Nessa semana, a Oxfam publicou um relatório mostrando que o 1% mais rico do planeta detém mais riqueza do que os 50% mais pobres e que segundo a previsão deles, eles teriam mais do que os 99% restantes daqui a dois anos. Imediatamente, a informação foi divulgada por quase toda a grande imprensa brasileira, sem que nenhum destes veículos fizesse alguns esclarecimentos sobre método e contexto que são cruciais para evitar a divulgação de inverdades maquiadas com estatística.

O relatório da Oxfam utiliza números do Credit Suisse que, com base em dados muito escassos, tentou estimar a riqueza líquida de todas as pessoas do mundo. A grande maioria dos países não tem dados sobre os estoques de riqueza, uma vez que o que se tributa normalmente é a renda – ou seja, os governos se importam mais em saber e medir quanto dinheiro as pessoas recebem em períodos específicos de tempo (ano, mês), e não em quanta riqueza elas acumularam ao longo da vida.

Esse fato praticamente impossibilita a existência de estatísticas confiáveis sobre a riqueza. Os autores do relatório original reconhecem isso. Mesmo assim, tentam resolver o problema generalizando as tendências de alguns países específicos, que foram misturadas com dados de desigualdade de renda para os demais. Na melhor das hipóteses, essas estimativas são pouco confiáveis e devem ser tomadas com cuidado.

O relatório original da Credit Suisse tem vários problemas além deste. Ele não leva em conta, por exemplo, riqueza informal (as casas nas favelas e bairros pobres brasileiros, por exemplo, que muitas vezes valem dezenas de milhares de reais apesar de não serem formalizados com uma escritura) – riqueza esta que economista Hernando de Soto estima em cerca de 10 trilhões de dólares.

O estudo também ignora a riqueza implícita – como aquela prevista por sistemas de seguridade social dos países ricos, que se fossem administrados privadamente seriam parte de poupança dos cidadãos. Ao fim das contas, a riqueza é medida como se fosse apenas formada por imóveis e ativos financeiros, mas boa parte da riqueza dos mais pobres são bens de consumo duráveis (eletrodomésticos, móveis, motos, carros).

Ainda assim, caso todos esses problemas sejam ignorados, precisaríamos ignorar que a Oxfam mistura a metodologia da Credit Suisse com estimativas da Forbes para riqueza de bilionários. Não há motivos para crer que essas metodologias sejam compatíveis.

Mesmo se fôssemos tomar os dados como confiáveis, seria preciso entender que eles tratam de riqueza líquida (isto é, patrimônio descontado das dívidas). Como a maioria das pessoas do mundo poupa pouco (porque não ganha o suficiente para poupar) e consome com base em crediários e outras dívidas, mais ou menos metade do mundo não tem patrimônio (formal) líquido algum. Segundo esses critérios, se você é um mototaxista que mora na Rocinha e tem uma CG 125cc e não tem dívida você está na metade mais rica do planeta. Se você tem uma casa nos arredores da Brasília que custa 150 mil reais, você tem mais riqueza que bilhões de pessoas juntas (porque a maioria delas têm patrimônio negativo). Seriam um mototaxista e um morador da periferia ricaços? Pois é, essa medida parece meio enganosa, não?

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Tá vendo o gráfico acima? Pois é. Ele se baseia nas pesquisas do economista catalão Xavier Sala-i-Martin, professor da Columbia University e frequentemente apontado como futuro vencedor do Prêmio Nobel. Xavier publicou o resutlado em revistas especializadas que verificam de forma muito mais cuidadosa a metodologia utilizada. E a conclusão assusta quem levou o noticiário pessimista a sério: a desigualdade de renda no mundo vem caindo há 40 anos.

Esse é um processo necessário para equilibrar a acumulação de riqueza no futuro. Como dados sobre riqueza são recentes e pouco confiáveis, eles dão a impressão de que estamos em um momento nunca visto na história, sendo que durante a maior parte da história a maior parte das pessoas não teve patrimônio algum. A exceção é as pessoas ganharem o bastante pra acumular patrimônio – coisa que vem acontecendo com os países que têm ascendido da pobreza (por exemplo China, Índia e Sudeste Asiático). É necessário acabar com a pobreza de renda para acumular riqueza patrimonial. Se você não tem renda você consome muito pouco. À medida que sua renda aumenta, você vai consumir mais. Só depois de sua renda satisfazer suas necessidades imediatas você vai ter dinheiro suficiente pra poupar e acumular riqueza. Como a desigualdade de renda vem caindo, o natural é esperar que a desigualdade patrimonial caia no futuro.

Usando os próprios dados da Oxfam (que tem seus problemas), a riqueza do 1% mais rico se manteve estável nos últimos 15 anos, girando em torno de uma média. Mas, apesar de terem os dados disponíveis, eles cortaram os dados em 2010 e fizeram suas projeções com base em apenas quatro anos. Isso leva a resultados estratosféricos não vistos na série histórica. Se, ao contrário disso, a riqueza dos mais ricos se comportar como se comportou ao longo dos últimos 15 anos, ela vai voltar à sua média histórica. Eu fiz uma pequena previsão alternativa (que também tem seus problemas) que usa a série completa e assinala como essa reversão à média é plausível. Essa prática de selecionar apenas quatro anos para adequar a realidade a uma narrativa é completamente condenável – e põe em dúvida a própria seriedade de um estudo que ganhou tantas manchetes de jornal.

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Desigualdade é como colesterol: há uma boa e outra ruim. A boa é aquela que deriva dos talentos, esforços e inventividade das pessoas e gera bons incentivos. Quando alguém cria valor para os outros ela deve ser recompensada por isso – porque isso gera dinamismo econômico, inovação e menos pobreza (pense no arquétipo do Steve Jobs). Se ela não for recompensada, ela não vai ter incentivo pra continuar inovando. A ruim é aquela de uma sociedade estamental – de comando e controle – onde as pessoas não enriquecem por causa de sua inventividade ou pelo valor que geram para à sociedade, mas pelos privilégios que têm junto aos poderosos (pense no arquétipo de Eike Batista). Temos que corrigir as desigualdades injustas que existem no mundo – e elas existem de montão. Mas para isso precisamos de análise séria. E não retóricas travestidas de números.

 

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