Por Mano Ferreira
A liberdade é um fim em si mesma ou um meio para outra coisa? A pergunta é de uma amiga, grande ativista da liberdade, no dia em que nos conhecemos. Vivíamos a fase inicial da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Naquele encontro, na casa de um outro amigo, fiz uma espécie de introdução do movimento liberal pra ela, que depois acabou se tornando uma expressiva liderança. À questão, respondi que, no fim, a única coisa que realmente importa nessa vida são as pessoas. Pessoas existem concretamente. O resto é criação nossa.
Disso decorre que a liberdade, do ponto de vista social, é necessariamente um meio – ou, talvez, um ponto de partida. O fim é o desenvolvimento das pessoas, as emancipações individuais, o florescer das potencialidades, habilidades e, sobretudo, individualidades. Esse é o ponto central do liberalismo: propiciar que as pessoas, livres, sejam o máximo de si mesmas.
Todo o arcabouço teórico vindouro decorre dessa preocupação. Quando nos esquecemos disso, a abstração teórica pode ser ressignificada e transformada em sua essência. É um pouco do que acontece na economia quando o apego às equações supera a vontade de entender a ação humana. Da mesma forma, as conclusões das teses liberais são passíveis de instrumentalizar diversos outros fins, alguns bastante distantes da liberdade das pessoas.
(Isso parece ainda mais claro ao tempo em que conservadores e reacionários sequestram parcelas de nosso discurso, fenômeno que foi tratado com toda ênfase pelo colega Valdenor Júnior.)
Como afirma o estupendo ensaio de Jeffrey Tucker Contra o brutalismo libertário:
a liberdade [formal] permite tanto a perspectiva humanitária quanto a brutalista, embora isso possa parecer implausível. A liberdade [formal] é ampla e expansiva, não afirma quaisquer fins sociais em particular como únicos e verdadeiros. Dentro da estrutura da liberdade [formal], existe a liberdade de amar e de odiar.
Fiz questão de adicionar uma palavra, sempre destacada em parênteses, ao trecho sensacional do Jeff: formal, pra mim, remete a uma das dimensões da filosofia da liberdade – aquela que se refere ao papel da lei (estatal ou não), que regulamenta a legitimidade da iniciação da força.
Sem dúvidas, esse traço é fundante para uma ordem social livre – o que não significa que o liberalismo clássico tenha se restringido a isso algum dia. Mesmo assim, atualmente uma expressiva parcela do movimento liberal resume suas preocupações na formulação do principio da não agressão: é a ideia de que nenhum ser humano pode iniciar agressão (no sentido de violação da propriedade humana, que se constitui no tripé vida, liberdade e patrimônio) contra um não-agressor. Esse ponto diz respeito à liberdade negativa, no sentido proposto por Isaiah Berlin em seu clássico Two Concepts of Liberty.
Ocorre que, sendo nosso objetivo a criação de um ambiente propício para que as pessoas sejam o máximo de si mesmas, a insuficiência da não-violência é ainda retumbante. A liberdade negativa não basta.
Há uma outra dimensão da filosofia da liberdade, para além do aspecto formal, a que chamarei aqui de dimensão propositiva.
Vejamos: a dimensão formal aborda a não-violência, ou seja, a necessidade de demolir as barreiras impositivas que bloqueiam a liberdade das pessoas – de um modo geral, numa perspectiva macro, falamos da diminuição do estado coercitivo ou do autoritarismo. Enquanto isso, a dimensão propositiva aborda a construção das teias de cooperação social, o mercado liberto – ou seja, os ductos sociais que amplificam a diversidade de propostas e multiplicam as possibilidades de existência para todas as pessoas – de um modo geral, numa perspectiva macro, falamos do aumento da sociedade voluntarista. Voltando ao sentido proposto por Berlin, agora tratamos da liberdade positiva.
Aqui é válido fazermos um adendo: inicialmente Berlin abordava a defesa da liberdade positiva aglutinada ao dever positivo, ou seja, a imposição sobre os outros da obrigatoriedade de prover as condições objetivas para a concretização daquela liberdade positiva específica. É o modus operandi de diversas correntes de pensamento que falam sobre liberdade com um viés estatista – e Berlin tratou dos sérios problemas advindos dessa concepção. De modo diverso, cremos que o liberalismo precisa conciliar a defesa da liberdade positiva com a liberdade negativa. Ou seja, nos referimos à construção voluntária – e portanto não obrigatória – das condições objetivas para a concretização das liberdades positivas. Nesse sentido, a postura liberal não deve se isentar da responsabilidade de construção de redes de cooperação voluntária em prol da liberdade alheia, mesmo que isso signifique não impor essa condição aos demais.
