Duas extravagâncias: excluir a razão, admitir só a razão.
(Blas Pascal)
O presente ensaio não pretende afirmar a existência de uma teoria política subjacente à narrativa do Grande Sertão: Veredas, nem tampouco uma filosofia moral estruturada sistematicamente; trata-se mais bem de idéias recorrentes na obra que podem ser relacionadas com discussões na história das idéias políticas e éticas e na concepção de indivíduo na filosofia moderna e contemporânea. Pretendo, principalmente, relacionar aspectos do texto rosiano com algumas idéias acerca da “contra-ilustração” e da crença em uma “natureza humana” fixa na obra do filósofo Isaiah Berlin, autor cujas formulações sobre os conceitos de “liberdade positiva” e “liberdade negativa” tornaram-se referência obrigatória na filosofia política contemporânea.
Antes de entrar especificamente nessas relações que pretendo estabelecer, faz-se necessária uma pequena explanação sobre o pensamento de Isaiah Berlin no que concerne às idéias que serão utilizadas neste estudo. O fulcro do pensamento de Isaiah está na contraposição entre o pensamento iluminista francês e o romantismo alemão, numa síntese que assume e nega aspectos de ambos os movimentos intelectuais. Berlin, como enfatizou seu biógrafo, Michael Ignatieff, ordenou sua vida intelectual em volta do tema da liberdade e da traição da liberdade:
“Em 1950 e 1951, leu furiosamente as obras dos philosophes: Diderot, Helvetius, Holbach, La Mettrie, Voltaire; também começou a ler, pela primeira vez, o romantismo alemão: Schelling, Herder, Fichte. (…) Ali, pela primeira vez, começou a montar sua visão histórica da transição entre o Iluminismo e os ideais românticos de liberdade” (Ignatieff, 2000, p. 211).
Berlin percebeu o que para ele era a divergência essencial entre os dois movimentos: a idéia da racionalidade como meio para uma moralidade universal. Os pensadores iluministas achavam que a razão poderia conduzir os homens por um caminho de comunhão. Bastava que os homens aceitassem a racionalidade como guia que os conflitos morais e éticos deixariam de existir. Esse otimismo derivava da crença de que os valores humanos poderiam ser derivados de uma natureza humana universal que podia ser analiticamente perscrutada. Quer dizer, todos os homens, se usassem de sua capacidade racional, encontrariam um único e comum caminho para suas ações: “Todo o programa ocidental de reforma aperfeiçoadora derivava desse racionalismo otimista” (Ignatieff, 2000, p. 211).
Isaiah Berlin alertou sobre o elemento tirânico que estava por trás dessa crença. Os românticos já haviam denunciado a ameaça à liberdade que tais ideais representavam. Por um lado, Berlin mantinha a fé em certas bandeiras do Iluminismo, como o ataque à autoridade e ao dogma religiosos; a campanha pelos direitos humanos e pela liberdade pessoal contra a tirania do Estado. Por outro, via as imperfeições desse racionalismo que pregava que os valores humanos podiam ser diretamente derivados de uma universal natureza humana. Os românticos entenderam, ou sentiram, que os valores eram criações humanas que variavam no tempo e no espaço, de acordo com a forma de vida e de luta pela sobrevivência de cada sociedade. Portanto, os valores são históricos, relativos a cada cultura em que são engendrados e, até mesmo, contraditórios, visto que há elementos de contradição na própria natureza humana.
Isaiah percebeu a contradição básica do iluminismo europeu: há a afirmação libertária fundamental de que os homens devem ser livres para escolher, porém essa condição está restrita à escolha daquilo que é racional desejar.
Todo esse percurso introdutório serviu para chegar à encruzilhada de idéias que é o Grande Sertão: Veredas.
Parto de uma questão inicial: qual é o objetivo do personagem Riobaldo no romance? Riobaldo não tem respostas definitivas sobre nada. Ele se angustia por não saber o que é o bem e o mal. Para ele, o Real “se dispõe na travessia”, não como um conceito, mas como um drama vital. A dúvida está sempre presente nos caminhos desse jagunço que nunca se sente plenamente integrado com as suas circunstâncias: não é igual aos demais jagunços, tampouco igual às pessoas da cidade. É um homem dividido internamente, que não apresenta uma natureza bem definida, muito menos um sistema fechado de valores ao qual sempre obedece. É, ao mesmo tempo, racional e irracional, cético e crente, forte e fraco, amante e niilista.
