Construção do Minhocão levou à filtragem de imóveis de alto padrão. Hoje uma reforma urbana na região pode gerar gentrificação nos mesmos imóveis. Foto por capitu @ Flickr
A palavra se tornou a nova vilã dos centros urbanos. Usada por muitos de forma equivocada como sinônimo de qualquer tipo de expulsão de comunidades desfavorecidas – seja lá como é feita – “gentrificação” infiltrou o vocabulário urbanístico de vez, com sites dedicados a combater a questão. O famoso projeto de redesenvolvimento urbano de Paris executado pelo Barão Haussmann foi recentemente chamado de gentrificação em um recente artigo da ArchDaily da Annalee Newitz. Até mesmo operações de desapropriações de favelas executadas pela polícia são caracterizadas como gentrificação, um uso ainda mais equivocado para a palavra. Na realidade, gentrificação nada mais é que um processo natural no desenvolvimento das cidades, parte da dinâmica de valorização e de desvalorização urbana ao longo do tempo.
Gentrificação (que vem do inglês gentrification) é um processo gradual onde imóveis são valorizados com a substituição dos seus moradores por moradores mais ricos. Não deve ser confundido com processos forçados de remoção de moradores ou, ainda, de demolição e reconstrução urbana forçada, como foi o caso da reforma parisiense no século 19.
Um dos exemplos clássicos de gentrificação é a transformação, ao longo de anos, de áreas industriais abandonadas de cidades norteamericanas como do Village em Nova York, caso amplamente documentado pelo economista William Easterly. A área foi inicialmente ocupada por residências de elite, na época em que a maior parte de Nova York era tomada por vegetação nativa (por incrível que pareça, um dia a Big Apple foi assim). Na segunda metade do século 19 começa na região o primeiro processo de substituição dos moradores originais, sendo ocupada principalmente por prostitutas, com a maior densidade de casas de bordel em Manhattan na época. Com uma grande queda no número de moradores e na demanda por prostituição, no final do século 19 a área é virtualmente abandonada e tem uma queda brusca nos preços dos imóveis. Alguns anos depois, a localização privilegiada do Village leva ao redesenvolvimento das pequenas casas de bordel em edifícios de 6 andares para abrigar indústrias têxteis, a primeira gentrificação causada pela valorização imobiliária.
No entanto, o boom imobiliário industrial dura apenas três décadas: legislações de incêndio obrigam as fábricas a abandonarem os edifícios e se reinstalarem em edifícios ainda mais amplos mais para o norte da ilha. Esse novo abandono do bairro fez com os planejadores na metade do século 20 considerassem o bairro um total fracasso, pedindo pela sua demolição. Em seguida ocorre o inesperado: artistas plásticos e galerias de arte procurando espaços amplos para produção e exposição de obras começam a se instalar no Village, que na prática desconsiderava o zoneamento que impedia o uso residencial. Surge ali um dos principais movimentos da arte moderna norte-americana, onde trabalharam artistas como Lichtenstein, Warhol, Judd, Stella, Rauschenberg e Serra. A ocupação do bairro por estes artistas gerou um capital cultural imenso, atraindo moradores mais ricos e dando início à última onda de gentrificação e encarecimento do bairro. O resultado é a situação atual onde o bairro é ocupado por moradores ricos e lojas de grifes internacionais, agora protegidos da transformação física pelas legislações de preservação do patrimônio histórico.
O gráfico elaborado por Easterly mostra as mudanças no uso das edificações do Village ao longo dos anos. (www.greenestreet.nyc)
Os problemas da gentrificação paulistana: o caso “Minhocão”
Agora vamos para São Paulo, onde o desenvolvimento urbano não é tão espontâneo como Nova York, mas marcado por grandes projetos públicos urbanos, para o bem ou para o mal. O Elevado Costa e Silva, o enorme viaduto popularmente conhecido como “Minhocão”, desvalorizou toda a região por onde ele passa, desde a sua abertura em 1970. A obra rodoviária do período da ditadura trouxe trânsito, poluição, barulho e uma área coberta escura sob a via, hoje ponto de crack e abrigo para moradores de rua. Diminuiu a demanda para morar próximo do Minhocão, diminuiu o preço dos imóveis ao seu redor.
Hoje existem propostas para melhorar o Minhocão, seja transformando-o em um parque linear ou até mesmo demolindo-o. Seja o que for, a tendência é de que melhore a habitabilidade da região, aumentando a demanda pelo bairro e, pelo menos em um primeiro momento, os preços dos imóveis, caso não haja um aumento de oferta para acompanhar este aumento de atratividade. O entorno do Minhocão “sofreria” gentrificação.
