Por Valdenor Júnior

As eleições deste ano foram singulares, e devemos refletir o que elas significam diante do momento histórico pelo qual passa o Brasil, em termos políticos, econômicos e sociais. Atenção redobrada é exigida daqueles que defendem tanto liberdade individual (incluindo uma economia mais livre) quanto justiça social (pela maximização da renda/bem-estar dos mais pobres).

Um importante passo nessa reflexão é entender o que significaram para nosso país os últimos 12 anos a partir dos acertos, erros e limites dos governos do PT, inclusive em suas (des)continuidades ao governo anterior do PSDB (foi o que eu e Arthur Niculitcheff fizemos no texto “Explicando a redução da miséria e aumento da renda dos mais pobres sob o lulismo“).

Mas outro tópico importante será o da participação de candidatos autodeclarados liberais, especialmente por meio do partido NOVO, nas eleições de 2018, e como eles se posicionarão dentro de uma oposição que contará com PSDB de Aécio e Rede Sustentabilidade de Marina como principais forças de articulação política com chances de vencer as eleições presidenciais contra o candidato governista.

O texto será dividido em três seções: I. A nova política de Marina; II. O partido NOVO; III. O partido NOVO guinará à direita ou à esquerda em 2018? Ou: se aproximará mais de Marina ou do PSDB dentro da oposição ao governo do PT?

I. A nova política de Marina:

Primeiro, importante definir aqui às claras: entre Dilma, Aécio ou Marina, quem tentaria desmontar partes de nossa estrutura de capitalismo de compadrio à brasileira (o “capitalismo de laços“) caso eleito nestas eleições que acabaram de terminar?

Marina é a única que tentaria.

Tanto Dilma quanto Aécio, no máximo, fariam essa estrutura retornar aos moldes do primeiro mandato de Lula, com alguma vantagem para Aécio por conta da proposta de reforma tributária e pelo fato de Dilma não ter sinalizado se reverteria ao Tripé Macroeconômico após o fracasso (por ela nunca admitido) da Nova Matriz Econômica, mas mesmo assim, o mote de sua eleição foi o antipetismo (associado ao discurso anti-corrupção), não um desafio à estrutura do capitalismo de compadrio brasileira.

Todo o discurso de que Aécio Neves poderia governar buscando mais união política, como seu avô Tancredo Neves, apenas significa mais do mesmo: pemedebismo, conceito criado por Marcos Nobre para designar uma prática política que organiza a política como um sistema de vetos (que permite acomodar interesses os mais diversos), mais do que de propostas positivas (que permitira o desafio de interesses específicos), e preocupa-se em obter supermaiorias legislativas. Não foi à toa que Aécio Neves ameaçou mudar de legenda em 2008, saindo do PSDB para o PMDB, à convite deste último para concorrer na chapa governista nas eleições de 2010, inclusive havendo articulação de Lula para isso.

Por outro lado, Marina lançou a proposta de uma “nova política” que desafia esse pemedebismo, que tanto PSDB quanto PT já acomodaram. Não foi à toa que ela não pediu cargos para apoiar Aécio agora em 2014, mas sim adesão a certos pontos de seu programa, tais como adotar uma política ambiental sustentável, priorizar o ensino integral no país, criar um fundo para tentar solucionar os conflitos entre índios e produtores rurais, e o fim da reeleição para cargos executivos.

Um dos pontos solicitados não foi acatado por Aécio – retirar de seu programa a proposta de redução da maioridade penal -, o que entendo ser um claro indício de que o PSDB pretende investir no discurso populista de segurança pública para angariar apoio junto à população de baixa renda, mantendo seu eleitorado na classe média tradicional, em explícito contraste ao programa de Marina, que fala de uma política de segurança pública pautada em direitos humanos e no policiamento comunitário. Veja o tom das propostas dela:

“Fortalecer as políticas preventivas municipais e o modelo do policiamento comunitário.

