Por Daniel Coimbra

Todas nós sabemos o que é pornografia. Ela não precisa de definição, é facilmente reconhecível. A mesma coisa vale para o conceito de jogo. Praticamente impossível de definir, mas todas sabemos o que é (as discussões de Wittgenstein sobre o assunto são interessantes). É imediato para qualquer uma que um vídeo do Brazzers é pornográfico, e um ensaio fotográfico body-positive sobre diferentes formatos de peitos não o é. O problema aparece nos casos limítrofes, também conhecidos como zonas cinzas. Arte plástica/literatura erótica constituem pornografia? E nudez não-erótica? O que dizer de filmes cujo tema central é a sexualidade? E exibicionismo? Episódios de algumas novelas?

É lá, nas místicas zonas cinzas, que a cuidadosa e rigorosa definição de conceitos se torna importantíssima. Só então saberemos se algo nesta zona é pornográfico ou não (também de que forma e em qual intensidade o é), e assim poderemos lidar com o material de acordo. Mas este texto não é um ensaio problematizando a pornografia – apesar do assunto ser interessantíssimo. Quero falar aqui sobre a péssima maneira que se lida com conceitos-chave em qualquer área. Um exemplo muito próximo a mim são movimentos sociais em prol da justiça social.

Conceitos como patriarcado, opressão sistemática, privilégio estrutural, fobia, exploração, classe, percepção social, heterocisnormatividade, a sociedade/a mídia, misoginia, relativização, interseccionalismo, silenciamento, machismo, apropriação cultural, espaço de fala, mansplaining, cultura do estupro, invisibilização, falocentrismo, protagonismo, empoderamento, culpabilização, gênero, e até feminista são jargões que podem até ser bem delineados em discussões acadêmicas e possuírem significado intuitivo, mas são porcamente empregados em discussões informais. Parece haver uma total incapacidade de, por exemplo, feministas e masculinistas se comunicarem, e parte disso se deve a acepções confusas de conceitos-chave por pelo menos um dos lados da discussão.

O problema é agravado pelo fato de as pessoas terem um prazer enorme em empregarem jargões do tipo (myself included). Para piorar, muitas vezes os usam sem um entendimento adequado do que significam, e colorem os textos com eles como meras buzzwords. Corolário inevitável é que textos e debates estão infestados dos termos supracitados, raramente usados de maneira correta e bem definida. Não há um entendimento compartilhado sobre o que cada termo significa, e a conversa desemboca em discussões esquentadas sobre semântica. Não dá pra convencer as pessoas e instigar reformas de pensamento e atitude – o objetivo principal de qualquer movimento social – se o diálogo está cheio de entraves.

Vou dar alguns exemplos para facilitar o entendimento, e de que vale um texto se a pessoa leitora não compreendeu?

a) Quando as pessoas falam que o patriarcado não existe, elas não estão necessariamente negando que o machismo exista, mas talvez apenas possuam uma acepção diferente da palavra. A expressão “o patriarcado” passa uma impressão de algo muito mais concretointencional do que realmente é: uma certa cultura denunciada pelo feminismo. Por isso, tento não usar este termo, ou pelo menos explicar de antemão o que ele quer dizer (ou o que quero expressar com ele). É impossível ler “o discurso perfeito do poliamor acaba sendo apropriado pelo patriarcado, gerando mais um privilégio masculinoneste texto e não pensar no patriarcado como uma reunião de maçons ultramachistas produzindo ditames culturais (aliás, é bem interessante o texto).

b) Muita gente reconhece que o próprio pai possui preconceitos, conscientes ou inconscientes, contra gays. Todos ouvimos também deles aqueles comentários e piadinhas que possuem fundo preconceituoso ou passagem uma mensagem ruim sobre gays, ou que pelo menos podem ser razoavelmente interpretados desta maneira. Mas mesmo assim ninguém quer falar “meu pai é homofóbico“, apesar de isso significar a mesma coisa que a primeira frase. Isso é porque o termohomofóbico, além de ter uma etimologia bagunçada (afinal, não tem nada a ver com medo, e às vezes nem tem a ver com ódio), é um termo forte. Na visão das pessoas, ser chamado de homofóbico é tipo ser chamado de fascista, e ninguém vê o próprio pai como fascista. Gente homofóbica somos todas nós, inclusive as boazinhas – afinal, nossa cultura está arraigada de preconceitos contra esta população. Só que geralmente os temos de maneira inconsciente – isto explica gays homofóbicos, com preconceito internalizado, que por exemplo odeiam gay afetado [sic]. Portanto, prefiro falar “isso que você falou é homofóbico” ao invés de “você é homofóbico”, ou, melhor ainda, falar “você não acha que isso que você falou tem um pouco de preconceito contra gays?”. É o melhor jeito de não colocar a pessoa na defensiva.

