Por Kevin Vallier
Tradução por Pedro Galvão de França Pupo, texto original aqui.
Na minha última postagem sobre Piketty, eu expliquei os argumentos 2A e 2P – respectivamente, que o capitalismo patrimonial gera desigualdades injustificadas e que um imposto global sobre capital vai conter essas desigualdades de uma maneira justa e eficiente comparado com várias alternativas. Reproduzido:
2A. Desigualdades Injustas: r > g e o capitalismo patrimonial geram desigualdades de renda que não podem ser justificadas em bases igualitárias e/ou meritocráticas, já que essas inequalidades não ajudam a “utilidade comum”.
2P. Corrigindo Desigualdades Injustas: Um imposto global progressivo sobre capital vai reduzir desigualdades de riqueza injustas de uma maneira eficiente, comparado com as alternativas socialistas e protecionistas.
Eu acho que os dois argumentos fracassam.
I. Contra 2A – Um Dilema: Populista ou Rawlsiano?
Para começar a minha crítica ao argumento 2A, lembre-se que no princípio mestre de Piketty, onde desigualdades só são justificadas quando elas promovem a utilidade comum, “utilidade” se resume a algo como o Princípio da Diferença com uma base deontológica em vez de utilitária. Piketty deveria ter sido muito mais claro sobre isso. Mas o problema maior é que o modo como ele apresenta seus argumentos o coloca em um dilema.
A justificativa de Piketty para seu princípio distributivo parece ser que o princípio é implícito em muitas de nossas práticas políticas e documentos políticos. Então seu princípio da utilidade comum é amplamente aceito, pelo menos implicitamente, por muitos membros do público. Mas se o seu princípio distributivo é muito próximo ao Princípio da Diferença, essa é uma afirmação implausível, já que o Princípio da Diferença quase certamente não está implícito em nossas práticas políticas e documentos políticos comuns. Então ou Piketty tem problemas ao firmar seu princípio distributivo em uma base amplamente aceita, ou ele precisa desistir do tipo de especificidade que acrescentaria força normativa a seus modelos empíricos e teóricos.
Minha principal afirmação nesse argumento é que o Princípio da Diferença e seus parentes próximos não estão implícitos nas nossas práticas públicas.
Argumento 1 para essa posição: O próprio Piketty reconhece que a ideia não era a que os elaboradores da Declaração dos Direitos do Homem tinham em mente quando falaram de utilidade comum. Em vez disso, ele argumenta que de algum jeito nós podemos extrair essa ideia da Declaração mesmo assim. Mas como? E com quais argumentos? Não recebemos muita ajuda.
Argumento 2 para essa posição: o Princípio da Diferença frequentemente tem suas raízes em um raciocínio maximin, que é ridiculamente avesso aos riscos, e não é razoável pensar que todas as pessoas defendem um grau tão alto de aversão oa risco.
Argumento 3 (uma generalização do 2): existe muita discordância razoável sobre justiça distributiva para pensar que qualquer princípio igualitário suficiente para nos dar as conclusões de Piketty está implícito na nossa cultura e documentos políticos. É importante notar que o próprio Rawls admitiu que pessoas razoáveis poderiam rejeitar o Princípio da Diferença (Liberalismo Político, p. XLVII) e em seu lugar aceitar como substituto “um princípio para melhorar o bem-estar social sujeito à uma restrição garantindo para todos um nível suficiente de meios gerais adequados.” Esse segundo princípio, que Rawls admite ser razoável, afirma somente que desigualdades devem melhorar o bem-estar e garantir os bens primários necessários para os mais desfavorecidos. Piketty não consegue extrair suas conclusões distributivas desse princípio (veja três parágrafos para baixo).
Então eu acho que Piketty precisa escolher: ou adotar um princípio distributivo controverso e profundamente polêmico ou desistir da sua condenação igualitária da desigualdade de renda. A menos que alguém consiga argumentar com sucesso que o Princípio da Diferença está implícito na nossa prática e documentos políticos, Piketty precisa escolher, considerando as bases que ele gostaria de ter para sua concepção de justiça distributiva.
É possível responder que nós podemos ter uma versão mais fraca da condenação de Piketty à desigualdade crescente de renda sem um princípio igualitário forte de justiça distributiva. Por exemplo, é possível presumir em favor da desigualdade e argumentar que essa presunção pode ser afastada por uma diminuição modesta de desigualdades ou por mérito genuíno. Reconheço que essa pode ser a saída. Mas ir nessa direção ainda exige esclarecer qual é o princípio utilizado e mostrar sua base implícita em nossas práticas. Ficaria feliz ao ver alguém formular uma alternativa.