A complexidade desse personagem ficcional construído por Guimarães Rosa vai servir aqui como uma espécie de tipo ideal a ser relacionado com algumas concepções presentes nos ensaios de Isaiah Berlin.
A POLÍTICA E OS INDIVÍDUOS
Comecemos por uma citação fundamental de Riobaldo:
“Por que o Governo não cuida?! Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias… Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons…” (Guimarães Rosa, 1988, p.8)
Este é o trecho do livro de G. Rosa em que as convergências e a semelhança com as idéias de Isaiah Berlin fica mais patente, no sentido de que não pode haver jamais uma solução política que dê conta da complexidade e das contradições íntimas que formam a natureza dos homens – nem num plano individual, nem no coletivo. A práxis política nunca vai levar a uma satisfação absoluta de todos os indivíduos: o governo não cuida de forma absoluta da felicidade dos indivíduos porque nenhuma instituição tem esse poder (e nem deve ter). As promessas utópicas na história das instituições políticas, invariavelmente, levaram a estados de supressão das liberdades individuais e a uma tentativa de homogeneização da sociedade civil.
As “idéias arranjadas”, às quais Riobaldo se refere, são essas falsas promessas de soluções infalíveis e definitivas para as grandes questões humanas pela via da política. Essa idéia tão presente e recorrente na história do pensamento político ocidental, desde Platão, de que a natureza humana pode se realizar completamente, caso a sociedade e o Estado sejam organizados de maneira racional, pressupõe que todos os indivíduos buscam, em essência, os mesmos fins existenciais, em todos os momentos e em todas as partes. Atingido esse estágio de perfeição, a sociedade estacionaria eternamente, fechada em sua própria indefectibilidade, legitimada pelo estado de felicidade geral.
Para os filósofos e pensadores racionalistas, o conhecimento é uma espécie de meio de salvação espiritual, moral e política. Um substituto, numa sociedade mais avançada, para a religiosidade. Riobaldo, intuitivamente, dá-se conta de que não existe uma verdade simples e absoluta para todas as questões. Se existem verdades, elas “aparecem” como perspectivas de um sujeito em dada circunstância. O personagem, evidentemente, não formula essas idéias com esse nível de elaboração conceitual e perspectiva histórica: ele utiliza sua própria experiência e circunstâncias para encontrar o que se poderiam chamar “verdades dramáticas”.
A filosofia, diz-nos Lefebvre, considerando o que foi e tem sido hegemônico no pensamento ocidental, pretende um “projeto de ser humano livre, acabado, plenamente realizado, racional e real ao mesmo tempo, em uma palavra: total” (Lefebvre, 1972, p.21). Não obstante, nossa natureza, diz-nos agora Riobaldo, “é malcompletada”. A permanente angústia do personagem é resultado de sua ânsia em querer entender o mundo, quer dizer, a racionalidade que estaria subjacente ao funcionamento da realidade. Porém, como ele mesmo vai se dando conta, “o mundo não é entendível”. Isso representa o fim de toda uma visão teleológica do lugar do homem no universo. O ser humano nunca está acabado e o seu papel no mundo não está previamente traçado:
“Careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado…” (Guimarães Rosa, 1988, p. 191-2)
O Grande Sertão, ambiciosa reconstrução literária do mundo pelo intelecto de Guimarães Rosa – pode parecer paradoxal -, é também um atestado de que o autor estava ciente de que é necessária uma atitude de humildade perante o real. Rosa assume uma postura contra a arrogância do intelecto, respeitando a ambivalência, a mutabilidade, a incerteza e o aspecto caótico e inapreensível do mundo da experiência comum. Ele tenta, como pode, evitar as idéias prontas, os chavões, a verdades absolutas e os sistemas fechados de pensamento.