c) “A sociedade é racista.” Falar coisas deste tipo virou tão clichê que dói na alma ler. Empobrece o texto, gente. Optem por algo que expresse mais claramente “muita gente tem tais preconceitos inconscientemente” ao invés de algo tão tosco, que além de tudo não indica o problema direito e põe a culpa nesta entidade mística de analistas sociais mirins chamada sociedade. Expliquem o que é ser racista, que não é apenas “odiar pessoas negras”, mas toda uma gama do que Jennifer Saul chama de viéses implícitos – isto é, preconceitos (mesmo que leves) inconscientes -, e nem sempre é culpa da pessoa.

A lista poderia ir longe, mas desembocaria em discussões sobre os significados individuais de cada termo. Acho que só essas três já deram uma ideia geral dos problemas que podem ser gerados por jargões mal compreendidos e mal utilizados. Quem já ouviu alguém falando de “espaço de fala, empoderamento, e protagonismo” sabe como um discurso pode ser tremendamente confuso e inconsistente, até mesmo na cabeça de quem está discursando. Esses dias estive lendo The Gender Knot, e fiquei convulsionando com a falta de rigor na linguagem do autor (até porque logo antes estava lendo Practical Ethics – e obras de filosofia tendem a ser maçantemente rigorosas em suas formulações). Foi o que me motivou a escrever o texto, aliás.

Só que o problema não se encerra aos movimentos sociais, e também é ubíquo em discussões sobre política e economia. Como se não bastasse as pessoas comuns terem fraquíssimas noções sobre conceitos básicos como capitalismo liberal, socialismo do séc. XXI, e novo keynesianismo, as pessoas que supostamente seriam estudadas também empregam termos-chave, adivinha, porcamente. Causa ânsia a leitura de frases como Rothbard é um fascista!, sendo que o caboclo é anarquista. Ou chamar de comunista um país que não só jamais teve Estado Operário, mas até hoje possui Estado. Ainda me esforço para entender o que raios exatamente é exploração – parece que cada pessoa tem uma acepção diferente do conceito.

Não é por burrice ou ignorância profunda da história que as pessoas digladiam-se sobre a posição do fascismo no espectro político. São só definições diferentes do que é ser de direita e o que é ser de esquerda. Eu diria que o mesmo vale para conservadorismo – nada apresentado no livro As Ideias Conservadoras, de João Pereira Coutinho, se parece com a concepção comum (até na intelligentsia esquerdista brasileira) de conservadorismo. Termo que, aliás, é usado indistintamente com reacionarismo (termo mal-empregado par excellence) até por quem se considera reacionário, porém com significado muito bem delineado no livro de Coutinho. Como não podia faltar, o termo mais controverso de todos, reinvidicado tanto pelo PSOL quanto pelo IMB… liberdade!

Enfim, deu pra passar a ideia central. Isso se aplica a uma miríade de termos importantes, que passam de conceitos descritivos até rótulos de indivíduos, em todos os assuntos. Eu diria que uma parte substancial das discordâncias e polêmicas ocorrem por causa de uma falha de comunicação, i.e. um mal uso da linguagem, ao invés de uma real discordância de ideias. Dois pontos de vistas se tornam incomensuráveis se não existe um entendimento compartilhado da linguagem empregada. E foi essa a lição de hoje.

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Publicado originalmente no blog Laboratório Irreverente.

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Daniel Coimbra é liberal libertino, esquerdista aspirante de vegetariano, ex-físico e proto-filósofo pela Unicamp, e fã de lasanha. Apaixonado por tantos assuntos que fica confuso só de pensar, e acaba indo jogar Mário Kart. Também costuma publicar sobre esses assuntos em sua página no facebook.
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