Por Valdenor Júnior

Há muitos mal entendidos sobre a revisão da lei de anistia. Existem muitas pessoas que pensam que isso seria apenas uma manobra da esquerda, disposta a justificar os crimes das guerrilhas socialistas enquanto tentaria difamar os militares ao abrir os arquivos. Algumas dessas pessoas acrescentariam ainda que os militares tiveram que fazer o que fizeram, caso contrário, o Brasil viraria uma ditadura comunista com absoluta certeza. Bem, eu discordo, e já apresentei como o liberal Raul Pilla tentou evitar o golpe militar ao propor a diminuição do poder centrado na pessoa do presidente da República, mas mantendo o andamento regular da democracia brasileira pré-1964.

Já dediquei dois comentários ao assunto da lei de anistia:  “O estado pode perdoar a si próprio?” e “Graves violações de direitos humanos na ditadura e seu perdão ilegal“. Contudo, um texto recentemente me chamou atenção, por ter sido publicado em um veículo que se intitula como liberal, o que justifica a produção de um 3º comentário.

Trata-se do texto “Revisão da Lei da Anistia: o passado cabe aos historiadores, não aos Tribunais“, escrito por Rodrigo Mezzomo, para o Instituto Liberal. De antemão, deve-se esclarecer que a opinião dele não representa uma posição oficial do Instituto, ainda que eu pense que os liberais devem tomar mais cuidado ao comentar sobre o tema da anistia.

No caso de Mezzomo, até compreendo a tese jurídica que ele apresenta ali – afinal, é uma interpretação muito utilizada no Brasil. Mas ela contém equívocos quanto ao Direito Internacional, que desejo apontar para esclarecer aos leitores as razões para revisar-se a lei de anistia, e, por outro lado, também preocupa-me a falta de um embasamento em um motivo liberal para justificar a possibilidade do Estado perdoar graves violações de direitos humanos de seus agentes  – que, sinceramente, não consigo enxergar nenhum que pudesse legitimar tamanho poder ao governo, como também mostrarei adiante.

Mezzomo critica a decisão do magistrado da 4.ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro em acolher denúncia da promotoria em face de cinco militares, todos reformados, acusados da morte do ex-deputado federal Rubens Paiva, durante o período militar. O desaparecimento de Paiva ocorreu em 1971, nas dependências do DOI (Destacamento de Operações de Informações), no bairro da Tijuca, na zona norte do Rio. Como fundamento para aceitar a denúncia, o juiz afastou a aplicabilidade da lei de anistia aos militares envolvidos.

Mezzomo entende que isso é um perigoso fortalecimento de uma estratégia da esquerda voltada às Comissões da Verdade e ao revisionismo histórico em desfavor dos militares, isentando os guerrilheiros de qualquer investigação e mesmo engrandecendo-os como heróis. Em um comentário estranho, até especula que essas Comissões podem espalhar-se para investigar a vida de todos nós: “As tais Comissões a que me referi há pouco, se transformaram em mecanismos de promoção pessoal e estão sendo instaladas em todos os âmbitos. Em breve, acredito, até no condomínio onde resido, no restaurante que frequento ou no jardim da infância da esquina serão instaladas comissões desta natureza. Elas estão por toda parte, revolvendo a história ao fluxo das ideologias”, mas não entendi porque ele pensa assim.

Depois de criticar as Comissões da Verdade, Mezzomo critica os “movimentos sociais” (que, para ele, trata-se de “eufemismo para nos referimos às organizações esquerdistas”, embora eu também não entenda a relação de suposta necessidade entre uma coisa e outra) que pretendem revisar a lei de anistia contra os militares, mas não contra os guerrilheiros, com base em tratados de direitos humanos que o Brasil aceitou. Para Mezzomo, isso é juridicamente insustentável, citando motivos que estão incorretos, e que por isso convém esclarecer.

