Por Valdenor Júnior
Eu acredito na liberdade. Mas a justiça exige, não só liberdade individual, como justiça social. Ambos os conceitos são umbilicalmente ligados: justiça social é a qualidade das instituições legais de uma sociedade de serem aceitáveis para todos, uma vez que benéficas a todos, inclusive aos menos favorecidos. Logo, o consentimento de cada um às instituições socialmente justas e pró-autonomia e a expansão da liberdade positiva sob estas instituições é como liberdade individual implica justiça social.
Mas qualquer movimento que defende liberdade individual corre o risco de não debater adequadamente sua irmã, a justiça social. Isso pode ocorrer por vários motivos, mas quero chamar atenção para um deles: a extração social.
Um problema muita vezes discutido nos Estados Unidos em torno de seu movimento é o de ter uma extração social composta, na média, por homens brancos heterossexuais de classe média. No Brasil, fazendo-se os devidos ajustes à realidade racial/étnica nacional (onde “branco” não necessariamente é tão caucasiano assim), também a extração social é, na média, a de homens brancos heterossexuais de classe média.
Isso gera um problema óbvio: se esta liberdade assim defendida é apenas atrativa para aqueles que já são mais privilegiados na atual situação social e econômica, então qual é a credibilidade que essa defesa da liberdade terá para os desprivilegiados e injustiçados pelo status quo?
Mas a liberdade é e sempre será libertadora, sua posse era o desejo de todos os desprivilegiados e injustiçados da história, como bem relata Molinari em sua Carta aos Socialistas. O problema não está na liberdade, mas em uma defesa limitada dela, uma vez que feita da perspectiva das limitações da liberdade e temas que afetam pessoas relativamente privilegiadas no cenário atual. E isso se retroalimenta: quanto mais a seleção de temas e causas disser respeito às demandas vinculadas a essa extração social, menos pessoas fora dessa extração encontram a liberdade atrativa, o que reforça essa extração social que leva à perspectiva mais limitada.
A solução para sair desse círculo vicioso é ampliar o escopo de preocupações para além daquelas que afetam diretamente pessoas que fazem parte dessa extração social típica (homens brancos heterossexuais de classe média). Apenas assim é possível ganhar uma relevância maior para pessoas cuja extração social é completamente diferente, e muito mais desprivilegiada.
Devemos retomar o espírito de Henry David Thoureau, quando ele disse acerca dos Estados Unidos de sua época:
“Diante de um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é a prisão inevitavelmente. (…) Aí é que devem ser encontrados quando forem procurados pelos escravos fugitivos, pelo prisioneiro mexicano em liberdade condicional e pelos indígenas, para ouvir as denúncias sobre as humilhações impostas a seus povos, é aí, nesse chão discriminado, porém tão mais livre e honroso, onde o Estado detém os que não estão com ele mas sim contra ele – a única casa num Estado-senzala em que um homem livre pode perseverar com honra.” (trecho de Da Desobediência Civil)
Da mesma forma, no Brasil de hoje, o foco deve ser a redução de danos provocados pelo Estado justamente onde a vulnerabilidade às injustiças estatais é maior. A consequência disso é tratar mais imediatamente e com mais urgência de uma extração social bem diferente: a de desprivilegiados sociais e econômicos.
Para reparar injustiças nesse contexto, a condição destas pessoas não pode ser avaliada apenas em uma dimensão legal, mas também social em um sentido abrangente. Como diria Cory Massimino, “nossos fundamentos também justificam a oposição à repressão cultural, à intolerância social e a relacionamentos autoritários, além do apoio ao feminismo, à liberação gay e trans, ao anti-racismo e ao fortalecimento dos trabalhadores”, e não podemos esquivar de desafiar, além da agressão legalizada, a opressão social também.
Por isso, questões específicas de gênero e raça não precisam ser postergadas em favor de questões mais gerais de economia e política, por exemplo; e os ativistas “podem definir por si mesmos o que é importante para as comunidades de que são parte e com que trabalham, podem decidir como as pautas libertárias se relacionam especificamente a si mesmos” (Kevin Carson) em diferentes horizontes de atuação. No caso brasileiro, o surgimento de “coletivos liberais”, como o Nabuco e o Sociedade Aberta, é muito bem-vindo nesse sentido.
Em resumo, a regra é clara: opção preferencial pelos pobres e pelas minorias, o que significa trazer mais liberdade prioritariamente àqueles que menos podem desfrutar dela atualmente, ou cujos danos sofridos pelo cerceamento da liberdade são maiores. Apenas assim a defesa da liberdade será relevante para desprivilegiados e injustiçados, e compatível com os postulados da justiça social.
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e para o site brasileiro Liberzone, e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.