Promover nos municípios a avaliação da origem, da motivação e da cultura local; levantar as curvas de crescimento de homicídios e crimes; padronizar o policiamento comunitário com uma polícia bem treinada e equipada; integrar ações de prevenção com programas sociais.

Valorizar espaços participativos nas comunidades locais, como os Conselhos Comunitários de Segurança, e reconhecer as contribuições do profissional que atua “na ponta” na elaboração de diagnóstico e de planos de ação para combater a violência, tornando o policial um gestor da segurança pública local. (…)

Combater a repressão e a criminalização de movimentos sociais e populares, pela implantação de uma Política Pública Participativa de Inteligência Cidadã, Segurança Popular e Defesa Social.” (extraído do programa de Marina)

Na economia, Marina preconizou o retorno ao tripé macroeconômico, a reforma tributária (pautada na simplificação, na descentralização das receitas tributárias e incluindo a redução de impostos sobre a poupança, os investimentos e o faturamento das empresas, para evitar a má alocação de recursos pela distorção no sistema de preços, estimular o investimento e propiciar maior crescimento econômico), a autonomia assegurada em lei do Banco Central para perseguir a melhor política monetária dados os objetivos definidos para esta – no caso brasileiro, controle da inflação por meio do sistema de metas – sem pressões políticas na execução, e mesmo uma “atualização da legislação trabalhista”, que basicamente é uma atualização do Direito Coletivo do Trabalho: robustecer a autonomia e a liberdade sindicais para negociação coletiva, e a promoção de diálogos nacionais em fóruns tripartites (sindicatos trabalhistas, sindicatos patronais e governo), em um modelo mais próximo ao preconizado pela OIT, o que seria um ganho de liberdade em relação à estrutura sindical existente hoje no Brasil, pois desafiaria mais um canal do capitalismo de compadrio brasileiro, que são os sindicatos monopolistas – por conta da unicidade sindical – e com tendências governistas/pelegas.

Outro ponto em que Marina tentaria desafiar nosso capitalismo de compadrio brasileiro seria uma consequência de sua pauta ambientalista: a proposta de reforma tributária inclui “rigoroso fator de indução a investimentos em atividades de baixa emissão de carbono e de uso sustentável dos recursos naturais”, o que significa menos subsídio governamental às indústrias mais poluidoras (ao contrário do governo do PT, sempre disposto a ajudar as indústrias de carro do ABC) e a utilização de uma forma muito mais eficiente de tributação (impostos pigouvianos sobre externalidades negativas, como a poluição) do que a atual; e propostas de cunho desenvolvimentista-intervencionista em relação à Amazônia, principalmente aquelas pensadas sem consulta e compensação adequada aos povos indígenas e outras comunidades tradicionais que serão impactados ou desapropriados, como a hidrelétrica Belo Monte, não seriam aceitos. Eduardo Gianetti, em entrevista à Folha de São Paulo, esclareceu que este seria o caso:

Folha: Um eventual governo Marina não seria isso?

Gianetti: Não, seria desenvolvimento sustentável, com ênfase em capital humano e respeito ao patrimônio ambiental.

Folha: Como se equaciona para o empresariado esse desenvolver com sustentabilidade?

Gianetti: Para começo de conversa terminando com subsídios que são muito onerosos ambientalmente. Por exemplo, para o automóvel.

Folha: Então montadoras teriam uma vida dura num governo Marina?

Gianetti: Não é uma coisa a ser estimulada.

Folha: Belo Monte não teria sido construída num governo Marina?

Gianetti: Não teria sido aprovada. Belo Monte não se viabiliza nem [em] termos estritamente econômicos.