Primeiro, ele diz que a Convenção Americana, que coloca a tortura completamente na ilegalidade, foi adotada posteriormente aos fatos, pois entrou em vigor apenas no dia 28 de fevereiro de 1987. Portanto, segundo ele,

“O tratado é ótimo e aplaudo seus termos! Todavia, sua validade se dá ao futuro – ou seja, de 1987 em diante – e não para o passado! Não se legisla para detrás, sob pena de se ferir de morte pilares do Direito. Em outras palavras, o direito moderno, que se consagrou com as revoluções Americana e Francesa, iluminista portanto, consagra a anterioridade da lei como sustentáculo da segurança jurídica. A lei não pode retroagir, atingindo condutas passadas, não volta no tempo para punir atos em priscas eras.” (Mezzomo)

Mas ele esqueceu de conferir o julgado mais importante para interpretar-se a aplicação da Convenção Americana aos crimes da ditadura: Gomes Lund e outros (‘Guerrilha do Araguaia’) vs. Brasil, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Sim, Mezzomo está correto em mencionar que o tratado não se aplica retroativamente. Mas ele omite que há crimes da ditadura que tem natureza “contínua”: os desaparecimentos forçados. Veja esta citação da própria Corte:

“Adicionalmente, no Direito Internacional, a jurisprudência deste Tribunal foi precursora da consolidação de uma perspectiva abrangente da gravidade e do caráter continuado ou permanente da figura do desaparecimento forçado de pessoas, na qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade. Em conformidade com todo o exposto, a Corte reiterou que o desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um estado de completa desproteção e acarreta outras violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado” (grifos meus)

Ou seja, mesmo que a Convenção não se aplique aos atos criminosos da ditadura que começaram e terminaram no passado, aqueles atos que tem uma natureza contínua ao longo do tempo (de modo que a violação de direitos humanos não tenha cessado ainda), podem cair no âmbito desta Convenção, porque o Estado imediatamente fica em falta com sua obrigação internacional. Não adianta também, no caso do desaparecimento forçado, o Estado meramente reconhecer a “morte oficial” para indenizar os familiares; o Estado deve efetivamente promover buscas e/ou análise de arquivos (inclusive secretos), ou qualquer outro tipo de investigação, em um esforço real para descobrir o que aconteceu e esclarecê-lo (direito à verdade). Tudo isso dentro de uma noção de reparação completa da violação de direitos humanos ocorrida. Se o Estado não faz esse esforço, o desaparecimento forçado continua perdurando no tempo.

Deve-se destacar que o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1987. Dessa forma, se uma pessoa sofreu desaparecimento forçado antes de 1987, mas não tinha sido encontrada ainda, a Convenção já se aplica. A Corte Interamericana pode examinar o caso, desde que a pessoa tenha continuado desaparecida até a data em que o Brasil aceitou a competência desta Corte para julgá-lo,  10/12/1998:

“Ao contrário, em sua jurisprudência constante, este Tribunal estabeleceu que os atos de caráter contínuo ou permanente perduram durante todo o tempo em que o fato continua, mantendo-se sua falta de conformidade com a obrigação internacional. Em concordância com o exposto, a Corte recorda que o caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado de pessoas foi reconhecido de maneira reiterada pelo  Direito Internacional dos Direitos Humanos, no qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos. A Corte, portanto, é
competente para analisar os alegados desaparecimentos forçados das supostas vítimas a partir do reconhecimento de sua competência contenciosa efetuado pelo Brasil”

Assim, deve-se perceber que o argumento da “segurança jurídica” e das “garantias do acusado” tem um grave problema. Para o Direito Internacional, a extinção de punibilidade, por anistia ou prescrição (e até mesmo o bis in idem em certos casos, como no art.  20.3 do Estatuto de Roma) não pode ser obstáculo à investigação, processamento e julgamento de acusados de graves violações de direitos humanos, porque a adoção dessas barreiras de extinção de punibilidade é nula de pleno direito, por afrontar o jus cogens internacional. Você pode ver uma excelente fundamentação desta incompatibilidade das anistias de graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional em meu blog pessoal, onde você poderá encontrar o tópico pertinente da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil.

