Neste novembro passado, pude visitar a mostra Resistir É Preciso, exposta no Centro Cultural do Banco do Brasil – São Paulo. Idealizada pelo Instituto Vladmir Herzog, a exposição retrata a luta da imprensa e da arte nos anos de chumbo do regime militar. No último andar do luxuoso prédio do CCBB, obras de arte interpretavam os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um dos quadros me prendeu a atenção. Era uma representação da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil ao lado da indicação do Artigo XVII da Declaração. O que um retrato dos nossos tempos de colônia teria a ver com Resistir é Preciso?

Em março de 1808, a esquadra de D. João chega à Baía de Guanabara. A Corte Portuguesa fugia das tropas de Napoleão, levando ao Rio de Janeiro todo o aparato do Estado lusitano. Sem maiores surpresas, como se pode imaginar, os tributos no Brasil chegaram a quantias inéditas aos padrões da época. Os membros da Família Real foram alojados em três prédios no centro da cidade, mas milhares de nobres agregados da realeza também precisavam de abrigo. Assim, todo sobrado ou casa digna a um fidalgo foi requisitada pela Coroa. Nelas, foram colados alguns cartazes com as iniciais “P.R.”, sigla oficial para “casa requisitada pelo Príncipe Regente”. A irreverência carioca rapidamente entendeu como “Ponha-se na Rua!”.

Entendido. Sobreposta à tela no CCBB estava a transliteração de trecho do artigo XVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”. Se na primeira infância do Brasil fomos obrigados a conviver com a desapropriação arbitrária de imóveis, agora tampouco o problema está resolvido. Neste dezembro de 2013, o Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito do Recife convocou seus estudantes a participarem de ato em defesa dos moradores do loteamento São Francisco de Camaragibe, em Pernambuco. Em função das obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo, o Governo do Estado realizou uma série de desapropriações. Assim se noticiou o caso:

Ontem (02/12), a situação se tornou ainda mais preocupante, ocasião na qual moradores foram informados que deveriam deixar suas residências dentro das próximas 24 horas, ainda que não tenham recebido o valor indenizatório, caso contrário haveria o uso da força através da polícia para a conclusão imediata do processo”.

Os cariocas de 1808 e os pernambucanos de 2013 têm algo em comum: foram atacados pelo Estado e estão de mãos atadas. No Brasil, direito de propriedade é coisa de rico. Descontada a triste ironia, cabe uma pergunta com gosto de autocrítica:

Por que diabos os liberais se revoltam quando o Movimento Sem Terra invade grandes propriedades, mas se omitem quanto às desapropriações de favelas e comunidades mais pobres? Propriedade de favelado não é propriedade?

Os proprietários de Camaragibe dependem agora de ações judiciais que tentarão remediar a arbitrariedade do Poder Estatal. Dependem da definição arbitrária de um juiz que ditará se sua casa vale um, dez ou vinte mil reais, caso tenham a sorte de não ver o seu caso engavetado por um poder judiciário deficiente. Mas você leitor, pode estar pensando: “eles precisam entender que sua propriedade deve ter uma função social e que é lícito ao governo desapropriá-los para o bem do restante da sociedade”. Calma! Precisam realmente? Até que ponto pode e deve ser relativizado o direito de propriedade? [Note que a relativização decorrente da “função social”, assim como toda e qualquer cessão de poder discricionário ao Estado, sempre é desequilibrada e nunca atinge aqueles que detêm o poder econômico ou político. O poder de agredir direitos individuais em prol do “bem comum” sempre teve e sempre terá um alvo muito específico. Quantas vezes você viu condomínio de luxo ser desapropriado para cumprir sua “função social”?]

Se você compartilha minha indignação, saiba que milhões de brasileiros estão em situação ainda pior que os moradores do loteamento São Francisco. No nosso ordenamento jurídico, como deve lembrar, não há usucapião em terras públicas. Diferente dos latifúndios privados, se um sem-teto ocupar um latifúndio improdutivo estatal, ele não poderá se tornar o legítimo proprietário daquele pedaço de terra, ainda que resida lá durante vinte ou trinta anos. Essa talvez seja a maior injustiça e o principal problema das favelas brasileiras. Mais de três quartos das favelas estão em terras públicas e seus moradores nunca serão proprietários*. Enfim, nunca poderão se defender do policial-invasor, nunca poderão utilizá-la como garantia em um empréstimo, nunca poderão construir seus sonhos com segurança. Quando a terra não acompanha a propriedade ou a posse legítima, infelizmente, o alicerce jurídico é nulo. É o caso, por exemplo, da comunidade do Cantagalo, como muito bem narra Anthony Ling em excelente artigo sobre Regularização Fundiária.

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Minha alma mater, a Faculdade de Direito do Recife – primeiro curso jurídico do Brasil – sempre esteve inquieta. Joaquim Nabuco, um dos seus mais ilustres alunos egressos, não usou sua pele branca como desculpa ou justificativa para ignorar a escravidão. Nabuco nos ensinou que apenas lutando pela liberdade alheia podemos defender a nossa própria liberdade. O patrono do nosso diretório estudantil, Demócrito de Souza Filho, pouco antes de ser assassinado pela ditadura de Vargas, bradou em seu último discurso: “Somos descendentes de Castro Alves e Tobias Barreto. Nós empunhamos a bandeira da liberdade!” É isto que espero dos meus amigos liberais. Empunhem a bandeira da liberdade, sobretudo para defender o direito de propriedade dos mais pobres!

1. “Cerca de 90% das favelas do país estão em áreas públicas”, Rafael Santos, assessor jurídico da Secretaria de Habitação de Santo André

P.S.: Aos interessados o vídeo “Property Rights: The Little Guy’s Best Friend”. Nele o Prof. Aeon Skoble argumenta que, ao contrário da crença pública, os direitos de propriedade são a melhor proteção do pobre contra os ricos e poderosos. Confira:

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