O programa de Marina também conta com uma crítica incisiva ao modelo corporativista preconizado pela presidente Dilma em relação ao BNDES:

“Acesso a recursos subsidiados pelo Tesouro Nacional, por meio dos bancos públicos, não pode ser o fator principal de sucesso das nossas empresas. Por isso, é necessário desenvolver o mercado de capitais e o mercado de crédito voluntário, porque acreditamos que são mecanismos fundamentais para a intermediação entre a poupança e os investimentos de longo prazo. (…)

A expansão do crédito corporativo concedido por bancos públicos teve caráter concentrador: alocou empréstimos subsidiados prioritariamente para grandes empresas, e para isso fez uso crescente de recursos fiscais. (…)

Resumidamente, alguns problemas do mercado de crédito atual devem ser resolvidos em nosso governo. São eles:

1) subsídios não transparentes ao crédito;

2) acesso discricionário para as grandes empresas a partir de bancos públicos;

3) custo do crédito muito elevado, especialmente para a população mais pobre.” (do programa de Marina)

Gianetti deixa isso ainda mais claro em entrevista ao Valor Econômico (transcrita aqui):

Valor: A indústria precisa se preparar para receber menos de um eventual governo Marina?

Giannetti: Acho que a indústria deve se preparar para uma operação desmame. Ela está acostumada a chorar e ser atendida. Ela vai ter que se acostumar a uma situação em que ela será vitoriosa se for bem na competição. E ela irá bem na competição de mercado se for eficiente e inovadora. Temos que sair da situação em que vale mais a pena para uma empresa ter uma boa rodada de negociação em Brasília para uma situação em que vale a pena para ela concentrar sua atenção e seus esforços em fazer melhor o que ela faz ou em fazer algo que ninguém está fazendo.

Valor: A indústria diz que para dentro da fábrica ela é competitiva. Que o problema é para fora, o juro alto, o câmbio, carga tributária…

Giannetti: O que vai precisar é integrar mais a economia brasileira, fazer uma nova rodada de abertura comercial, de mais integração competitiva, e dar para o empresário a confiança de que as regras são permanentes e não vão ser negociadas de maneira arbitrária na base da pressão setorial. Elas valem para todos, serão horizontais e visam ao aprimoramento do ambiente de negócios. No governo Dilma houve um retrocesso para um modelo de microgerenciamento, que gerou uma espiral intervencionista no Brasil.

Nos direitos civis, o programa de Marina também era muito mais interessante do que as propostas e realizações concretas de Dilma ou Aécio. A preocupação com as garantias dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, o apoio à aprovação da Lei João Nery (que assegura autodeterminação de gênero aos transexuais), o tratamento igualitário na adoção entre os casais heterossexuais e homossexuais, a garantia da união civil homossexual, a já citada política de segurança pública pautada em direitos humanos e no modelo de policiamento comunitário, e inclusive há a previsão de medidas específicas para enfrentar a exclusão dos negros, como na área da educação (“Fiscalizar a aplicação da lei que instituiu o ensino de história africana e afro-brasileira nas escola”)  e da segurança (“Promover a formação continuada de profissionais que atuam na Segurança Pública, levando em consideração as especificidades da população negra e o racismo nas abordagens”), tudo isso está lá.

Para finalizar, é importante destacar que alguns liberais manifestaram-se favoráveis à candidatura de Marina. Eduardo Gianetti, já citado acima, assessorou Marina nestas eleições e afirmou que ela faria um governo menos estatizante que o de Dilma. Ricardo Paes de Barros, que redigiu o capítulo social do programa de Marina em 2010, afirmou em 2013 que, caso convidado a fazê-lo em 2014, colaboraria novamente, justificando que “quem não aceitasse o convite da Marina teria que ser louco. Se for convidado para apoiá-la em algo… vou eternamente apoiar a Marina nas coisas que ela faz, mas não há nenhuma movimentação nesse sentido.”

II. O partido NOVO:

O Partido NOVO, tal como a Rede Sustentabilidade de Marina, ainda não conseguiu formalizar-se como partido, por isso, não participou das eleições deste ano. Mas já tem pedido de registro em aberto, e muito provavelmente participará já das eleições de 2016, para os cargos municipais.

Assim como o discurso da “nova política” da Rede Sustentabilidade de Marina e em consonância ao nome que ostenta, o NOVO quer trazer uma nova visão de como a política brasileira pode e deve ser.

