Por Mano Ferreira e Andressa Carvalho
[dropcaps]“Q[/dropcaps]uem sai aos seus não degenera”. O ditado antigo parece perfeito, em sua ambivalência de sentidos, para esses tempos de rótulos entre salafrários e degenerados. A participação do Coletivo Nabuco, da rede Estudantes Pela Liberdade, na IV Marcha das Vadias do Recife pretendia apenas contribuir com a causa da liberdade e distribuir panfletos do texto Seduzidas e desonradas, de Maria Lacerda de Moura. A reboque, acabou trazendo uma repercussão no mínimo interessante entre setores aparentemente antagônicos, mas que possuem um modus operandi praticamente idêntico.
Como já compartilhado na fanpage deste Mercado, o frisson pode ser emblematizado nas posições de duas figuras marcantes da internet: Rodrigo Constantino, colunista conservador da revista Veja que insiste em se apresentar como liberal; e Jones Makaveli, personagem marxista constante do movimento estudantil pernambucano:
Enquanto a postagem de Constantino foi seguida por um desfile de comentários ofensivos e odiosos, a manifestação de Makaveli veio acompanhada de ameaças veladas e abertas – tornando o autoritarismo auto-evidente. A questão a ser levantada nesse texto, entretanto, busca as origens de ambos discursos de ódio.
Fosse-me permitido uma aposta, eu diria que se trata de um pendor irresistível à estigmatização do Outro, ou seja, uma profunda incapacidade de exercer alteridade. Sendo assim, acredito haver um forte resquício dos tempos de Guerra Fria, de um mundo bipolarizado, que se configura através de um pensamento binarista e maniqueísta, evidente no conceito psicológico de Sombra, em que pólos aparentemente opostos são forjados, com imaginários sociais específicos, mas com uma profunda semelhança na essência, ao passo que um pólo só existe em função da negação dos seus opostos, sem se descolar dos mesmos ou afirmar-se por si só, tornando-se verdadeiramente uma sombra, numa relação de antípodas reativas evidenciada pela necessidade mútua de estabelecerem inimigos.
A cortina de ferro desmoronou, mas se atualiza de forma sintomática nesta bipolaridade onde o Outro (em todas as suas possibilidades de ser, das mais aceitas às mais reprováveis) é continuamente negligenciado e rotulado num jogo de saber/poder normativo e seletivo, próprio de cada imaginário epistemológico. Desse modo, toda a potencialidade do sujeito é reduzida em função de uma única dimensão de sua existência, como a ideologia.
Nesse sentido, membros disciplinados estão sempre a postos para defender apenas o outro que lhe interessa, que lhe é semelhante, que contempla ou está contemplado pelas mesmas ideias, com prescrições metodológicas de como e até onde esse outro pode ser defendido ou contrariado. Esse sistema hermético se retroalimenta à medida em que há um respaldo social que ressoa e reafirma essas crenças. Assim, apesar dos dois pólos reivindicarem para si o monopólio da virtude e as melhores receitas para a felicidade social, não se percebem que se o outro que defendemos tem muito em comum conosco acaba não tendo quase nada de Outro, fazendo com que a suposta alteridade se transforme no mais puro narcisismo.
Essa constante reafirmação das próprias convicções faz com que, ao se deparar com algo realmente diferente, que fuja a interpretação desse sistema fechado, a grande reação seja de estigmatização: para esse marxista, o liberal que se aproxima dos movimentos sociais é somente um salafrário; para aquele conservador, o liberal que veste saias é só um degenerado. Pouco importa se, na realidade, nenhum deles sequer ouviu o liberal em questão para entender suas motivações e pensamentos. Esse tipo de postura constitui exatamente o que o filósofo austríaco Karl Popper chamou de mentalidade tribalista, pautada em preconceitos e crenças mágicas, que, no fundo, originam e alimentam a sociedade fechada, intolerante, pouco afeita à diversidade.
A grande repercussão sobre a participação do Coletivo Nabuco na Marcha das Vadias somente reafirma o valor e a necessidade do ato. A Marcha surgiu em função da declaração do chefe de segurança de uma universidade canadense que culpou as mulheres “que se vestem como vadias” pelo aumento do número de casos de estupro no campus. Desde então, além de combater a violência física contra as mulheres, a manifestação se sofisticou e incorporou as grandes reivindicações do movimento feminista, ou seja, o combate à cultura do machismo, do sexismo e da opressão de gênero. Além disso, também conseguiu atrair e mobilizar uma série de pessoas que, mesmo não concordando com todos os pontos elencados pela militância organizadora da Marcha, comunga com as intenções de uma sociedade mais aberta, plural e tolerante. Foi por isso que vestimos saias, como explico nesse vídeo ao Erosdita:
[youtube]http://youtu.be/XNtJQb0sdls?t=1m56s[/youtube]
Os rótulos rígidos de gênero e sexualidade (ou qualquer outra coisa) que se impõem sobre as pessoas atentam claramente contra a liberdade de todos e todas. Cada pessoa é um universo – e uma cultura de restrições à diversidade das expressões de identidade configura uma opressão não somente desnecessária como inaceitável, pois inflige sofrimento e ataca a felicidade.
Foi por isso que vestimos saias, para atuar na cultura de modo a construir teias de cooperação social voluntária que diluam a rigidez desses tabus conservadores e tribalistas. Vestimos saias porque acreditamos que quem não sai aos seus, regenera. Vestimos saias porque devemos viver o tempo – não os relógios, sejam eles marxistas ou conservadores. Vestimos saias para referendar as palavras do poeta pernambucano Daniel Lima. Vestimos saias porque queremos que as pessoas vivam os seus genuínos rostos, e não somente uma sombra desfigurada deles. E assim, ao fim da vida, não precisem se reconhecer, melancolicamente, no poema:
Ao nasceres, tinhas o prefigurado rosto
que hoje terias se houvesses sido tu mesmo
no tempo singular de tua vida.
Mas viveste o relógio, não teu tempo
E agora vê teu rosto:
o que dele te resta é a desfigurada
sombra do primitivo rosto
que não soubeste ter,
nem mereceste.
Mano Ferreira é jornalista, integrante do Café Colombo e co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Tem interesse em filosofia política, comunicação, estética e comportamento. Pesquisa a relação entre as obras do documentarista Eduardo Coutinho e do filósofo Karl Popper, mas se percebeu amante da liberdade bem antes de conhecê-los, viajando além da conta num quadro de Renné Magritte.
Andressa Carvalho é estudante de psicologia e amante da psicanálise. Militante feminista, parte de uma perspectiva de esquerda e defende a queda da torre de babel através da hermenêutica, para a diluição das barreiras linguísticas e inclusão do Outro no discurso. Nessa história toda, acredita que o seu papel é facilitar os encontros humanos.