Assim, em resumo, podemos dizer que o pressuposto básico do liberalismo é a propriedade humana. A sua dimensão formal é constituída, de modo geral, pelo princípio da não agressão. E a minha tese – finalmente chegamos nela – é que, para a dimensão propositiva, devemos constituir o princípio da não opressão.
Assim como a não agressão remete ao pressuposto básico da propriedade humana, instituindo como inaceitáveis as violações materiais objetivas a vida, liberdade e patrimônio; a não opressão volta-se igualmente ao pressuposto da propriedade humana, só que no âmbito da relação social mais sutil, que está na esfera da linguagem, da simbologia e do discurso. Importante pontuar que linguagem, simbologia e discurso possuem papel expressivo na formatação das narrativas sociais, na constituição do imaginário e no apontamento das possibilidades aos indivíduos.
Diante de toda essa perspectiva chegamos à pergunta fundamental: o que é opressão? Vamos tentar conceituar: Opressão é a negação da condição de sujeito, em suas variadas formas. É a desumanização do ser humano, o fechamento das possibilidades, a desconsideração das características próprias à condição humana.
Mas o que seria, então, a condição de sujeito? Sujeito é o ser agente, capaz de interferir voluntariamente na realidade, e que possui uma identidade. Por sua vez, a identidade se constitui de modo complexo e diverso, pela justaposição de diversas coletividades que são mediadas e gerenciadas pelo próprio sujeito. Escrevi a esse respeito no ensaio sobre pós-individualismo.
A negação da condição de sujeito ocorre quando sua possibilidade de agir ou sua complexidade identitária são negadas sem a voluntariedade do sujeito em questão, gerando uma objetificação da pessoa.
Atenção para o detalhe: nem toda objetificação configura necessariamente uma opressão, dado que é perfeitamente possível objetificar-se voluntariamente (o que é muito comum em relações sexuais, por exemplo). Quando um agir com um Outro demanda um pressuposto da permissão alheia é porque há uma evidente consideração da condição de sujeito. Agora, se há uma indiferença quanto a essa permissão é porque a condição de sujeito está sendo negada com uma clara objetificação não-voluntária e, portanto, opressiva.
Este é um arcabouço frequente em nossa sociedade e está bastante associado ao que a tradição liberal acostumou-se a chamar de coletivismo – conceito que muitos “liberais” não compreendem. Coletivismo é o equívoco de reduzir a complexidade da condição de sujeito a uma única coletividade dentre as múltiplas que compõem sua identidade. Como já escrevi em outra oportunidade:
É a mentalidade nazista que homogeneiza e apaga o [sujeito] judeu; a racista que homogeneiza e apaga o [sujeito] negro; a homofóbica que homogeneiza e apaga o [sujeito] homossexual.
Em todos esses casos, o apego a uma única coletividade nega a condição de sujeito ao ser oprimido em questão. Mas há diversas outras formas, distintas, que também podem configurar uma opressão. Imagine o exemplo, bastante comum, de um pai que, diante de suas fortes expectativas quanto ao futuro profissional de sua prole, reduz as possibilidades de seu filho, jovem ou adolescente, obrigando-o a seguir uma trajetória qualquer de estudos. Trata-se de uma negação da condição de sujeito capaz de interferir voluntariamente na realidade e construir o seu próprio destino. É um ataque frontal à liberdade – e nada mais coerente que o movimento (e o discurso) liberal também comece a se ocupar dessas questões.
Antes que os apressados me atirem pedras, acusando-me de clamar por uma interferência na vida íntima das pessoas, reitero o ponto: a defesa da não opressão, numa perspectiva liberal, não reduz a preocupação com o consagrado princípio da não agressão e com o ceticismo quanto à eficiência e legitimidade do Estado no trato desses problemas.
A construção de um princípio liberal da não opressão, como toda a boa tradição do liberalismo, deve ter como norte o aumento da liberdade humana. Desse modo, creio que será através das redes de cooperação voluntária e do empoderamento social do oprimido que construiremos as bases mais legítimas e eficientes de combate à opressão. Nesse processo, é necessário um aprofundamento sobre os mecanismos da opressão e suas possibilidades de desmonte – missão na qual devemos reconhecer a importância de autores com outras perspectivas epistemológicas, compreendê-los e ressignificá-los.
Como dizia Simone de Beavouir, “quando se respeita alguém não queremos forçar a sua alma sem o seu consentimento”. E assim, conciliando as contradições dos anseios sociais, a liberdade de um indivíduo deverá sempre somar-se à do Outro.
Como nos acostumamos a dizer, uma ação que agride o PNA (princípio da não agressão) deve ser rejeitada pelos liberais e está passível de uma reação proporcional de legítima defesa. Na minha visão, qualquer ação que agrida o PNO (princípio da não opressão) deve ser igualmente rejeitada pelos liberais – e, seguindo o senso de proporcionalidade, transformar-se em alvo de severo boicote social.
– E aí, feriu o PNO?