Duas pautas importantes sobressaem em sua pretendida atuação política:

a) No campo da organização interna do partido, apenas admitem filiados e candidatos que preencham os pré requisitos da lei Ficha Limpa, vetam ao filiado eleito para cargo no Poder Legislativo que se candidate a mais de uma reeleição consecutiva para o mesmo cargo (objetivo = evitar o carreirismo político), vetam que a gestão partidária seja feita por candidato ou por ocupante de cargo eletivo, seus candidatos comprometem-se ao cumprimento do mandato parlamentar e devem vincular-se às suas propostas de campanha por meio de Compromisso de Gestão e do Compromisso de Atuação Legislativa prevendo metas a serem cumpridas, e não cobrará percentual de salário do mandatário, sendo a contribuição partidária mínima igual para filiados e candidatos eleitos.

b) No campo das propostas, acentuam a ideia de gestão eficiente do Estado e dos serviços públicos, com uma concepção meritocráticas sobre a estrutura do funcionalismo público, e reformas pró-mercado que garantam maior liberdade econômica e um ambiente jurídico mais propício à livre iniciativa e ao empreendedorismo (o termo “livre mercado” é usado explicitamente como sendo um dos valores do partido). Consta também algumas propostas mais vagas de “respeitamos uma hierarquia das normas e de um sistema institucional no qual todo e qualquer indivíduo é submetido ao direito e às leis de forma isonômica, sem privilégios” e “o NOVO defende a aplicação rápida e eficiente das penas”, que ainda não está claro o que significariam concretamente (ao menos fora dos círculos internos).

Portanto, resta clara a figura de um partido que pretende ser estruturado para prevenir ao máximo a participação de seus quadros em corrupção e na politicagem, e para avançar reformas pró-mercado e paradigmas de gestão eficiente nos serviços públicos. Sua extração social também já é bem nítida: não foi criado por políticos profissionais, mas por pessoas comuns da sociedade civil, principalmente profissionais liberais e outros membros das classes médias urbanas com alto nível de escolaridade. Seria um grupo diversificado, conforme João Dionísio Amoêdo, presidente do NOVO, que destaca que “a gente recebe cadastro do vigia noturno de Caicó, no Rio Grande do Norte. De taxista de Uberaba. De um médico, de um profissional do serviço público”. É um partido formado sem políticos profissionais.

partido novo composição profissional

(Extraído do site oficial)

Ainda que o partido não tenha nenhuma diretriz explícita que afaste defensores do conservadorismo político, Amoêdo afirma  que o partido pretende ser um porta-voz do liberalismo, em um tom mais pragmático e menos ideológico, em entrevista para o Spotniks:

JOEL PINHEIRO: Eu sou alguém que acompanha o Novo,  e às vezes essa dúvida até surge pra mim também, que é a questão do rótulo. Acho que todo mundo detesta os rótulos, mas eles acabam, de uma maneira ou de outra, existindo – e talvez até sendo necessários. Será que tem algum rótulo que se aplicaria ao Novo? Liberal? Conservador? Ou direita? Talvez esquerda?

JOÃO AMOEDO: Eu acho que da esquerda a gente tá bem distante. Direita é um termo bastante distorcido, acho que não abrange todos os princípios e valores do Novo. Eu acho que claramente o que ficaria mais próximo seria o liberal. Mas eu digo mais próximo porque certamente num primeiro momento – e a gente tem procurado sempre falar mais dos princípios e valores – não necessariamente a gente quer ficar refém unicamente e exclusivamente de uma ideologia, e ser obrigado a seguir todas elas. Porque a gente entende que pro projeto ter sucesso a gente precisa definir algumas prioridades. Então a gente não gostaria de ficar 100% amarrado num rótulo, mas se dissesse que tem um viés liberal, acho que seria o mais apropriado pra falar sobre o Novo.

