Por Josué Berlesi

No Brasil, lamentavelmente, existe um ditado muito verdadeiro: “a corda estoura sempre do lado mais fraco”. De acordo com reportagem disponível no site da Câmara dos Deputados mais de 7,3 milhões de brasileiros deveriam ser presos por posse ilegal de arma de fogo. Ocorre que devido às longas distâncias das delegacias do Sinarm (Sistema Nacional de Armas) e aos altos custos dos testes de renovação milhares de cidadãos acabaram não procedendo à revalidação tri-anual de seus registros de posse, logo, são criminosos de acordo com o art. 12 do Estatuto do Desarmamento. Dentro desta parcela de “marginais” encontram-se membros do judiciário, delegados de polícia e até mesmo um governador, porém, inserem-se de igual forma neste contingente parte da população mais pobre da nação como os ribeirinhos, quilombolas, indígenas e pequenos agricultores que dependem do uso de armas longas para obter alimento.

O Brasil tem mais de 5 mil municípios, mas apenas pouco mais de 100 postos da Polícia Federal. Nesse contexto, o pensamento pequeno-burguês dos legisladores do país foi capaz de impor que a renovação do “Certificado de Registro de Arma de Fogo” ocorresse exclusivamente nas delegacias da Polícia Federal. Tal pensamento é típico das elites urbanas centradas nos grandes centros que pouco ou nunca se importa com a população rural, especialmente aquela que vive nos rincões mais remotos do Brasil. Exigir que um ribeirinho amazônida faça uma viagem de barco com duração de vários dias apenas para protocolar os documentos de renovação de sua velha espingarda é, sem dúvida, desconhecer por completo a realidade dessa gente.

Não bastasse isso, a redação da Lei 10.826 e do decreto que a regulamenta (5.123) configura um absurdo jurídico além de ser um atentado contra a população carente da nação que depende do uso de armas longas, os chamados “caçadores de subsistência”. Estima-se que somente na Amazônia cerca de 150 mil caçadores dependem do abate de animais silvestres para obter proteína de carne. É bem verdade que a legislação retirou destes a obrigatoriedade do pagamento de certas taxas, contudo, o parágrafo único do art. 27 do citado decreto não deixa claro se o caçador de subsistência está livre ou não do pagamento dos testes de tiro e psicológico seja para aquisição de nova espingarda ou para a mera renovação tri-anual.

Mesmo que o ribeirinho, o indígena, o quilombola e o pequeno agricultor amazônida estejam livres dos referidos testes é preciso que se diga que o simples fato de protocolar a documentação exclusivamente nas delegacias do Sinarm já implica elevadíssimos custos para essa parcela da população. Note-se, por exemplo, a comunidade do Tambor, distante a 06 dias de barco de Manaus ou mesmo o município paraense de Altamira que possui distritos localizados a mais de mil quilômetros de distância da sede municipal. No sudeste, por sua vez, com mil quilômetros percorridos é possível fazer uma viagem de ida e volta entre as capitais de Rio de Janeiro e São Paulo.

O problema das distâncias também se apresenta na hora da aquisição de munição. Pela lei, só é possível adquirir munição com o registro válido e de posse da “guia de trânsito” documento que autoriza o cidadão a transportar a munição da loja para sua residência. Ocorre que a citada guia somente pode ser solicitada presencialmente nas delegacias do Sinarm, assim, em tese, um habitante de uma pequena cidade situada a beira da Trans-Amazônica, por exemplo, deveria fazer centenas de quilômetros, muitos deles em estrada de chão, até a delegacia do Sinarm mais próxima para então solicitar o referido documento, efetuar a compra junto à loja autorizada e, desse modo, voltar “legalizado” para sua residência.

O Estatuto do desarmamento é um exemplo clássico de como o preconceito e a falta de conhecimento dividem perigosamente o país. O Brasil não pode ser pensado exclusivamente a partir dos grandes centros urbanos, aliás, estudos do IBGE demonstram que nosso país é formado por pequenos municípios sendo que as 200 maiores cidades, com mais de 100 mil habitantes, representam apenas 3,5% do território nacional. Infelizmente, seguem sendo verdadeiras as palavras dos compositores de Querellas do Brasil: “O Brasil não conhece o Brasil, o Brasil nunca foi ao Brasil”!

Josué Berlesi é docente da UFPA/Cametá.

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