Social; Meio Ambiente; Família (incluindo nesta acepção crianças, adolescentes e idosos); e populações indígenas. Isso cria um cenário favorável para o constante aumento do conceito do que é um direito fundamental do cidadão e quais são os princípios básicos sob os quais será construída a nação, o que permite ao Estado nos cobrar cada vez mais tributos e instituir cada vez mais regulamentações que prejudicam a toda a população e travam a economia, além de permiti-lo estabelecer normas cuja grande abrangência pode acabar por esbarrar em necessidades específicas e desejos sociais dinâmicos.
A Constituição de Constituição de 1988 também estabelece impostos de caráter federal que contribuem para a burocratização da economia. São eles os impostos sobre: importação de produtos estrangeiros; exportação de produtos nacionais; renda ou proventos de qualquer natureza; produtos industrializados; operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativos a títulos ou valores mobiliários; propriedade territorial rural; e grandes fortunas (nos termos de lei complementar). Tal lei, que se aplica a todo o país, cria uma norma fundamental que prejudica principalmente às classes menos favorecidas e aos comerciantes mais vulneráveis dentro do mercado, reduzindo o acesso a produtos (ao elevar o preço por meio das taxas de importação), dificultando que pequenos produtores exportem sua produção e taxando propriedades rurais (que muitas vezes representam a principal forma de sustento para famílias no Nordeste, por exemplo).
Em um modelo descentralizado de constituição, locais que passam por grandes desafios sociais e econômicos têm na produção local do Direito constitucional a possibilidade de flexibilizar a norma para se garantir que o Estado não crie barreiras à própria convivência social, à economia e à organização livre da população. Se a União tem por objetivo o respeito máximo aos cidadãos e à liberdade individual, é necessário a urgente revisão da forma como são estabelecidas as leis fundamentais da organização do Estado e da sociedade.
Por fim, é importante ressaltar que a existência de um modelo descentralizado não prevê a inexistência de qualquer centralização normativa do país: em um primeiro momento, uma Constituição Federal pode existir para que seja previsto a organização interna básica do Estado brasileiro, bem como para garantir que as constituições regionais ou locais estejam de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo.
Notas:
[1] Sociólogo de origem polonesa, autor em temas ligados à pós-modernidade.
[2] MASCARENHAS, Paulo. Manual de Direito Constitucional. Salvador, 2008.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 2000
[4] CARSON, Kevin. A “propriedade intelectual” mata. 2015.