Segundo, Mezzomo afirma que o crime de tortura já teria sido prescrito, ou seja, que segundo nossa lei criminal já passou o prazo que o Estado tem para denunciar a pessoa por um crime e processá-la:

“a discussão continua a ser juridicamente infrutífera caso a Lei de Anistia seja considerada inaplicável em relação às condutas previstas no Código Penal Brasileiro, como quer o juiz da 4.ª Vara Federal Criminal, do Rio de Janeiro. A razão é uma só: por mais peculiar que seja a matriz hermenêutica escolhida, os anos se passaram a prescrição consumou-se. Não há matemática criativa que de (sic) conta disso.” (Mezzomo)

Mas não entendo porque ele se concentra na tortura como se esse fosse o único crime de que os militares foram acusados. A argumentação do juiz, como você pode ver aqui, era a de que o assassinato de Paiva qualificava-se como crime contra a humanidade:

“O homicídio qualificado pela prática de tortura, a ocultação do cadáver (após tortura), a fraude processual para a impunidade (da prática de tortura) e a formação de quadrilha armada (que incluía a tortura em suas práticas) foram cometidos por agentes do Estado como forma de perseguição política. A esse fato, acrescenta-se que o Brasil reconhece o caráter normativo dos princípios de Direito costumeiro internacional preconizados pelas leis de humanidade e pelas exigências da consciência pública”

Uma tortura cometida antes de o Brasil ter aceito a Convenção Americana de Direitos Humanos realmente não seria abarcada pela obrigação que o Brasil assumiu perante esta Convenção. Mas a acusação da promotoria é a de desaparecimento forçado. Só que nosso ordenamento criminal não tem essa figura nomeada e, assim, os promotores denunciaram os acusados por crimes que, combinados, formam o desaparecimento forçado de que falamos mais acima.

Para a Corte Interamericana, desaparecimento forçado tem os seguintes elementos: “a) a privação da liberdade; b) a intervenção direta de agentes estatais ou sua aquiescência, e c) a negativa de reconhecer a detenção e revelar a sorte ou o paradeiro da pessoa implicada”. Agora compare a combinação dos crimes de que eles são acusados: homicídio qualificado pela prática de tortura + ocultação de cadáver + fraude processual + formação de quadrilha armada. Não, isso não é matemática criativa coisa nenhuma! “Homicídio qualificado pela prática de tortura + ocultação de cadáver + fraude processual + formação de quadrilha armada –> desaparecimento forçado” é um cálculo preciso.

Como mencionado acima, reitero que a Corte Interamericana, em sentença contra o Brasil, tem um capítulo dedicado à “incompatibilidade das anistias relativas a graves violações de direitos humanos com o direito internacional”, onde juízes internacionais (não, não são esquerdistas!) demonstram por “A + B” que viola o Direito internacional o Estado promover a auto-anistia, ou seja, perdoar as graves violações de direitos humanos cometidas por seus agentes.  A Corte Interamericana cita diversos órgãos internacionais e tribunais de direitos humanos para demonstrar o seu caso – o que Mezzomo não faz.

Por exemplo, você sabia que para o Tribunal Penal Internacional a anistia não vale? O Tribunal Penal Internacional julga crimes gravíssimos – genocídios, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Esse tribunal apenas entra em ação se os Estados que aderiram a ele não tiverem condições de julgar e punir tais criminosos idoneamente. E todos os casos atuais são contra criminosos que atuaram em países africanos, continente marcado por graves crises humanitárias e instabilidade política.