Na mesma entrevista, entretanto, aponta para um admissão estratégica do fusionismo entre liberais e conservadores em torno da pauta prioritária da redução do Estado, adiando questões mais específicas e setoriais em prol das mais gerais:

JOEL PINHEIRO: Nessa campanha tem surgido muito, e acho que é um processo histórico, questões polêmicas, que dividem muito as pessoas – eu to pensando em questões como casamento gay, aborto, liberação ou não da maconha e outras drogas. O Novo irá trazer posicionamentos nessas áreas também?

JOÃO AMOEDO: Não. No primeiro momento a gente discutiu isso e nós dissemos o seguinte – olha pro projeto caminhar bem, a gente tem que ter prioridades. Nós entendemos que aborto, drogas, casamento entre pessoas do mesmo sexo, são assuntos importantes, mas não são prioritários na nossa agenda. Por que? Nós entendemos que essa mudança do tamanho do Estado, a redução da carga tributária, a maior devolução de poder ao indivíduo, privatização de empresas, conceito de maior liberdade, são bandeiras fundamentais que a gente deveria estar trabalhando prioritariamente nelas. E não deveríamos alocar esforços no primeiro momento, dado o tamanho desse problema que a gente entende, em outras bandeiras. E não gostaríamos também de ter uma divisão dentro do Novo no primeiro momento, de pessoas que tem a mesma ideia nossa quanto a esses temas principais, mas tem ideias diferentes sobre outros temas que nós consideramos, como volto a dizer, importantes, mas não tão prioritários. Então, no primeiro momento, se pessoas que tem esses mesmos conceitos quanto ao Novo, são muito bem vindas, independente se elas tem um posicionamento pró ou contra o aborto, pró ou contra drogas. Apesar de serem temas polêmicos, de ter tido uma discussão, nós queremos ter uma outra agenda que entendemos ser mais urgente para o país, que é a redução do tamanho do Estado com devolução de poder aos indivíduos. Por isso, inicialmente esses assuntos serão deixados para uma discussão posterior.

O fato é que várias pessoas que se declaram liberais ou libertários alinharam-se ou pretendem-se alinhar com o NOVO, e isso inclui lideranças dos institutos e grupos dentro do movimento já existente. Rodrigo Constantino, autodeclarado “liberal sem medo da polêmica” em seu blog e coluna na Revista Veja (em que pese o fato de ter guinado para o conservadorismo) e atual presidente do Instituto Liberal, palestrou na 1ª Conferência Nacional do NOVO e já destacou seu apoio pela nova legenda e que estava ajudando a criá-la. Bernardo Santoro, figura-chave do Instituto Liberal, já declarou que “O movimento liberal brasileiro está agora criando um partido de direita liberal (o Partido Novo) “, embora já tenha sido o presidente nacional de outra legenda mais radical, o Líber, que não tem expectativa de formalização ainda. Rodrigo Saraiva Marinho, que está à frente da Rede Libertária, que congrega grupos de estudo e institutos liberais regionais, também participa do NOVO no Ceará, e participou da 1ª Conferência Nacional. O Estudantes Pela Liberdade, que é um movimento estudantil apartidário de caráter liberal, tem como uma de suas lideranças Juliano Torres, que participou no processo de formalização do NOVO. Hélio Beltrão, do Instituto Mises Brasil, participou da 1ª Conferência Nacional (entretanto, desconheço se ele possui ligação formal).

Portanto, resta claro que o movimento liberal/libertário institucionalizado, na sua miríade de institutos e grupos de estudo, passará a ser afetado por uma nova configuração onde um partido político afirma explicitamente como um de seus valores o livre mercado. E isso poderá afetar o NOVO também em contrapartida, com o surgimento de uma ala interna composta por liberais que defendam pautas mais radicais dentro do liberalismo, como o fim da guerra às drogas.

III. O partido NOVO guinará à direita ou à esquerda em 2018? Ou: se aproximará mais de Marina ou do PSDB dentro da oposição?

Há muito é sabido que o “pecado original” do movimento liberal/libertário brasileiro é a tendência de adotar ideias conservadoras como se liberais fosse e/ou adotar um anti-esquerdismo que assume uma rejeição automática à qualquer proposta identificada como oriunda da esquerda, independentemente de uma reflexão mais aprofundada sobre se a proposta reflete ou não princípios liberais.