Acho que a melhor formulação alternativa é essa: desigualdades de renda e riqueza, em termos gerais, precisam melhorar as condições dos mais desfavorecidos. Mas até mesmo esse princípio cria problemas. Primeiramente, ele permite uma desigualdade potencialmente astronômica contanto que ela ajude os mais desfavorecidos. Em segundo lugar, ele parece exigir a destruição de qualquer renda ganha por algum grupo representativo que melhora sua condição e não piora a de mais ninguém. Isso é, o princípio parece violar um princípio de Pareto bem atraente para a justiça distributiva: não tenha ressentimentos contra aumentos de utilidade que não pioram a condição de ninguém. Na verdade, eu acho que esse vai ser um problema para qualquer princípio com uma presunção em favor da desigualdade, a não ser que você adote os pressupostos profundamente controversos e mal defendidos de Rawls sobre conexão em cadeia e relação estreita.
II. Contra 2P – Um Imposto Global Sobre Riqueza é Justo e Eficiente?
Acho que existem menos problemas com 2P do que com 2A, mas existem alguns que eu devo mencionar. Em primeiro lugar, Piketty diz, sem defender suas afirmações, que seu imposto sobre capital ou não vai desencorajar crescimento econômico ou não vai desencorajar o suficiente para fazer alguma diferença. Mas certamente é plausível acreditar que retornos crescentes sobre capital elevam salários por alguma margem, só usando teorias microeconômicas padrão. Além disso, impostos sobre capital desencorajam o incentivo para acumular capital até um certo nível, capital que outros podem utilizar através de salário, consumo ou seus próprios investimentos. Então certamente vai haver algum custo para o imposto, e isso vai afetar a avaliação da eficiência do imposto sobre capital. Além disso, muitos indicaram a afirmação aparentemente ingênua de Piketty de que
… antes de aprendermos a organizar de maneira eficiente finanças públicas equivalentes a dois terços a três quartos da renda nacional, seria bom melhorar a organização e operação do setor público existente, que representa só metade da renda nacional … (483).
Podemos descrever isso como uma “falha da escolha pública”. Melhorar a operação do setor público pode ser extremamente difícil devido ao fato de que políticos (às vezes) agem em interesse próprio e às dificuldades estratégicas em melhorar a produtividade e qualidade de bens públicos (dos quais boa governança é um exemplo).
Mas essas são questões empíricas que eu deixarei para economistas.
O problema moral-filosófico com 2P é que Piketty faz várias afirmações moralmente questionáveis ao aceitá-lo. Considere o seguinte: “Impostos não são nem bons nem ruins por si próprios. Tudo depende de como impostos são coletados e para que eles são utilizados” (481). Isso é, no mínimo, controverso. A ideia de que impostos não são nem ao menos um mal necessário é bastante implausível, já que a cobrança de impostos necessariamente envolve coerção, ainda que justificada. Mantendo todas as as outras condições iguais, a coerção é um mal. Além disso, a avaliação moral da cobrança de impostos certamente depende do quão alta ela é. Se nós cobrássemos impostos de 100% sobre fortunas maiores do que $1 milhão, a taxa seria moralmente relevante, não só a maneira em que tais impostos são coletados e o que é feito com a arrecadação. Então para mostrar que o imposto global sobre riqueza é justo, Piketty não pode simplesmente presumir que não existem outras questões morais envolvendo a cobrança de impostos além da maneira em que eles são coletados e gastos. E você pode concordar com tudo nesse parágrafo sem aceitar quaisquer premissas libertárias.
No mais, Piketty também argumenta que “o principal propósito do imposto sobre capital não é financiar o Estado social, mas sim regular o capitalismo. O primeiro objetivo é parar o crescimento indefinido da desigualdade de riqueza” (18). Isso parece um retrocesso. Destruir riqueza em nome da justiça parece moralmente perverso para muitas pessoas razoáveis. (Se destruir riqueza é necessário para manter estabilidade, por outro lado, então não é exatamente um retrocesso, já que aumentar a estabilidade deve melhorar as condições de vida de outras pessoas, mas eu já discuti as afirmações de Piketty sobre estabilidade.
III. 2A e 2P Fracassam
Então os dois argumentos de Piketty sobre desigualdades injustas fracassam. 2A fracassa porque ou Piketty adota um princípio distributivo controverso que ele na verdade não defende, ou ele adota um princípio vago o suficiente para haver consenso, mas que não justifica suas políticas igualitárias. 2P fracassa porque Piketty ignora uma variedade de problemas econômicos e barreiras morais para justificar níveis tão altos de impostos. A seguir, vou tratar das afirmações de Piketty sobre transparência.
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Leia também os textos anteriores da série:
A problemática filosofia política de Thomas Piketty parte I: Argumentos Normativos
A problemática filosofia política de Thomas Piketty parte II: desigualdade e estabilidade social
A problemática filosofia política de Thomas Piketty Parte III-A: desigualdade e utilidade comum