Por Thiago Sant’Anna

Você sabe o que é SATEPSI?

Então venha comigo conhecer mais um descalabro desse país neo-medieval em que vivemos.

Há uma tara nacional pela regulamentação das profissões, como um amor do cão pela própria coleira que o aprisiona. Não felizes em abrir suas portas e oferecer suas poltronas para ajudar as pessoas com técnicas não invasivas de forma livre, insatisfeitos com a possibilidade de estudar como os humanos se organizam nas mais diversas instituições sem ter de obedecer cartilhas, lamentosos por poder analisar as ações e interesses do povo sem se sujeitar às burocracias implementadas por sábios, os psicólogos regulamentaram sua profissão. A data é nosso natal, comemorada anualmente desde a década de 1970 pela neo-guilda responsável por fechar as portas, escrever as cartilhas e impor as burocracias: o Conselho Federal de Psicologia.

O CFP é uma graça. Se coloca como importantíssimo para nós, psicólogos, para a valorização da nossa profissão, para a qualidade da prática de Psicologia. Mas todo psicólogo, para trabalhar como psicólogo, precisa ter uma carteira da filial regional do Conselho, e pagar uma anuidade de algumas centenas de reais. Se és tão bom para nós, CFP, porque não torna a adesão e anuidade voluntárias? Medo de nos organizarmos de outras, melhores, formas?

O CFP é curioso. Claramente um braço político não partidário (em princípio) da ideologia que domina as Ciências Humanas brasileiras, suas publicações e manifestações ignoram abertamente a ciência – e, secretamente, desprezam-na. Mas aqui, apenas deduzo. E essa dedução parte do princípio que toda sua dedicação é pela redução de horas semanais, piso salarial, entre outras chagas maléficas, travestidas de vitórias, que apenas fazem com que alguns se mantenham bem na profissão às custas de outros, que por ventura aceitassem trabalhar mais horas e ganhar menos para entrar no concorrido mercado. Isso sem contar sua frequente propaganda aos “movimentos sociais” que julga corretos, em geral aqueles bem estatistas, aqueles que pedem novas leis, novas vagas em ministérios, novas “secretarias”, etc. Nenhum problema com quem defende esses movimentos, desde que não o façam com o meu dinheiro.

Aparentemente tergiverso, mas não. É que o CFP é sábio. Apesar de tudo, em meros 40 anos de lobby no Congresso, eles conseguiram fazer com que algo fosse de uso e aplicação privativos dos psicólogos, essa profissão privativa dos pagantes registrados do CFP: a avaliação psicológica. Assim, se você ou sua instituição quiserem aplicar um teste psicológico, vocês precisarão pagar algum psicólogo, que está pagando o CFP. Siga o dinheiro.

Acontece que “os psicólogos só podem usar profissionalmente os testes que receberem parecer favorável, conforme dispõe a Resolução CFP nº 002/2003”. Está no nosso artigo 16, conforme alínea c do artigo 1º e alínea m do artigo 2º do nosso Código de Ética Profissional. Eu quase rio sovieticamente enquanto escrevo isso.

E aí fica interessante, pois aqui entram as nossas grandes corporações de nicho. Ok, não são biiiiig corporations, mas dentro do universo que descrevo, são bem grandes. Todo (ou pelo menos todos os importantes, mas talvez todos mesmo) teste com parecer favorável é propriedade de alguma grande editora. Na maioria dos casos, essas editoras são a Vetor e a Casa do Psicólogo, sendo que esta última pertence ao gigante grupo Pearson (eita, então talvez tenham big corps sim!).

Então, para aplicar qualquer teste psicológico em território nacional, é preciso contratar a preço mínimo um psicólogo, que precisa estar registrado e pagando um preço fixo ao CFP, e que precisa ter comprado este teste, a preço definido por um quase-monopólio, de uma grande editora. Siga. O. Dinheiro.

(Veja que nenhum desses valores foi atingido livre e espontaneamente, é tudo regulado e sujeito a alguma pena)

Esse é o SATEPSI. O sistema de avaliação de testes psicológicos criado e alimentado pelo CFP. Uma lista com seu próprio Index Librorum Prohibitorum. Além de tudo, ao lado de cada teste com parecer favorável, ainda vem o nome da editora da qual você deve compra-lo, para evitar confusões. Porque o CFP é, também, prestativo.

E eu não quero aqui discutir o monte de coisas que essa sucessão de absurdos suscita, como a questão do copyright sobre testes psicológicos, a legitimidade do CFP em proibir testes, a obrigatoriedade de pagamento sob pena de não poder exercer a profissão, o poder de fiscalização e de dizer o que pode ou que não pode ser chamado de Psicologia. Podemos fazer isso outra hora.

O que eu quero é chamar a atenção para o atraso que tudo isso junto traz para a pesquisa psicológica no nosso país. O comportamento humano é o foco de muitas disciplinas além da Psicologia. Muita gente tem interesse genuíno em estudar o que fazemos, como fazemos, por que fazemos. E os testes psicológicos são instrumentos para essas pesquisas. Alguns são extremamente precários e discutíveis, outros são elaborados e interessantes. São instrumentos sempre em evolução, passíveis de crítica, de discussão, etc. Mas o fato é que todas essas barreiras atrapalham, e muito, o andamento das pesquisas. São barreiras de entrada que já fizeram muita gente boa desistir e partir para outros objetos de estudo, outras maneiras DE levar suas pesquisas adiante. Aplicar testes em grandes grupos, que não de estudantes, é difícil e custoso.

Como consequência, ao invés de termos a profissão cada vez mais valorizada, diversificada e inserida no mundo, temos as ações do CFP no isolando cada vez mais. Porque o CFP não entende que é impossível para um grupo de burocratas de uma corporação de ofício como são os nossos Conselhos Profissionais prever, planejar e controlar tudo que é e será feito, centralizar a decisão dos direcionamentos que os milhares de psicólogos espalhados pelo Brasil vão dar em suas atividades, saber em tempo real as novidades que emergem. O CFP não entende que o lobby que faz no Congresso estará sempre atrasado frente as demandas atualizadas dos profissionais, que sua burocracia esmaga a inovação.

Eles usam o sentimento de pertencimento a um grupo para fazer você, amigo psicólogo, amar e apoiar cegamente a própria coleira. Eles temem que você perceba que o CFP é um mal desnecessário.

 

Thiago Sant’Anna é psicólogo e contrário a existência do CFP e da regulamentação da profissão de Psicologia.

 

Compartilhar