Iniciativas como este site surgiram justamente para opor-se a este status quo ideológico, que inclusive tem ganhando maior autoconsciência por meio de rótulos como “right-libertarian” e “liberal-conservador” (ainda que não restrito às pessoas que se autodenominam dessa forma). Isso inclusive levou à disseminação do termo “left-libertarian” ou “left-lib” usado para identificar (e, em geral, para acusar/atacar) qualquer pessoa que seja “oposição” a esse status quo, ao invés de designar uma corrente norte-americana com seus próprios contornos ideológicos, representada pelo C4SS principalmente.

Isso tem uma implicação direta: a auto-identificação de muitos liberais com a direita brasileira. O grau dessa identificação varia entre as pessoas, mas tem consequências muito evidentes.

Uma delas é no âmbito político-partidário, com uma rejeição demasiado automática aos partidos de esquerda, em especial o PT. Nisso, é esquecido que o liberalismo pode vir sim de partidos de esquerda, e que mesmo o governo Lula fez uma importante reforma liberal no âmbito da política social.

Não estou dizendo que não devemos criticar os partidos de esquerda brasileiros, mas sim que, no campo da política partidária, os liberais não precisam alinhar seu voto e/ou sua candidatura necessariamente com a direita. Neste caso, entenda-se direita e esquerda principalmente a partir do recorte de pautas que se utiliza para atrair certas porções do eleitorado, puxando ou para um lado mais progressista ou para um lado mais conservador.

Nesse sentido, as propostas não precisam ficar restritas àquelas que agradam um eleitorado direitista, e defendo que o melhor que um mandatário liberal tem a fazer é focar-se na redução dos danos gerados pelo próprio Estado prioritariamente entre aqueles que mais sofrem isso, que são os mais pobres e as minorias. (Veja algumas propostas)

Nas eleições deste ano, surgiram alguns candidatos identificados como liberais ou libertários, destacando-se Paulo Batista, Marcel van Hattem, Rodrigo Mezzomo, Paulo Eduardo Martins, Adolfo Sachsida e Evandro Sinotti. Mas a auto-identificação com a direita pesou: alguns desses candidatos são conservadores ao invés de liberais propriamente, outros adotaram um discurso voltado para o liberalismo econômico exclusivamente, buscando o “fusionismo” entre liberais e conservadores como um bloco unitário. Nenhum deles chega próximo do rol de propostas que elenquei. Além disso, no 2º turno, alguns deles fizeram campanha para Aécio, e parte do eleitorado auto-identificado como liberal também fez uma entusiasmada campanha.

Deixe-me apontar brevemente algumas evidências do que acabo de comentar, citando alguns desses candidatos:

a) Paulo Batista, certamente o mais famoso desse rol, tinha 7 propostas: privatização da USP, Unicamp e Unesp; extinção da bolsa crack; metas para a PM e poder de polícia para as GCM; abolição do ICMS sobre medicamentos; privatização de todas as linhas do metrô; redução dos impostos sobre materiais de construção; revogação da lei de substituição tributária. Ou seja: duas propostas referentes à privatização, três propostas referentes à diminuição de tributos, uma proposta sobre segurança pública e  uma proposta referente à extinção de um programa social.

Ainda que louvável que as propostas de diminuição de tributos tenham se focado em áreas que dizem respeito à saúde e à habitação, está ausente do discurso qualquer consideração a respeito de direitos civis. A menção do fortalecimento das polícias não perpassa por um questionamento dos problemas de direitos humanos da polícia militar paulista, e a proposta de abolição do programa Braços Abertos, que incluía sua substituição por uma política de tolerância zero com usuários e por uma política habitacional e fiscal promovendo a ocupação de terrenos na chamada “cracolândia” e a saída dos usuários e das prostitutas  (veja aqui e aqui), era uma clara pauta conservadora, visando substituir uma política menos repressiva de redução de danos em matéria de drogas por uma política mais repressiva de guerra às drogas. Felizmente, tal proposta foi abandonada pelo próprio candidato ao longo da campanha, que mesmo declarou ser favorável à legalização.

