É comum não me sentir representado por ambos os lados de um debate político. A cordialidade do brasileiro torna toda discussão uma regurgitação de sentimentos, fobias, neuras, traumas. O sentimentalismo invocado faz com que ambos os lados tornem-se cegos e surdos diante da fala do opositor. Ao final, restam apenas os rótulos pré-fabricados, impostos ao oponente: machista, racista, fascista, bandido, defensor de bandido. Mas o que há para além deste debate raso?
A criminalidade no Brasil é um problema. Aqui se mata, rouba, estupra e se infringe a lei a todo instante. Temos uma enorme população carcerária e ainda faltam vagas nos presídios para tantos criminosos. O crime como meio de vida é consequência do país estar imerso numa crise econômica, moral e espiritual. Há de fato poucas oportunidades, uma moralidade do jeitinho e um vazio existencial pela não compreensão de seu telos no mundo.
O que se vê são indivíduos optando pela via “fácil” do crime cada vez mais jovens. Não é de hoje que crianças cometem crimes, mas é recente uma desconstrução do angelismo infantil. Ainda aterroriza a ideia de que os infantis são capazes de maldade. Esta visão etérea da infância se encontra do mais fundamentalista conservador até o mais radical progressista. Obviamente que cada um usa deste imaginário para alimentar suas próprias convicções. Os conservadores, espantados com os jovens criminosos, querem uma ferramenta legal que funcione como um reforço comportamental que insira medo nas inocentes crianças para que não desobedeçam as regras. Os progressistas, querendo restaurar uma inocência perdida, querem que a criança seja preservada de punições por ainda não compreender muito bem as implicações de suas ações. Se ambos estão de certo modo enganados, por que optar pela não redução da maioridade penal?
A redução seria, em termos práticos, punir jovens a partir dos 16 anos que cometessem crimes hediondos. Significa que, os hoje menores de idade, cumpririam uma pena para maiores de idade reclusos num local separado dos maiores de idade e dos menores presos por crimes não hediondos. Assim, seriam punidos pelos crimes de (I) homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado; (II) latrocínio; (III) extorsão qualificada pela morte; (IV) extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada; (V) estupro; (VI) estupro de vulnerável; (VII) epidemia com resultado morte; (VIII) falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; (IX) favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável; (X) genocídio, tentado ou consumado. Além destes crimes, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são equiparados a crimes hediondos. Claro que o projeto de lei não especificava todos estes crimes hediondos, mas uma vez aprovada a redução da maioridade penal, há de se convir que muitas bancadas iriam se articular para ampliar o número de tipificações as quais os maiores de 16 pudessem ser punidos. Como ser contra punir pessoas que cometem tais atrocidades?
O desejo por punição é normal no homem. Entretanto, as decisões não podem ser tomadas de forma apenas apaixonada. A racionalidade humana serve principalmente como um freio para que as ações humanas não se tornem apenas reflexos de impulsos sensório-sentimentais. Não é a toa que, de acordo com o Datafolha, 90% das pessoas apoiavam a diminuição da maioridade penal.
O que pouco se fala é sobre a massiva cobertura midiática sobre o tema, realizada nos últimos tempos. Não houve aumento de menores praticantes de homicídios, estupros coletivos e outras barbaridades noticiadas. O fato é que, com o assunto em pauta, todo tipo de sensacionalismo acerca do crime de menores foi transmitido exaustivamente nos noticiários, como a morte trágica do cantor desconhecido mais famoso do Brasil. Não há gota de racionalidade num ambiente afeccional.
O fato é há uma violência é estrutural. Se hoje os menores fazem tudo aos 16, com a lei os bandidos vão fazer com que os mais novos cometam tais crimes. Teremos mais meninos de 12 a 15 anos cometendo atrocidades. Diminuir pra 16 é perigoso pelas consequências que não estão aparentes. Defender a diminuição da maioridade apenas como forma de punir menores é estar cego pela vingança.
Para além do problema da vingança (fato pelo qual ganhei desafetos por ser contra a pena capital), há algo mais sério presente neste debate. Muito além do problema real de indivíduos de diversas idades cometerem crimes bárbaros, há a crença de que leis resolvem os problemas sociais mais agudos. Não resolvem. Voltamos ao apelo emocional das massas.