Gostaria de saber se Mezzomo aceitaria uma anistia que visasse perdoar estes acusados por graves crimes internacionais na República Democrática do Congo perante o Tribunal Penal Internacional?

lubangaSmall                         GermainKatanga                 Mr Bosco Ntaganda during his initial appearance before the International Criminal Court on 26 March 2013 © ICC-CPI                           CallixteMbarushimana
(Thomas Lubanga Dyilo)  (Germain Katanga)      (Bosco Ntaganda)            (Callixte Mbarushimana)

 

As acusações contra estes homens, respectivamente: dois crimes de guerra (Alistar crianças menores de 15 anos e fazê-las participar diretamente das hostilidades em um conflito armado); um crime contra a humanidade (assassinato, cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil) e quatro crimes de guerra (assassinato, ataque direcionado contra civis, destruição de propriedade e pilhagem); sete crimes de guerra (alistar crianças menores de 15 anos, recrutar crianças, fazê-las participar diretamente das hostilidades em um conflito armado, assassinato, ataque contra civis, estupro e escravidão sexual e pilhagem) e três crimes contra a humanidade (assassinato, estupro e escravidão sexual e perseguição direcionada contra grupos específicos, tudo isso cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil); cinco crimes contra a humanidade (assassinato, tortura, estupro, “outros atos desumanos” e perseguição contra grupos específicos, tudo isso cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil) e oito crimes de guerra (ataques contra a população civil, assassinato, mutilação, tortura, estupro, tratamento desumano, destruição da propriedade e pilhagem).

Se esses países africanos tivessem adotado leis de anistia em favor desses acusados, Mezzomo pensaria que elas deveriam ser mantidas a todo custo, porque, caso contrário, isso afetaria a segurança jurídica? Eu espero que não!

E isso me leva ao meu problema principal com sua análise. Nenhum argumento liberal é levantado em seu favor. Não há nenhum fundamento na tradição liberal que dê ao Estado poder para perdoar os crimes de seus próprios agentes. Como escrevi para o C4SS, vítimas são vítimas – não importa a sua afiliação política ou a de seus algozes – e seu sangue derramado clama por vindicação. Como pode um Estado se sobrepor a isso, e dizer que as vítimas não têm direito de levar seus algozes para o banco dos réus? Cortes de Direitos Humanos que condenem esse tipo de situação limitam o poder dos Estados, de forma inteiramente justa, protegendo a todos nós enquanto indivíduos.

Mas a posição de Mezzomo é completamente diversa: para ele é uma “pitoresca interpretação” a de que “nenhum Estado tem o poder de anistiar a tortura, pois existem tratados internacionais que versam a respeito do tema e a reconhecem como crime”, e que a minha interpretação seria “resultado apenas de uma crescente mentalidade esquerdizante que reina soberana em certas áreas da America Latina*, região do mundo hostil à liberdade, à livre iniciativa e ao lucro” (gostaria de saber inclusive o que a crença ou não na liberdade econômica interfere neste assunto).

Diante disso, apenas resta-me dizer: Esclarecer crimes como assassinato, mutilação e ocultação de cadáver não é manobra da esquerda. Trata-se de decência humana básica. Não é possível ser libertário sem defendê-la. Afronta o liberalismo acreditar que uma organização criminosa profissional tenha legitimidade para perdoar a agressão criminosa de seus agentes só porque ela se intitula como “o estado”.

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*Mezzomo afirma “a prosperar a tese esposada, qual seja, a inaplicabilidade de anistia aos agentes do Estado, como a Corte interamericana deverá tratar os irmãos Castro e demais membros da longeva e sanguinária ditadura cubana?” Mas Cuba nunca aceitou a Convenção Americana, então a Corte Interamericana não pode julgar os crimes contra direitos humanos que foram cometidos lá, infelizmente. Curiosamente, a Venezuela deixou de ser signatária da Convenção recentemente, pelas condenações por violações de direitos humanos que sofria, o que criou temor quanto à situação dos direitos humanos a partir disso. Portanto, resta claro que a Corte não tem nenhum viés ideológico – ela aplica o Direito Internacional.

junior

Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, escreve em seu blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Também escreve para o Centro por uma Sociedade sem Estado – C4SS e o Liberzone.

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