b) Marcel van Hattem tinha 8 propostas: redução de impostos e simplificação tributária; segurança pública como prioridade, garantindo a paz do cidadão e a punição de criminosos e infratores; educação de qualidade, sem doutrinação, valorizando o bom professor; defesa da democracia, do Estado de Direito e da separação de poderes; mais eficiência, menos burocracia e melhor qualidade na prestação de serviços públicos; fim da interferência indevida do governo na vida das pessoas; mais autonomia para os municípios; engajamento com a sociedade civil.

Esse programa de fato parece bastante com o do NOVO, com ênfase na redução do Estado na economia e gestão eficiente de serviços públicos, no framework da democracia liberal e acenando em prol do federalismo. Entretanto, algumas pautas direcionam-se mais para o lado conservador, da maneira que estão colocadas: nenhuma problematização dos problemas de direitos humanos no modelo de polícia militar atual; o discurso da meritocracia e da ausência de doutrinação na escola é uma sinalização em parte atrelada à ideia de gestão eficiente dos serviços públicos, mas em parte atrelada ao anti-esquerdismo; a pauta do “fim da interferência indevida na vida das pessoas” é vaga, citando como exemplo  “Governo nenhum tem autoridade para dizer como pais e mães devem educar seus filhos”, o que responde ao eleitorado preocupado com a família tradicional.

c) Rodrigo Mezzomo, em seu canal no youtube, comentou sobre vários temas, e não será possível destacá-los todos, mas chegou a defender o fim do bolsa-família e a redução da maioridade penal, que acenam para o eleitorado mais conservador. Em um dos vídeos, colocou todos os candidatos identificados como liberais dentro da “nova direita“. Em outro, elogia entusiasticamente o Partido NOVO como “a casa de liberais e conservadores,  da nova direita brasileira”. Foi entrevistado pela Confraria Liberal-Conservadora de Niterói . Rodrigo Constantino e Bernardo Santoro declararam voto nele.

d) A página de Paulo Batista no facebook criou o evento “Ou a Dilma cai ou São Paulo para“, após a derrota de Aécio nas eleições, e publicou vídeo na sua página com Bolsonaro, pai e filho, e na legenda consta “A família Bolsomito estará lá conosco.” Claro aceno aos setores mais reacionários de nossa política.

Você pode estar se perguntando: por que falar destes candidatos destas eleições? Porque eles nos ajudam a ver algumas tendências. E é bem claro que todos estes candidatos associavam-se com a direita, ou buscavam o eleitorado de direita, e assim por diante.

O partido NOVO terá de fazer escolhas de coligação e de apoio, e isso já desde 2016. Mas a campanha de 2018 será decisiva na consolidação destas alianças com os setores já existentes da política brasileira. Dado o status quo do movimento liberal/libertário e as propostas/atuações dos candidatos identificados como liberais nestas eleições de 2014, é de se esperar uma tendência para alinhar-se na oposição ao PT mais à direita, aproximando-se do PSDB.

Rodrigo Constantino, por exemplo, afirmou que Aécio apresentou o discurso de um liberal pragmático durante sua apresentação no Fórum da Liberdade este ano (e o fato de Aécio ter palestrado em evento que está associado com liberalismo é bastante revelador também).

Bernardo Santoro defendeu que o NOVO poderia alinhar-se, como uma “linha auxiliar propositiva”, com o governo caso Aécio tivesse ganho a eleição deste ano, ainda que seja necessário um esforço de diferenciação que demarque as diferenças entre NOVO e PSDB claramente:

“Em um cenário político em que o Presidente é o liberal e é o novo no inconsciente político popular, qual o espaço para o Partido Novo? Eu só vejo duas saídas.