Em que medida aumentar a punição evitaria novos crimes? Não há nada que aponte concretamente para esta relação de causa e efeito.
Se o fetiche pela lei não resolve o problema, o fetiche pela educação muito menos. O otimismo ingênuo daqueles que olham para a escola como redentora da sociedade já foi incansavelmente discutido na literatura pedagógica, principalmente por pensadores progressistas. O discurso desta esquerda ou é fruto de uma ignorância profunda ou um discurso muito bem articulado para retomar a educação como material da política, como pensou Platão, Rousseau, Fichte, Gramsci e Freire.
A escola não vai tirar ninguém do crime e nem construir o paraíso na terra. O que os jovens pobres enxergam é que a escola não faz nada por eles, como já dizia Illich. Ela não proporciona nenhum tipo de equiparação de oportunidades. O que diferencia educacionalmente a escola do rico e a do pobre e o aproveitamento escolar de ambos é em grande parte o capital cultural. O background familiar e tudo que envolve um desenvolvimento em contato com diversos capitais (econômicos, simbólicos etc) favorecem alguns, e não são os pobres. De que escola falamos? O fracasso escolar é mais um fator que leva ao crime, como o jovem que me disse em certa ocasião: “Eu sou bom com o fuzil. É isso que sei fazer. ”.
A demagogia do discurso pró-minoria tem dois problemas: (a) não tem solução para os desfavorecidos e (b) separa a sociedade em grupos que devem ter permissão pra cometer crimes ou que devem ser aliviados de seus erros pessoais.
Não há solução simples. Ouvir o apelo das massas é ouvir o clamor irrefletido das soluções rápidas, simples e vazias. Não punir crimes é ser conivente para com o criminoso.
Podemos começar pensando na realidade do direito penal brasileiro, na morosidade processual, nas precárias e ineficientes prisões atuais, nas leis e nas punições vigentes. Poucos crimes são resolvidos hoje. As prisões são dominadas por facções criminosos e são antros de corrupção. As leis e punições não são cumpridas. Num ambiente assim é obvio esperar um aumento de criminalidade. A impunidade é tão grande e as penas são tão leves e ineficientes que incentivam o início no mundo do crime e a reincidência.
Apostar todas as fichas na redução da maioridade penal é desconsiderar este quadro de descaso para com o problema da segurança e da justiça. As leis já possuem contradições suficientes para que uma nova lei introduza novos problemas no debate jurídico. Ao invés de simplificar o ordenamento jurídico-penal, a defesa da maioridade penal fomenta o seu crescimento. Outros projetos de lei seriam criados para aumentar a lista dos crimes para menores, alterações nos anos de punição etc. Perderia-se muito mais tempo discutindo pormenores legais ao invés de atacar o real problema da segurança.
“Não é questão de segurança ou de eficiência. É uma questão de justiça!”, gritaria o libertário radical. Em primeiro lugar, se a não redução da maioridade penal é uma injustiça por não punir severamente indivíduos de 16 e 17 anos, a redução da maioridade penal é injusta por não punir indivíduos de 0 a 15 anos. A invocação deste tipo de “argumento” serviria pra dizer que a redução da maioridade penal é errada e que devemos lutar pela não maioridade penal, isto é, que todo indivíduo seja punido independente da idade. Usá-lo para defender uma lei de redução de maioridade para 16 anos é, no mínimo, confusão conceitual.
Em segundo lugar, defender o que se defende aqui não é apoiar menor de idade criminoso e, por conseguinte, apoiar a injustiça. Eles não possuem salvo conduto para matar e estuprar. De acordo com as regras atuais, são privados de direitos e de suas liberdade por até três anos. Nosso problema é que poucos cumprem a pena máxima e os locais para onde são enviados não cumprem o papel educativo, pelo amor ou pela dor, de mostrar que a vida de crime iniciada não compensa.
Defendo que primeiro se arrume a casa. Com regras claras e com um judiciário eficiente fica mais fácil ampliar o alcance das regras.