Por Valdenor Júnior
O liberalismo clássico e o iluminismo foram responsáveis por importantes mudanças no mundo desde o século XVIII, para uma direção mais humanitária, liberal e racional. Conforme elucidativo texto de Erick Vasconcelos ,
“As ideias de Smith, Ricardo, Turgot, Quesnay, abriram os portos do mundo todo e acabaram com a fome, sanearam as cidades, ensinaram os pobres a ler”.
No campo da aplicação do poder punitivo pelo Estado, um nome destaca-se como eterno campeão da causa da humanidade: Cesare Beccaria. Seu livro “Dos Delitos e das Penas” teve como objetivo ser uma força disruptiva contra uma tradição de longa data de punições ou procedimentos criminais irracionais ou desarrazoados que persistiu pelos preconceitos dos homens:
“Fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador, compilados por ordem de um príncipe que reinou, em Constantinopla, há doze séculos, combinados depois com os costumes dos lombardos e amortalhados em um volumosos calhamaço de comentários pouco inteligíveis, são o antigo acervo de opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de leis; e ainda hoje, o preconceito da rotina, tão nefasto quanto difundido, faz com que uma opinião de Carpozow, uma velha prática preconizada por Claro, um suplício que Franciso imaginou com bárbara complacência, continuam sendo orientações friamente seguidas por esses homens, que deveriam tremer ao decidir da vida e da sorte de seus concidadãos.
É esse código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros, que desejo examinar nesta obra.”
(BECCARIA, p. 11, edição Martin Claret)
Esse trecho é importante, porque ele marca justamente o que penso ser uma postura liberal: o anti-conservadorismo, a ousadia de propor o abandono de tradições persistentes à luz da necessidade de proteger direitos individuais e promover o bem-estar, conforme um pensamento baseado na razão, na ciência e na valorização da humanidade. Autores liberais importantes, como Friedrich Hayek e James Buchanan, escreveram artigos explicando sua rejeição ao conservadorismo.
O Brasil precisa do espírito liberal e humanitário de Beccaria. Um dos motivos é a persistência da revista vexatória na maioria dos estados da federação.
Escrevi para o Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) um texto (republicado aqui no Mercado Popular) denunciando o modo como o Estado brasileiro literalmente invade os corpos de pessoas que tem familiares presos, e chamando atenção para uma campanha lançada pela Rede Justiça Criminal que promove a abolição da revista vexatória.
A entidade define revista vexatória como “o procedimento pelo qual são submetidas as pessoas que pretendem visitar algum familiar na prisão. Essa prática é conhecida como revista vexatória, exatamente pelo seu caráter humilhante e abusivo. Essas pessoas, crianças, adultos ou idosos, são ordenadas a ficar nuas, agachar diversas vezes, muitas vezes terem seus órgãos genitais inspecionados (sem observância de qualquer cuidado mínimo de higiene)”.
A Rede Justiça Criminal ainda observa que é uma dura realidade que aproximadamente meio milhão de pessoas passa semanalmente no Brasil, enquanto sua eficácia para deter a entrada de drogas ou celulares na prisão é contestável: segundo levantamento realizado, apenas 0,03% das pessoas revistas em penitenciárias de São Paulo são flagradas portando itens proibidos. Seus efeitos afetam, desproporcionalmente, mulheres em idade adulta, uma vez que compõem cerca de 70% dos revistados.
O site da campanha traz relatos fortes. Falam de mulheres e crianças que, como condição à visitação de um familiar preso, têm sua intimidade corporal invadida, pela obrigação de tirar a roupa e abrir as partes íntimas, agachando três vezes antes da entrada à unidade prisional. “Assim não tá dando para ver lá dentro. Abre a vagina com a mão. Isso, para que eu possa enxergar direito”, é o que determina a agente penitenciária em um dos relatos.
Uma mulher, em carta escrita à mão, divulgada pela Rede Justiça Criminal, denuncia o que acontecia em uma penitenciária em São Paulo: “sofremos constantes humilhações e constrangimentos com nossas pessoas; somos obrigados a fazer força abrir nossas partes íntimas com a mão, somos obrigadas a por a perna em cima do balcão e ainda colocar o dedo, ficar de quatro e ainda (…) se tivermos menstruadas não podemos visitar nossos parentes”.
Por isso, o grupo solicitava a aprovação do Projeto de Lei nº 480/2013, que vetaria esta prática (atualmente, deixada à discrição de cada estado da federação), e propõe, como alternativa, a chamada “revista humanizada”, que já é aplicada no estado de Goiás. Na última terça-feira, foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 7.764/2014, que tem o mesmo objetivo. Um importante passo foi dado, e espera-se que o Congresso Nacional transforme o projeto em lei.
Em meu texto para o C4SS, destaquei que uma das coisas que promovem a persistência desta prática é o reconhecimento de sua legitimidade, levando-se em conta um viés da mente humana: a obediência ao comando da autoridade como forma de insensibilização psicológica. O principal remédio contra este viés é a coragem de questionar a autoridade e a atuação de rebeldes, que atuam como “gatilhos” que estimulam sentimentos anti-conformistas a serem externalizados. Outro é a intensificação da empatia, por meio de um processo de interação cultural, econômica, social e intelectual cada vez maior e abrangente.
Existem várias formas de questionar a autoridade e promover empatia pelos injustiçados por violência arbitrária e leis abusivas. Uma delas é a desobediência civil empreendedora. Outra é o método de Beccaria, escrever um livro denunciando os horrores e justificando a necessidade de seu abandono. Na era digital, usar a divulgação em massa propiciada pela internet pode ser uma nova ferramenta em prol da rebeldia transformadora.
Foi o que aconteceu em Goiás. O que catalisou o abandono da revista vexatória neste estado, com a consequente adoção da revista humanizada, foi a divulgação de um vídeo produzido pelo Ministério Público em 2010, sob o título “Revista vexatória – visitando uma prisão brasileira”, o qual, segundo o procurador Haroldo Caetano da Silva, foi “fruto da coragem de uma mulher que permitiu ser filmada durante o antigo procedimento e que se dispôs a denunciar, mediante a exposição do seu próprio corpo, a absurda violência institucional que era cometida pelo Estado de Goiás contra as pessoas, principalmente mulheres, de todas as idades, que passam pela dura experiência de ter um parente, amigo ou companheiro preso”. Precisamos de mais Beccarias como esta mulher!
Liberais e libertários vivem falando sobre livre comércio, liberdade econômica, autonomia para fazer suas próprias escolhas econômicas, entre outras pautas que são importantes. Contudo, levando-se em conta que o liberalismo deve ser inclusivo, libertador e humanitário e ter uma opção preferencial pelos desprivilegiados e injustiçados, eles devem prestar atenção para esse tipo de violência estatal institucionalizada, que penaliza familiares de presos.
Se a nossa filosofia política não puder olhar pela situação de mulheres que estão tendo sua intimidade invadida em presídios por todo o Brasil e tendo que abrir suas partes íntimas diante de estranhos para poder visitar um ente querido preso, então, parafraseando Paulo na 1ª epístola aos Coríntios, “vã é a nossa fé”.
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.