Por Thiago de Araújo

Acredito que uma parte da esquerda erra quando se opõe à direita porque tem que se opor à direita. Não sei se é o caso de Chico Alencar, deputado que me parece muito coerente, mas certamente é o caso de muita gente que concorda com ele nessa questão do Estatuto do Desarmamento, com todo o respeito.

Em primeiro lugar, o comércio de armas de fogo no Brasil já foi liberado por referendo feito há quase 10 anos. Na prática, mantida a criminalização do porte e da posse de armas, o referendo não foi cumprido até hoje, de modo que a discussão não deveria ser colocada nesses termos, antes de mais nada.

Em segundo lugar, e o mais importante, ser a favor do Estatuto do Desarmamento é também, necessariamente, ser contra a juventude pobre, em sua maioria negra, deste país. Como sempre, é ela que sofre diretamente os efeitos da criminalização do comércio de armas; é ela que mofa nas cadeias por portar armas de fogo que agentes da lei e outras pessoas portam com autorização do Estado. O jovem negro Rafael Braga, o único dos protestos de junho que permanece preso no Brasil até hoje, foi preso por causa do Estatuto do Desarmamento: portava pinho-sol, e a Justiça considerou que isso era um artefato explosivo.

É bem verdade que muitas pessoas partem de uma premissa lamentável: “revoguem o Estatuto do Desarmamento porque sou uma pessoa de bem e tenho o direito de andar armado contra marginais”. Isso é lamentável por vários motivos, como o fato de que essa divisão do mundo entre pessoas de bom caráter e demônios é, por si só, arrogante e mentirosa. Quem se julga santo já mostra, com essa crença, que não é tão santo assim.

Mas não são só os “cidadãos de bem” que estão “indefesos” com o Estatuto do Desarmamento, e isso uma parte da esquerda parece simplesmente ignorar – talvez por viver o sistema penal menos do que deveria, ou ainda por simples teimosia. Desprotegidas estão também as pessoas que morrem, diariamente, pela ação armada de uma polícia que usa um aparato semelhante ao Exército de Israel para matar, em “resistência” à ação de “bandidos”; ou as pessoas como Rafael Braga, que já completa mais de 1 ano preso enquanto discutimos, livres, depois de um bom banho e uma boa refeição, se devemos ou não manter a criminalização de que ele é vítima.

É incoerente lutar pela liberdade de Rafael Braga e se opor veementemente à revogação do crime no qual ele foi enquadrado. Rafael não foi um caso isolado ou uma exceção: quantos outros tantos “Rafaeis” também estão presos no Brasil em razão do Estatuto?

Não bastassem esses argumentos, há um outro fato que tem de ser levado em conta: realmente, é justamente nos Estados onde o comércio de armas é liberado que os índices de criminalidade, não por coincidência, são menores.

Por mais que exista uma direita conservadora que levante argumentos péssimos em favor dessa causa, revogar o Estatuto do Desarmamento é uma necessidade. Construir uma sociedade mais justa passa necessariamente por diminuir a criminalização, e o Estatuto é uma das faces mais claras do fracasso e da tragédia que a criminalização representa para as pessoas pobres/oprimidas.

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Thiago de Araújo é graduado em Direito pela UFPE. Apaixonado pela luta em favor dos direitos humanos, especialmente na questão carcerária, atualmente sonha em ser defensor público. Enquanto não alcança o objetivo, visita os presídios de Pernambuco para conhecer, de perto, a realidade por trás do senso comum.

 

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