A primeira saída é a radicalização completa do discurso, aproximando-se de um libertarianismo radical, para fazer um visível corte entre Novo e PSDB. O problema dessa escolha é que afasta o eleitor médio e até o filiado médio do partido, condenando o partido, já em curto prazo, a um papel secundário na política nacional. Além disso, não parece ser a vontade dos dirigentes do partido, que inclusive evitam o uso do termo “liberal”.

A segunda saída, facilitada pela fusão “PSDB-DEM” que ocorrerá em caso de vitória do Aécio, é trabalhar como uma linha auxiliar propositiva do futuro governo, focando na eleição de legisladores e participando marginalmente dos governos, implementando nas pastas assumidas sua visão liberal de mundo paulatinamente, método esse utilizado com sucesso pelo PCdoB junto ao PT ao longo dos últimos 25 anos. Esse método, contudo, também relega o partido a um papel secundário em médio prazo. (…)

No âmbito político, um paradoxo deverá ser superado, de forma que o movimento liberal precisará se mostrar diferente do PSDB à direita sem querer radicalizar e sem a mesma força política do partido do governo. ”

O Instituto Liberal de São Paulo, grupo ligado à Rede Libertária, recomendou voto em Aécio, justificando que o PSDB é “um partido que muitas vezes não ajuda, mas também não atrapalha tanto a atividade empreendedora, especialmente em comparação com o governo federal controlado pelo PT”, dado o exemplo do estado de São Paulo, no qual haveria “diversas amostras de um estado que deixa a iniciativa privada atuar de forma um pouco mais livre do que o padrão brasileiro”.

Quanto ao partido NOVO propriamente, João Amôedo (presidente do NOVO) afirmou, em entrevista ao Spotniks, que se alinhava mais com Aécio nestas eleições, como posição pessoal, não do partido:

JOEL PINHEIRO: E quanto às eleições de agora, 2014, o Novo apoia algum dos candidatos? Ele se alinha mais a algum tipo de visão ou de partido?

JOÃO AMOEDO: A gente não tem nenhum posicionamento formal. A gente não fez nenhuma discussão maior no Novo, até porque a gente ainda tá tendo filiados. Claramente – e isso a gente pode dizer com toda certeza – nós somos contrários ao modelo que nós temos hoje em vigor. Então a gente é favorável a uma mudança. Nenhum dos principais candidatos hoje se aproximam muito dos ideias do Novo. A gente volta a ver que a discussão está na gestão. Então nenhum deles se aproxima muito disso. Não há uma grande identidade. Eu particularmente já falei isso, tenho dito como pessoa física, pela equipe que está montando e pelo histórico, me aproximo mais da candidatura do Aécio. Mas isso não é um voto do Novo, é uma coisa pessoal. E a gente viu o Pastor Everaldo com algumas linhas na parte da livre iniciativa que é um princípio maior do Novo. Ideologicamente, talvez ele que se aproximasse mais, sendo que tem outras bandeiras que ele defende que não são necessariamente bandeiras do Novo no momento. Dos principais, há pouca identidade de mudança do Estado.

Em que pese esta tendência, o futuro ainda está em aberto. O partido NOVO não é obrigado a posicionar-se na “direita” dentro da oposição, alinhando-se com o PSDB nas eleições presidenciais. Sua opção pela “esquerda”, alinhando-se com Marina e a Rede Sustentabilidade (considerando o programa da maneira que hoje está posto), seria muito mais consistente com a proposta de apresentar o liberalismo dentro da política partidária, pois abarcaria um desafio real à estrutura vigente de capitalismo de compadrio acompanhado por uma ênfase progressista em direitos civis.

Muitas coisas podem mudar até 2018. Talvez as condições que me permitiram concluir pela correção do alinhamento/apoio à Marina mudem. Mas, caso essas condições continuem, entendo que o liberalismo moderado na política partidária, que o NOVO pretende representar, seria mais consistente alinhando-se com Marina, na esquerda dentro da oposição ao PT.

No Brasil, já passou o tempo dos liberais romperem com a direita e voltarem às suas raízes históricas.

junior

Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.

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