SoHo em Nova York: inicialmente gentrificado por artistas com uma oferta limitada por patrimônio histórico, o bairro se tornou um dos endereços mais caros da cidade.
Do ponto de vista da cidade é uma boa notícia: no agregado é uma área a mais com mais qualidade. Do ponto de vista do proprietário de imóveis da região, também. Quem provavelmente será prejudicado é morador de aluguel que, com o aumento do valor do imóvel, pode não mais conseguir pagar pelo preço das melhorias urbanas do bairro. Esta “expulsão” seria o grande problema gerado pela gentrificação.
Alguns urbanistas, como João Sette, argumentam que estes moradores devem receber auxílio para continuarem morando ali, aplicando algo como um controle de aluguéis municipal para que eles possam se beneficiar das alterações do bairro, repassando os ganhos dos proprietários adiante. O problema é que no caso do Minhocão, mesmo se o investimento na região partir do poder público, o que ocorre é apenas uma restauração do bairro à condição pré-Minhocão. Os proprietários influenciados pela medida sugerida por Sette não necessariamente estão sendo beneficiados pela reforma, pois podem muito bem ser os mesmos que perderam em 1970. A reforma da área não seria, assim, um benefício adicional a esses cidadãos mas uma tentativa de reparar os danos causados anteriormente.
Além disso, um controle de aluguéis para manter um determinado morador terá um efeito meramente temporário, já que o proprietário pode simplesmente deixar de alugar o apartamento para vendê-lo ou simplesmente não renovar o contrato quando o termo vencer. A lei da oferta e da demanda é mais poderosa que aquela escrita no papel.
Conheça a filtragem, o oposto da gentrificação
Então quais são as alternativas que restam para estes moradores de aluguel? Como colher os frutos positivos de uma melhoria urbana sem se preocupar com os efeitos negativos da gentrificação?
Sabemos que as constantes transformações urbanas aumentam e diminuem valores imobiliários por toda a cidade. Edifícios novos normalmente tem preços mais altos (assim como em praticamente tudo): moradores preferem as tecnologias, os materiais e até mesmo os estilos arquitetônicos mais recentes. Mas o tempo passa e edifícios se desvalorizam. Começam a ter defeitos na fachada, infiltrações, fiações antigas, esquadrias apodrecidas, ferragens enferrujadas e dificuldade de instalar novos equipamentos de climatização ou cabeamento estruturado. Os estilos saem de moda – pelo menos temporariamente.
Este é o processo inverso da gentrificação, mas menos debatido, chamado filtragem. Nesta ótica ocorre exatamente o oposto: moradores de rendas mais baixas ocupam os imóveis de moradores de rendas mais altas, exatamente o que aconteceu com os bairros no entorno do Minhocão quando ele foi construído, ou com os nossos centros históricos que hoje dificilmente abrigam a elite que lá residia no passado. Na história do Village vimos que um bairro pode passar por este processo até mesmo mais de uma vez: prostitutas ocupando residências de elite na metade do século 19, artistas ocupando imóveis importantes da história da indústria têxtil norte americana. O processo entre gentrificação e filtragem é constante e é o que dá vida à cidade, e manter artificialmente os moradores que sofrem gentrificação teria impedido o nascimento da potência têxtil no Village, assim como seu renascimento com a vanguarda arstística.
O que não é percebido por muitos críticos da gentrificação é a filtragem ocorre simultaneamente: todo “gentrificador” que ocupa o imóvel de um morador mais pobre “libera” o imóvel onde morava antes, que é normalmente ocupado por um outro morador ligeiramente mais pobre. Este, por sua vez, também deixa o imóvel onde antes morava, e o processo gera um efeito em cascata na cidade inteira, uma espécie de “dança das cadeiras” imobiliária. Mas como vimos antes, a cidade não é um lugar estático onde o número de “cadeiras” (estamos falando de imóveis, é claro) não muda. Não precisamos criar políticas públicas pra decidir se quem fica com cada imóvel é rico, pobre, subsidiado ou não. A dinâmica da cidade deve permitir que mais imóveis sejam construídos, de modo que ninguém fique de fora. Mostrando o raciocínio por outro ângulo, quanto mais uma cidade restringir a construção de novas unidades, mais vai pressionar cidadãos mais ricos a gentrificarem áreas mais pobres, dada a falta de unidades novas para atender a demanda por moradia de alta qualidade.
Enfim, a resposta para a gentrificação é que tenhamos cada vez mais edifícios sendo filtrados, lembrando que todo edifício antigo já foi, um dia, novo.
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Publicado originalmente no Caos Planejado.
*Imagem que ilustra o post retirada daqui.