Por Beatriz Martins
O iOS 8 foi lançado na semana passada, mas muitas de suas melhorias com relação ao iOS 7 já haviam sido divulgadas em blogs de tecnologia e deixado os usuários ansiosos para instalá-lo. Dentre as novas funções, estão o envio de mensagens de áudio pelo iMessage, quick reply (habilidade de responder mensagens diretamente da central de notificações sem precisar acessar o aplicativo), a capacidade de trancar com senha alguns aplicativos nativos, entre outras. Todas estas funções já estavam disponíveis no Cydia, loja alternativa à App Store acessível a usuários que tenham realizado jailbreak em seus aparelhos, há muito tempo.
Jailbreak é o processo pelo qual o dispositivo, antes vinculado exclusivamente ao uso de aplicativos vendidos pela própria Apple, passa a suportar o download de produtos de terceiros, e os sites que os disponibilizam são chamados de repositórios. Estes produtos podem ser aplicativos, tweaks (pequenas alterações no sistema que permitem a customização do funcionamento do aparelho) ou temas (alterações estéticas no iOS).
É interessante observar o efeito da concorrência que pequenos desenvolvedores oferecem à Apple e o quanto ela beneficia os consumidores, não apenas aos jailbreakers, mas também aos que utilizam o iOS em sua forma original. Ano após ano, a Apple tenta combater o desenvolvimento de aplicativos alternativos, apontando os riscos que o jailbreak pode oferecer e a grande violação de direitos autorais sobre aplicativos pagos na App Store, de modo que uma boa quantidade de usuários tem medo de desbloquear seus aparelhos. Nas duas últimas versões, entretanto, a empresa parece ter mudado um pouco sua estratégia, já que a guerra estava sendo perdida: prestando atenção aos tweaks mais populares entre aparelhos com jailbreak, passou a incluí-los entre suas funções nativas, como foi o caso do Control Center no iOS 7 e será o de todas as novas funções já citadas no iOS 8. Um método que tem se revelado muito mais efetivo do que o usado anteriormente.
A segurança do sistema operacional também deu um salto de qualidade graças a equipes como o evad3rs, que se dedicam a encontrar pequenas falhas através das quais pode ser realizado o jailbreak. Quando estas falhas são encontradas, elas são corrigidas o mais rápido possível pelos desenvolvedores do iOS, mas custaria muito à Apple identificá-las, e, caso permanecessem desconhecidas, elas poderiam facilmente ser utilizadas por hackers mal-intencionados.
O jailbreak pode ser observado como um pequeno experimento real de livre mercado. Poucas plataformas são tão parecidas com o ideal dos libertários quanto o Cydia. A loja alternativa recebe aplicativos, tweaks e temas desenvolvidos por qualquer pessoa sem qualquer restrição. Repositórios que tenham histórico de problemas (judiciais ou operacionais) têm um aviso deste histórico divulgado antes que o usuário baixe algo, mas ele ainda tem total escolha de utilizá-lo ou não. O valor dos aplicativos pagos é o valor real do produto, ou se aproxima muito dele, já que a única coisa que influi sobre ele é a demanda. A concorrência é acirradíssima.
A Apple analogamente detém a posição que o Estado deveria ocupar num mercado livre, ou num mercado o mais livre possível que ainda tenha a presença de um Estado. Joel Pinheiro diz em seu texto sobre liberalização e privatização:
Quatro combinações [econômicas] são possíveis. A péssima: empresa estatal, setor restrito. A ótima: empresas privadas, setor livre. E duas intermediárias: empresa privada com setor restrito, e empresa estatal com setor livre. Se for para escolher uma dessas intermediárias, prefiro a última.
Desregulamentação sem privatização raramente é tentada ou proposta. De fato, desregulamentação é das bandeiras mais difíceis de emplacar, uma vez que tira poder de órgãos e engrenagens sem gerar dinheiro ao estado.
Em seu texto, Pinheiro defende que a liberalização do setor sujeitará o serviço estatal (de saúde, educação, transporte…) à concorrência dos serviços oferecidos por empresas privadas e que, com o tempo, o estatal será extinto por puro desuso. Há também outros modelos a serem seguidos. Em Helsinque, na Finlândia, objetivando reduções nas taxas de poluição, o Estado pretende tornar seu sistema de transporte coletivo tão bom que os cidadãos deixarão de utilizar automóveis até 2025 – uma maneira muito mais eficiente e leal de atingir estes objetivos, contrastando com as milhares de leis ambientais que regulam o mercado automotivo no Brasil.
Neste exemplo, o próprio setor público passa a se comportar como uma empresa privada, que não precisa ser subsidiada coercitivamente, e a aperfeiçoar seus serviços de maneira a vencer a concorrência quando for vantajoso, sem praticar preços artificialmente baixos nem deter reservas de mercado. Esse último caminho é muito próximo da situação App Store x Cydia. A Apple não tem controle sobre o mercado paralelo gerado pelo jailbreak, e o máximo que ela pode fazer para que menos usuários tentem desbloquear seus aparelhos é melhorar seus serviços.
Em ambos os arranjos, a concorrência é benéfica não só do ponto de vista do consumidor – como já demonstrado no exemplo dos jailbreakers, dada a grande variedade de serviços e produtos disponíveis e a constante melhora destes – mas também dos microempresários, que dificilmente seriam capazes de concorrer com grandes empresas estatais ou privadas, mas que dentro de um mercado livre o fazem – como já ocorre com os desenvolvedores de tweaks, que raramente fazem parte de grandes empresas, mas levam milhões de usuários a trocarem a segurança de um iOS em suas configurações originais por um desbloqueado.
Embora a substituição de serviços públicos por serviços privados através de privatizações seja uma bandeira defendida com uma frequência exaustiva nos meios liberais, esse não é o único e nem mesmo o melhor caminho para realizá-la, já que o arranjo empresa privada/setor restrito não é muito mais promissor do que o anterior, com a estatal. A abertura à concorrência não necessariamente implica na extinção do setor público e, como visto, pode até contribuir para melhorá-lo. Já passou da hora da legislação brasileira se preparar para permitir um grande jailbreak.
Beatriz Martins é estudante e militante feminista em formação. Tem interesse em praticamente tudo, desde política até os alfinetes da camiseta da Joan Jett (principalmente os alfinetes da Joan Jett). Se não está discutindo alguma coisa relacionada a libertarianismo, feminismo interseccional ou se esforçando (em vão) para ser vegetariana, provavelmente está assistindo a algum filme e procurando os erros de continuidade.